Contra o golpismo, forças populares, não Forças Armadas

Golpistas em Brasília invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil.

Por Pedro Marin.

Terminava meu artigo anterior, publicado quatro dias atrás, da seguinte forma: “o dia da posse [de Lula] dificilmente poderá representar, quatro anos adiante, um bom retrato do terceiro mandato de Lula, a não ser que seja permitido ao povo, mais do que subir a rampa, barrar os caminhos – antes pela força, para que possa ser consenso – a seus inimigos. A começar por aqueles muitos que já compõem o governo: cada cargo deste significa, nesta nova conjuntura, mil frentes do governo abertas aos golpes mais violentos. E a conjuntura é nova, precisamente, porque há mais de mil dispostos a tais golpes. Demonstra-o claramente o ministro da Defesa, José Múcio, ao declarar que os atos em frente aos quartéis são ‘democráticos’.” Que o dia de ontem, com as massas de extrema-direita literalmente subindo as rampas do Planalto e invadindo os prédios dos Três Poderes, tenha já demonstrado a validade do prognóstico feito para os quatro anos de governo, revela o tempo acelerado que a política coloca diante de nós.

Falava, naquele texto, do binômio consenso e força, fundamental para a ideia de hegemonia. Em resumo, dizia que ambos os componentes sempre estão presentes na construção da hegemonia: que a força é que permite a abertura de caminhos para o consenso, e que embora o consenso pareça mais relevante naqueles momentos em que a hegemonia está consolidada, a força segue sempre presente. Dizia ainda que o ideário da Nova República, que emergia junto à primeira posse de Lula, ao menos desde 2016 já não era hegemônico. A conclusão: que a recuperação daquele ideário como hegemônico, ou ainda a construção de nova hegemonia, dependeria da mobilização de força, não sendo permitido nos contentarmos com a ideia de que um novo governo poderia, por mera via institucional, promover um novo consenso; e que, enquanto não o fizesse, sua própria existência como governo estaria sob ameaça.

Descomplicando um pouco: é impossível “pacificar” o País sem mobilizar uma força real que se oponha aos que querem a guerra, e sem que esta força real, na medida em que barra à força os caminhos de seus inimigos, abra – pela força e pelo consenso – novos caminhos. Os tempos da falsa concepção da política como diálogo estão terminados quando aparecem os militares, as vivandeiras de quartéis, os terroristas e suas bombas, todos carregando mensagem há muito esquecida, por muito tempo ignorada: “política é guerra”.

Os fatos de ontem, no entanto, requerem já uma compreensão mais aprofundada do problema. Se aquilo que escrevi é correto, é necessário avaliar ainda quais são as forças à disposição contra o golpismo, diferenciá-las umas das outras, e entender seus possíveis movimentos, que papel cumprem.

Quanto aos movimentos, eles podem ser ofensivos ou defensivos (isso não se refere só ao conteúdo “militar” de tais movimentos, mas especialmente ao conteúdo político; se representam, do ponto de vista das ideias, a manutenção do status quo ou se trazem em si concepções mudancistas; se buscam agregar, pelo convencimento, mais forças à sua, ou se ignoram tais forças por princípio; se respondem a “crimes” ou se impõem novas vontades). Quanto às forças, há à disposição do enfrentamento ao golpismo as burocráticas (deputados, senadores, juízes, delegados, policiais, militares, etc.; todos aqueles que compõem o Estado) e as populares (organizadas em partidos, sindicatos, movimentos sociais, reivindicações trabalhistas, núcleos culturais, etc., ou ainda desorganizadas).

A resposta defensiva bem sucedida ao ato golpista em Brasília, é verdade, foi burocrática: o governo determinou a intervenção na segurança pública do Distrito Federal, apontou seu interventor na Segurança Pública, mobilizou as forças policiais. O ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, afastou o governador do Distrito Federal. Assim, é possível ao ministro da Segurança Pública, Flávio Dino, dizer que “a democracia venceu, as instituições venceram mais uma vez”. Ocorre que também é verdade que o ato golpista só avançou antes pela inação destas forças burocráticas: o Exército protegeu por meses os acampamentos de vivandeiras em frente aos seus quartéis; o ministro da Defesa deu guarida a tais acampamentos; o governador não mobilizou os contingentes necessários; os contingentes policiais não enfrentaram a multidão, e por aí vai. Assim, as instituições “venceram mais uma vez” a colaboração – ativa ou por inação – das próprias instituições com o golpismo. Funcionam bem?

É dizer: a burocracia se mostrou efetiva no combate ao golpismo na mesma medida em que se mostrou efetiva em seu apoio, na abertura (literal) de seus caminhos. Daí que não possamos esquecer que a “força” da burocracia é dirigida pela política; que os vários escalões burocracia são “porosos” a influências políticas várias, sejam elas de que tipo for. Supor que a burocracia baste para enfrentar o golpismo é só apontar ao golpismo um de seus componentes: a burocracia. Como dizia em outro artigo, “o golpe é por definição um movimento de parte da burocracia contra outra parte da burocracia estatal.” Se assim não fosse, revolução seria, não golpe. Contar acima de tudo com a burocracia para o enfrentamento ao golpismo pressupõe contar que haja um certo certo consenso social e no topo das cadeias de comando contra o golpismo. Supor, por exemplo, que não haja muitas forças sociais capazes de influenciar essa mesma burocracia no sentido contrário de seu dever, ou supor que não haja inimigos comandando forças burocráticas – o que, como deixei claro nos últimas linhas do artigo anterior, não é o caso para nenhuma das hipóteses.

Há um segundo aspecto a se considerar: é típico da burocracia o acatamento às ordens nos momentos de normalidade, mas é também típico dela, em especial dos seus escalões médios, aqueles que transmitem as ordens, a indecisão e a inação nos momentos de exceção. Quando há uma névoa de incertezas encobrindo um conflito, “a maior parte da burocracia estatal simplesmente fica imóvel, esperando até que possa decidir e embarcar no campo que pressupõe vitorioso.” Isso significa dizer que a burocracia pode até servir como uma primeira linha de defesa, mas que nunca se pode concentrar toda a defesa nela, precisamente porque ela tende mais a se imobilizar quando dela mais se necessita.

Mas há ainda um outro aspecto: a ação defensiva da burocracia, do ponto de vista político, carrega também a frieza típica das coisas burocráticas. Se em bom funcionamento, ela tem enorme capacidade de repressão, e nesse sentido é eficiente em dissuadir – pelo receio da punição – que um golpista faça uma nova ofensiva, ou ainda que um determinado cidadão se mobilize de fato em atos golpistas. Mas ela é incapaz de impedir que as massas se contaminem do ideário do golpismo, e é incapaz de carregar ou transmitir a paixão típica daquele que combate contra ele (ou mesmo a seu favor). Neste sentido, a burocracia é, no melhor dos casos, uma linha defensiva contra o golpismo, que pode ou não cumprir sua função, capaz de dissuadir futuras aventuras; mas ela é inútil à ofensiva, de força e consenso, de ideologia e violência, de que precisamos para desmobilizar o golpismo.

Em resumo: a burocracia é uma força marcadamente defensiva. Ela pode efetuar bem esta função, contanto que os altos e médios escalões estejam decididos a enfrentar o golpismo, e que os médios e baixos escalões não estejam convencidos a ajudá-lo. Se esta cadeia de comando estiver comprometida em alguma de suas pontas, sua ação defensiva é completamente comprometida, como bem demonstrou o dia de ontem, em que ambas as coisas parecem ter ocorrido. A ação da burocracia pode impedir ou dissuadir determinados atos, mas é incapaz de mobilizar novas convicções e paixões contra aquelas forças que, ao fim, mobilizam tais atos.

As forças populares, por sua vez, são marcadamente ofensivas, embora possam ser também cumprir tarefas defensivas. Primeiro, por estarem reunidas por convicçãonão por obediência ou receio, em torno de um determinado ideário, elas não têm a “porosidade” típica da burocracia (isto é, dificilmente passariam, de uma hora para a outra, a defender exatamente o contrário do que defendiam). Segundo, precisamente por se reunirem em torno de um ideário (e não pela manutenção burocrática das coisas como são, coisa na qual, sinceramente, não há quem creia), as forças populares tendem ao agrupamento de mais forças, enquanto as burocráticas, até por seu desenho, tendem à sua divisão (em especial as militares; guardas, polícias, Forças Armadas, etc.,) o que as enfraquece individualmente.

Este elemento da convicção torna as forças populares completamente diversas das forças burocráticas em qualquer tipo de cenário: enquanto a captura de um determinado comandante provavelmente vá se traduzir no rendimento de sua tropa, a captura de uma liderança política provavelmente significará a luta, com ainda mais fervor, das forças populares (como demonstra a Venezuela em 2002, o golpe na Bolívia contra Evo Morales e o recente caso peruano); enquanto é absolutamente possível que uma ordem que não condiga com as funções da tropa seja por ela acatada uma vez que um comandante a dê, é consideravelmente mais difícil que as forças populares tolerem tal cenário – provavelmente abandonariam seu “comandante”; e enquanto a tendência natural das forças populares, além de opor seus inimigos, seja agregar mais forças sociais às suas, a organização das forças burocráticas, se em bom funcionamento, tende ao afastamento de tudo o que não sejam elas mesmas. As forças populares são ofensivas no sentido de que podem, por exemplo, organizar manifestações ao redor de determinadas ideias, contrapor manifestações contrárias, ou ainda ter uma atitude ativa de disputa ideológica com os grupos aos quais se opõem ou com aqueles que por eles podem ser mobilizados – coisas a que a burocracia, ao menos do ponto de vista legal, está impedida de fazer.

Para tornar ainda mais clara a diferenciação, imaginemos dois cenários hipotéticos para o dia de ontem. No primeiro, a massa golpista chegaria à Praça dos Três Poderes com considerável poder de fogo; com algumas centenas de golpistas armados. Seria seguro supor que, neste cenário, uma parte do reduzido efetivo policial que ali estava ontem (baixo escalão da burocracia militar) se renderia; uma outra parte, que insistisse no enfrentamento, fosse dominada ou convencida à rendição; e que uma terceira parte, suponhamos menor, se juntasse de mala e cuia aos golpistas. Neste cenário, o escalão médio da burocracia também se dividiria: uma parte dos comandantes, deputados, juízes, etc., já apoiaria o movimento, apostando em sua vitória; uma outra, receosa, que poderia mover-se pela resistência, decidiria esperar para calcular melhor suas chances; e uma terceira, convencida da necessidade de resistir, assim procuraria fazê-lo. Esta terceira: com quem poderia contar? Haveria de encontrar escalões mais baixos dispostos a segui-la – mas no seu próprio escalão burocrático estariam aqueles trabalhando ativamente para boicotá-la, a favor do golpe, e também aqueles outros, indecisos demais para com ela colaborar. Teria, portanto, de conseguir ser soberana de uma força mais forte, que não só fosse capaz de submeter aqueles primeiros golpistas e as forças policiais que a eles se juntaram, mas também contrariar as expectativas de todo o restante da burocracia, dos que embarcaram no golpe e dos indecisos. No caso em questão, a força seria o Exército (de fato, discutiu-se a insana ideia de uma GLO ontem). Mas, caso este Exército acudisse à demanda antigolpista, isso não implicaria tornar-se também escravo desta força, submeter-se de fato a ela, ao invés de ser dela soberana? Não se estaria se apoiando numa força que ajudara aqueles primeiros golpistas, e, ao mesmo tempo, decretando precisamente o que estes golpistas reivindicavam como meta?

Suponhamos um segundo cenário: um no qual esta força última, o Exército, se mobiliza já, nos primeiros momentos, a favor dos golpistas. Não é óbvio que, desde este primeiro momento, todo o aparato burocrático, do mais baixo escalão ao mais alto, se renderia ou passaria a apoiar a aventura, convicto na vitória do golpe?

Cá está a diferenciação: num destes cenários, havendo forças populares organizadas, elas restariam quando todos abandonassem. E o fato de existirem, e estarem organizadas, já afastaria a princípio um tal cenário.

O governo deve, de fato, usar o seu aparato repressivo contra os golpistas, mobilizar e reforçar essas primeiras linhas de defesa, e com elas punir, com máximo rigor, os aventureiros. Deve fortalecer aqueles setores burocráticos que não estejam comprometidos com o golpismo e que lhe possam resistir, e enfraquecer e isolar aqueles que estão – como o poderoso Exército. E deve, sem dúvidas, limpar suas próprias cadeias de comando dos seus inimigos: a começar pelo ministro da Defesa, José Múcio, que se não age como sindicalista militar frente ao governo, de certo age como mosca morta frente aos militares e os golpistas.

Mas nada disso basta, nem se sustenta, sem que se aposte na força popular, sem que se estimule a sua organização e que se atendam suas demandas: é ela a única força que, de tão relevante na ofensiva, é capaz de enfraquecer o golpismo na sua raiz, e que, de tão fundamental como linha de defesa, é a única que pode restar, sozinha, quando o golpismo decide avançar. Depois dos eventos de domingo, não soam completamente ridículos os temores de que uma greve de entregadores fosse um perigo para o governo? Não devem corar de vergonha os que viam motoboys como inimigos, supondo que a posse de Lula inaugurara um tempo de paz? “Pacificar” o País significa forçar os que insistem na guerra à defensiva, tarefa que só pode ser cumprida pelas forças populares.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.