Por Júlio Lubianco.
Em 2022, as duas cooperativas de jornalistas brasileiros mais antigas ainda em atividade completam 15 anos de atividades ininterruptas: a Tribuna Independente e o Portal Desacato. Os feitos, dignos de celebração, ocorrem com uma dose diária de resiliência e esforço financeiro dos jornalistas que encontraram na autogestão uma solução para sobreviver no mercado.
A Tribuna Independente, de Alagoas, nasceu quando o jornal Tribuna de Alagoas fechou as portas no início de 2007. Os 157 trabalhadores, entre jornalistas, gráficos e pessoal administrativo, estavam com os salários atrasados há três meses e iniciaram uma greve de ocupação, acampando na redação e no parque gráfico do jornal.
Com o tempo, o movimento se deu conta que os donos não iriam se coçar para quitar a dívida trabalhista, na casa de R$ 9 milhões, e decidiram assumir as operações do jornal. O uso das instalações e do maquinário foi negociado com os antigos donos. Nascia a Cooperativa de Jornalistas e Gráficos do Estado de Alagoas (Jorgraf). A primeira edição do jornal cooperativado circulou em 10 de julho de 2007.
“Eles [donos] saíram e nós entramos, ficamos dentro do jornal. Passamos dois meses dentro do jornal fazendo assembleia todos os dias, dormindo lá. E nos demos conta que só tinha uma solução, já que nós estamos aqui, vamos colocar o jornal para rodar, para fazer dinheiro, porque está todo mundo passando necessidade,” disse à LatAm Journalism Review (LJR) o diretor-presidente da Jorgraf, Paulo Gabriel.
Quando o principal concorrente no mercado local, a Gazeta de Alagoas, passou a publicar apenas uma edição em papel por semana, em novembro de 2018, a Tribuna Independente se tornou o único jornal impresso diário do estado de Alagoas. A cooperativa conta hoje com 27 jornalistas e 27 gráficos, além de três funcionários contratados. Tem uma receita anual de R$ 4 milhões e imprime 4.600 jornais por dia, além de manter a versão digital na internet.
“Nós temos uma receita hoje razoável, mas não conseguimos pagar o piso salarial dos jornalistas, que é de pouco mais de R$ 4.000. Cada jornalista tira em média R$ 3.000 por mês,” admite Gabriel.
Já no caso do Portal Desacato, de Santa Catarina, fechar as contas do mês é um desafio ainda mais apertado. O veículo surgiu como uma revista digital semanal, mas se tornou um site atualizado diariamente. Hoje, o portal veicula um noticiário diário, transmitido pelo YouTube, e cobre principalmente política e cultura.
“A gente não tinha pretensões de durar mais de 50 ou 60 dias. Era mais pra escoar a angústia de alguns jovens, para que pudessem colocar seus textos, ler o que a gente escrevia assim,” disse à LJR o jornalista Raul Fitipaldi, um dos membros fundadores da cooperativa e que hoje exerce a função de diretor. “Acontece que o destino nos jogou uma cilada estranha. Começaram a aparecer jornalistas, escritores e tomamos um crescimento inesperado. Em pouco tempo já não éramos mais uma revista quadradinha semanal, passamos a ser diários”.
O Portal Desacato comemora 15 anos de existência em 25 de agosto, embora a formalização da cooperativa como ente jurídico tenha sido concluída há apenas cinco anos. São 18 cooperativados e mais de 50 colaboradores voluntários.
A cooperativa se mantém com uma receita média mensal de R$ 15 mil, com ingressos provenientes de 12 entidades sindicais e doações de leitores. As despesas correntes, no entanto, somam R$ 17 mil, ou seja, a cooperativa passa o ano no vermelho.
Eventos e projetos especiais reforçam o caixa ocasionalmente, embora a pandemia de COVID-19 tenha impactado a realização de atividades presenciais ao vivo. A comemoração pelo aniversário de 15 anos será um dos primeiros eventos depois da pandemia.
“Não temos vez e não temos paz, porque nós não podemos investir,” disse Fitipaldi. “Não é possível resolver nossa realidade apenas com apoio de leitores, só com os sindicatos. Não há a menor possibilidade (…) Nós temos um déficit mensal de R$ 2 mil.”
Autogestão da sobrevivência
As cooperativas são organizações sem fins lucrativos constituídas por grupos de trabalhadores de uma mesma categoria ou categorias afins, que se unem para desempenhar uma atividade econômica, que pode ser a produção de um bem ou prestação de um serviço. A assembleia geral, em que todos os cooperativa dos têm direito a voto, é responsável pela tomada de decisão.
O modelo de cooperativa, cuja característica principal é a autogestão do trabalho, é ainda pouco explorado por jornalistas da América Latina, com exceção da Argentina. O Mapa das Cooperativas de Comunicadores, do Observatório do Cooperativismo de Plataforma, lista 37 cooperativas jornalísticas em seis países das Américas do Sul, Central e do Norte. Vinte e nove delas são argentinas.
A Argentina se tornou um caso especial devido à crise político-econômica que culminou na renúncia do presidente Fernando de la Rúa, em 2001, e levou a várias falências de empresas nos anos seguintes. As cooperativas se tornaram uma opção, encorajada pelo Estado, para manter os postos de trabalho que seriam perdidos. Assim, empresas jornalísticas recuperadas pelos trabalhadores se tornaram um fenômeno relativamente comum no país.
O professor Rafael Grohmann, do departamento de comunicação da Unisinos e coordenador do Digilabour, estuda modelos de cooperativas na área de comunicação e pesquisou o caso do Tiempo Argentino, uma cooperativa que surgiu para assumir o meio depois que o dono deixou de pagar os salários.
“O jornalista brasileiro não tem a cultura do cooperativismo para levar essas iniciativas para frente. As pessoas não sabem que existem cooperativas de jornalistas, que isso é possível,” disse Grohmann à LJR. “Precisamos colocar isso mais nas escolas de jornalismo”.
Outro aspecto de uma cooperativa que se apresenta como um desafio é a natureza hierárquica de uma organização jornalística, com uma linha de comando bem definida, enquanto numa cooperativa os sócios têm igual poder de decisão. “Não se pode decidir numa assembleia a manchete de todos os dias. Você tem que ter alguém responsável para isso,” disse Grohmann.
“O desafio inicial [numa cooperativa] é que as pessoas incorporem esse sentimento de pertencimento. A relação não é mais de empregado e patrão,” disse à LJR a pesquisadora Irene Sá, autora do livro Cooperativa de Jornalistas. “A função do jornalista não se limita mais escrever um texto, fazer uma foto e editar. Você tem mais funções ali.”
A pesquisa tratou do caso da Tribuna Independente e analisou a cooperativa em três aspectos: organizacional, financeiro e produtivo. “O que a gente percebeu é que a cooperativa se aproxima muito também de uma empresa tradicional [de comunicação]. No caso da Jorgraf, as fontes de receitas são assinaturas e publicidade, como acontece nos veículos mais tradicionais,” disse Sá.
Na mesma linha, a professora Zulmira Nóbrega, coordenadora do curso de jornalismo e da pós-graduação em jornalismo na UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e coautora do estudo, destaca que o que está em jogo numa cooperativa é a sobrevivência dos profissionais através da manutenção dos postos de trabalho. “Não é uma forma de se ficar rico,” disse ela à LJR.
Os jornalistas que fazem parte da Mídia Caeté, cooperativa de jornalistas fundada em 2019, têm clareza que não ficarão ricos, embora tenham a ambição de ao menos conseguir viver de jornalismo. Isso, no entanto, ainda está longe de ser alcançado.
A Mídia Caeté, também localizada no estado de Alagoas, surgiu num momento de crise do mercado de jornalismo local: jornalistas haviam entrado em greve diante da proposta das principais empresas de reduzir 45% do salário base da categoria. A falta de acordo levou à paralisação e a demissões em massa. E oito jornalistas que perderam o emprego decidiram insistir na profissão criando uma cooperativa.
“Vimos que o modelo de trabalho jornalístico para empresas está esgotado, porque nos submete a condições de trabalho precárias, sobrecarga, então criamos uma organização que fosse independente de fato, que praticasse jornalismo profissional,” disse à LJR a jornalista Wanessa Oliveira, uma das participantes da cooperativa.
O timing, no entanto, não favoreceu a Mídia Caeté. Menos de um ano depois da criação da cooperativa, a pandemia de COVID-19 reduziu ainda mais as parcas possibilidades de financiamento. A participação num projeto de acessibilidade no jornalismo é a principal fonte de recursos financeiros. Com isso, quase três anos depois, o portal não gera receita e nenhum dos jornalistas cooperativados pode se dar ao luxo de se dedicar 100% ao projeto.
Apesar das condições limitadas, a Mídia Caeté produz jornalismo de impacto local e nacional. Uma reportagem de fôlego mostrou como quatro bairros da cidade de Maceió estão afundando por atividades supostamente relacionadas à mineração e a falta de transparência dos acordos de indenização da empresa responsável com os moradores. O portal também mostrou como o então candidato à presidência da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, consolidou o seu poder através do controle de cargos chave no Legislativo e distribuição de emendas para aliados.
Apesar de serem organizações sem fins lucrativos, as cooperativas padecem de muitas das dificuldades que as empresas tradicionais de jornalismo enfrentam, e que levam a falências e fechamento de veículos. O pesquisador Grohmann avalia que estas cooperativas poderiam olhar mais para um movimento mais amplo de cooperativismo digital, em que a tecnologia é central no modelo de negócio.
“As cooperativas de jornalistas nascem com a contradição de criar um novo mundo num mundo existente. (…)[Mas] ainda são muito analógicas: jornal impresso, rádios, sites estáticos,” diz Grohmann. “Desse modo, ficam dependentes de outras plataformas, das big tech, e não conseguem ir além de fazer a gestão da própria sobrevivência”.
—