Controle de armas e a 2ª Emenda à Constituição dos EUA: o que a direita armamentista não conta e não sabe

Por Robert Parry.

Um grande obstáculo ao tratamento da defesa do controle de armas como algo do senso comum é a falsa narrativa histórica do direito, segundo a qual os fundadores da América queriam uma população armada que pudesse combater seu próprio governo. A verdade é que George Washington buscava milícias de cidadãos para pôr fim às revoltas e para manter a ordem.

A resistência da direita em reconhecer a necessidade do controle de armas é comandada, em parte, por uma falsa noção de que os Pais Fundadores aprovaram a Segunda Emenda porque queriam uma população armada que pudesse combater o governo dos EUA. A verdade é o oposto, mas muitos americanos parecem ter abraçado essa narrativa anti-histórica e absurda.

O fato é que os legisladores redigiram a Constituição e acrescentaram a Segunda Emenda com o objetivo de criar um governo central forte, com uma força militar cidadã capaz de pôr fim às insurreições, e não para viabilizar ou encorajar levantes. Os legisladores originários eram, afinal, majoritariamente homens de propriedades com muito em jogo numa sociedade ordenada, como era o caso de George Washington e James Madison.

Os homens que se reuniram na Filadélfia em 1787 não foram os precursores do Robespierre da França ou do Leon Trotsky da Rússia, que acreditavam em revoluções permanentes. Na verdade, seu trabalho na Constituição foi influenciado pela experiência da Rebelião de Shay, no oeste de Massachusetts, em 1786, um levante popular que o fraco governo federal, sob os Artigos da Confederação, careceu de armas para derrotar.

Daniel Shays, o líder da revolta, era um ex-capitão do Exército Continental que se juntou a outros veteranos e a fazendeiros para pegar em armas contra o governo que não atendeu às suas queixas.

A rebelião alarmou o general da reserva George Washington, que recebeu informes sobre o desenrolar dos acontecimentos dos veteranos da Guerra Revolucionária em Massachusetts, como os generais Henry Knox e Benjamin Lincoln. Washington estava particularmente preocupado com que a desordem pudesse estar a serviço dos interesses da Inglaterra, que apenas recentemente havia aceitado a existência dos Estados Unidos.

Em 22 de outubro de 1786, numa carta à procura de informações de um amigo em Connecticut, Washington escreveu: “Estou mortificado além da conta com o fato de que, no momento do reconhecimento de nossa independência estejamos, por nossa própria conduta, confirmando as expectativas de nosso inimigo transatlântico e nos tornando ridículos aos olhos de toda a Europa”.

Numa outra carta, em 7 de novembro de 1786, Washington questionou o general Lincoln a respeito da inquietação disseminada. “Qual é a causa de todos esses tumultos? Quando e como terão um fim?”. Lincoln responde: “Muitos deles parecem mesmo estar absolutamente loucos, se a tentativa de aniquilar nossa atual Constituição e dissolver o atual governo puder se considerada como evidência de insanidade”.

No entanto, o governo dos EUA careceu de meios para restaurar a ordem, e assim, cidadãos ricos de Boston financiaram sua própria força armada sob o comando do general Lincoln, para enfrentar o levante de fevereiro de 1787. Washington, no fim das contas, expressou satisfação no começo desse movimento de contenção, embora tenha permanecido preocupado que a rebelião pudesse se tornar um sinal de que as previsões da Europa a respeito do caos americano se confirmassem.

“Se há três anos [no fim da Revolução Americana] alguém tivesse me falado a respeito deste dia, eu teria visto uma rebelião formidável dessas, contra a lei e a constituição que nós mesmos fizemos, como a que agora acontece e teria pensado que se trata de uma insanidade – uma coisa apropriada a uma casa de loucos”, escreveu Washington a Knox, em 3 de fevereiro de 1787, acrescentando que, se o governo “vacilar ou for incapaz de reforçar suas leis…a anarquia e a confusão vão prevalecer”.

O alerta de Washington a respeito da Rebelião de Shay foi um fator chave na sua decisão de tomar parte – e presidir – a Convenção Constitucional, organizada para que se apresentasse revisões aos Artigos da Confederação, mas em vez disso jogou fora inteiramente a velha estrutura e a substituiu pela Constituição dos EUA, a qual alterou a soberania nacional dos 13 estados pelo “Nós, o Povo” e fortaleceu o poder do governo central.

Um aspecto crucial da constituição foi o estabelecimento de meios pacíficos para que os EUA criasse políticas em benefício da população, no interior mesmo da uma estrutura de freios e contrapesos, para evitar mudanças radicais consideradas perturbadoras para a sociedade estabelecida. Por exemplo, o mandado de dois anos para a Casa dos Representantes [Congresso] visava a refletir a vontade geral, mas o de seis anos para o Senado foi designado para temperar as paixões do momento.

No interior deste quadro de uma república democrática, os legisladores criminalizaram a pegada em armas contra o governo. O Artigo IV, seção 4 obriga o governo federal a proteger cada estado não apenas de invasão, mas de “violência doméstica”, e a traição é um dos poucos crimes definidos na constituição como “recrutamento para a guerra contra” os Estados Unidos, assim como fornecer “Ajuda e Conforto” ao inimigo (Artigo III, seção 3).

Mas foi a drástica expansão do poder do governo federal que provocou forte oposição de algumas figuras da Guerra Revolucionária, como Patrick Henry da Virgínia, que denunciou a Constituição e organizou um movimento conhecido como os Anti-Federalistas. As perspectivas para a ratificação da Constituição estavam de tal maneira em questão que seu principal arquiteto, James Madison, lançou-se numa campanha que ficou conhecida como a campanha dos Autos Federalistas, com a qual tentava minimizar o quanto suas mudanças eram, na verdade.

Para vencer os céticos, Madison concordou em apoiar a Carta de Direitos, que seria apresentada como as primeiras dez emendas à Constituição. A manobra política de Madison saiu vencedora por uma pequena margem, em estados chave, como Virgínia, Nova York e Massachusetts. O Primeiro Congresso, então aprovou a Carta de Direitos, que foi ratificada em 1791. [Para mais detalhes, ver, de Robert Parry, America’s Stolen Narrative, algo como A Narrativa roubada da América].

Por trás da Segunda Emenda

O acordo da Segunda Emenda lidava com preocupações com “a segurança” e a necessidade de milícias treinadas para garantirem a Constituição chamada de “tranquilidade doméstica”. Também havia hesitação dentre muitos dos legisladores, quanto aos custos e aos riscos da formação de um grande e forte exército, que tornasse a organização de milícias compostas de cidadãos uma alternativa atraente.

Assim, a Segunda Emenda diz: “Sendo necessária para a segurança de um Estado livre, uma milícia bem regulamentada, o direito do povo a manter e adquirir armas não deve ser infringido”. Ao contrário de algumas fantasias da direita a respeito dos legisladores pretendendo encorajar levantes populares com base em reivindicações, a linguagem da emenda está claramente voltada à manutenção da ordem interna do país.

Esse ponto foi posto em prática pelas ações do Segundo Congresso, em meio a um outro levante, que eclodiu em 1791, no oeste da Pensilvânia. Essa revolta anti-taxação, conhecida como a Rebelião Whiskey, instigou o Congresso em 1792 a expandir a ideia de “uma milícia bem regulamentada”, ao aprovar o Milicia Acts [algo como Lei das Milícias], o qual requeria de todos os militares adultos e brancos que obtivessem seus próprios rifles e equipamentos para uso nas milícias.

Em 1794, o Presidente Washington, que estava determinado a demonstrar a competência do jovem governo, comandou uma força combinada de milícias estaduais contra os rebeldes de Whiskey. Essa revolta rapidamente colapsou e a ordem foi restaurada, evidenciando como a Segunda Emenda ajudou o governo a manter a “segurança”, como a Emenda diz.

Além dessa clara lembrança histórica – de que a intenção dos legisladores era criar segurança para a nova República, não promover rebeliões armadas – também há a lógica simples que os legisladores constitucionais representavam a jovem aristocracia da nação. Muitos, como Washington, tinham grandes propriedades de terras. Eles reconheciam que um governo central forte e a tranquilidade doméstica atendiam os seus interesses econômicos.

Assim, seria contraintuitivo – bem como anti-histórico – acreditar que Madison e Washington queriam armar a população para que os descontentes resistissem ao governo constitucionalmente eleito. Na realidade, os legisladores queriam armar o povo – ao menos os homens brancos – de modo que levantes, sejam eles de natureza econômica, como a Rebelião de Shays e protestos anti-taxações, como a Rebelião Whiskey, e como os ataques dos americanos nativos ou as revoltas de escravos fossem reprimidas.

No entanto, a Direita tem investido pesadamente ao longo das últimas décadas na fabricação de uma narrativa nacional diferente, que ignora tanto a lógica como o registro histórico. Nessa fantasia da direita, os legisladores queriam que todos tivessem uma arma, de modo que poderiam violentamente resistir contra o seu próprio governo. Para esse fim, uma pequena lista de citações incendiárias são pinçadas e usadas fora do contexto.

Essa “história” tem sido amplificada por meio do poderoso aparato de propaganda da direita – Fox News, rádios, a internet e publicações ideológicas – para persuadir milhões de americanos de que a posse de rifles de caliber semi-automático e outras ponderosas armas de fogo era o que os legisladores pretendiam, que os proprietários de armas de hoje estão cumprindo com um dever americano de alguns séculos.

A mitologia a respeito dos legisladores e da Segunda Emenda é, é claro, só parte da falsa história que a Direita criou para persuadir os desavisados do Tea Party de que eles devem se vestir com a indumentária da Guerra Revolucionária e canalizarem os espíritos de homens como Washington e Madison.

Mas essa fábula das armas é particularmente insidiosa, porque obscurece os esforços do atual governo de tornar intuitiva para o senso comum leis que controlem as armas, então as falsas narrativas tornam possível certos massacres que irrompem periodicamente ao redor dos Estados Unidos, mais recentemente em Newtown, Connecticut, onde 20 crianças e seis professores foram assassinados em minutos por um jovem desequilibrado com uma versão civil de um rifle de combate M-16.

Soa absurdo pensar que os Fundadores dos EUA pudessem sequer ter contemplado um ato como esses – com suas baionetas do século XVIII que demandavam tempo para serem recarregadas -, mas os militantes pró-armamento afastaram essa obviedade, ao postularem que Washington, Madison e outros legisladores teriam desejado uma população altamente armada para cometer o que a Constituição definia como traição contra os Estados Unidos.

A direita americana está hoje embriagada de uma história muito ruim, que é tão perigosa como falsa.

(*) Robert Parry é um jornalista que cobriu o escândalo do Irã-Contras, em 1980, para a Associated Press e a Newsweek. Commondreams.org

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Carta Maior

Foto: http://www.mediaite.com/

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