Por Peter Yeung, na BBC Brasil.
“Hmm”, murmura Bruno Mottis, enquanto aperta os olhos atrás dos óculos. “Você derramou água nele? Ou colocou mais de um quilo de peso em cima? A fiação interna parece ter fritado ou desconectado de alguma maneira”, explica.
Mottis, um técnico voluntário, vira de ponta cabeça a balança de cozinha vermelha (decorada com a frase “keep calm and make jam“, ou “fique calmo e faça geleia”) e inspeciona sua placa de circuito com um detector de voltagem portátil.
“Pode ter molhado quando eu a estava limpando”, responde Imene, uma parisiense que participa de um workshop de conserto em um prédio público no nono arrondissement da capital francesa.
“Espero que dê para consertar, para não ter que comprar outra. Se tiver que comprar, eventualmente haverá outro problema e terei que comprar outra. É um ciclo vicioso”, reclama.
Paris é o lar de uma dúzia dessas oficinas ou “cafés de conserto”, iniciativas mensais gratuitas que permitem aos moradores locais consertar utensílios domésticos e eletrônicos com a ajuda e o conselho de voluntários entusiasmados.
Inspiradas na iniciativa lançada pela jornalista Martine Postma em Amsterdã em 2009, centenas de oficinas semelhantes operam em toda a Europa.
“Somos uma sociedade de desperdício e consumo excessivo”, explica Emmanuel Vallée, organizador do Repair Café Paris, que desde o seu lançamento, em maio de 2019, costuma atrair cerca de 25 pessoas por evento, incluindo algumas que participam online.
“Jogamos fora coisas que não necessariamente precisaríamos jogar”, lamenta.
Para Vallée e técnicos como ele, há muito trabalho a ser feito.
O mundo produziu cerca de 45 milhões de toneladas de lixo eletrônico em 2016, quando consumidores e empresas jogaram fora smartphones, computadores e eletrodomésticos avaliados em US$ 62,5 bilhões.
E apenas 20% de todo esse equipamento é reciclado de maneira adequada.
Na Europa, onde o problema é particularmente grave, os pesquisadores estimam que somente de algo entre 12% e 15% dos telefones celulares são reciclados de forma apropriada, apesar de cerca de 90% da população possuir um.
E a previsão é de que o lixo eletrônico, que muitas vezes é enviado ilegalmente do Ocidente para enormes aterros tóxicos em países como Filipinas, Gana, Nigéria e China, deve chegar a mais de 52 milhões de toneladas até o fim de 2021 — e dobrar de volume até 2050, se tornando o tipo de lixo doméstico que mais cresce no mundo.
O impacto ambiental varia de emissões gigantescas de carbono à contaminação de fontes de água e de cadeias de abastecimento de alimentos.
Mas, com os consertos, uma parte significativa desse desperdício poderia ser evitada.
De acordo com um estudo da Agência Francesa de Meio Ambiente e Gestão de Energia, apenas 40% das avarias eletrônicas são consertadas na França.
As pesquisas, no entanto, indicam que quase dois terços dos europeus preferem consertar seus produtos do que comprar novos.
É por isso que as autoridades francesas acreditam que, assim como a balança da cozinha de Imene, o sistema atual não funciona e precisa ser reparado.
Em um esforço para reduzir essa enorme quantidade de resíduos evitáveis, a Assembleia Nacional Francesa votou no ano passado para instituir um índice de classificação de “reparabilidade” para eletrodomésticos como máquinas de lavar, cortadores de grama, televisores e smartphones.
Ao fazer isso, o governo francês espera aumentar a taxa de conserto de dispositivos eletrônicos em 60% em cinco anos.
As regras entraram em vigor em janeiro e exigem que os fabricantes coloquem classificações em seus produtos — algo semelhante ao sistema de classificação de eficiência energética que já está amplamente implementado.
Elas são calculadas com base em cinco critérios: facilidade de conserto, preço das peças de reposição, disponibilidade de peças de reposição, disponibilidade de documentação para conserto e uma medida final que varia dependendo do tipo de dispositivo.
Depois do primeiro ano, uma multa de até 15 mil euros será imposta aos produtores, distribuidores e vendedores que não cumprirem a medida.
O projeto de lei também prevê um índice de “durabilidade”, a partir de 2024, que levará em conta novos critérios como confiabilidade e robustez do produto.
“Queremos limitar o consumo dos recursos naturais do mundo”, explica Véronique Riotton, deputada francesa que foi relatora da legislação.
“Todo mundo está preocupado. O objetivo é melhorar o mercado de consertos, e espero que esse índice deixe o consumidor mais consciente em relação a esta crise ecológica”, afirma.
O esquema de classificação foi apresentado como o primeiro do tipo no mundo, preparando o terreno para que outros países sigam essa tendência.
A expectativa é de que o sistema francês dê início a uma corrida entre as empresas para melhorar a “reparabilidade” dos produtos.
Os ativistas acreditam que as medidas vão permitir que um número maior de pessoas, assim como partes interessadas, como oficinas de conserto, realizem os trabalhos, o que pode levar a uma maior aceitação do ato de consertar.
“O conserto não está no topo da lista de prioridades da indústria [eletrônica]”, diz Maarten Depypere, engenheiro de políticas de reparos da iFixit Europe, empresa privada que produz avaliações de reparabilidade de produtos.
“Mas a França realmente levou os consumidores em consideração com essa lei. É uma solução muito equilibrada, que acho que vai gerar mais concorrência entre as empresas. Acredito que todos os países deveriam adotá-la”, afirma.
Os estudos preliminares sugerem que o aumento dos consertos pode ter um grande impacto.
Uma análise do Escritório Europeu de Meio Ambiente (EEB, na sigla em inglês), uma rede de organizações ambientais na Europa, concluiu que estender a vida útil de todas as máquinas de lavar, laptops, aspiradores de pó e smartphones na União Europeia em um ano economizaria quatro milhões de toneladas de dióxido de carbono anualmente até 2030, o equivalente a tirar dois milhões de carros de circulação das estradas todos os anos.
No entanto, os ativistas veem uma falha grave no índice de reparabilidade da França: o fato de que a avaliação será feita pelos próprios fabricantes, e não por um órgão independente.
“Obviamente, há um risco de parcialidade se os fabricantes fizerem sua própria classificação”, afirma Jean-Pierre Schweitzer, responsável pelas políticas de produtos e economia circular da EEB.
“Mas esse é o primeiro selo nacional do gênero. Mostra que a questão do conserto tem se tornado cada vez mais importante. Não precisamos ser luditas [referência ao movimento ocorrido na Inglaterra no século 19 que reuniu trabalhadores da indústria contrários aos avanços tecnológicos em curso], se trata de reinventar como usamos a tecnologia”, explica.
De acordo com Schweitzer, vários avanços políticos recentes refletem o apoio ao que tem sido chamado de “direito de consertar” dos consumidores.
Em dezembro de 2019, a União Europeia adotou seus primeiros requisitos de design ecológico para eletrodomésticos, como geladeiras, máquinas de lavar, iluminação e telas.
Isso foi seguido pelo Acordo Verde da União Europeia e pelo novo Plano de Ação da Economia Circular, com o compromisso explícito de explorar o “direito de consertar”.
Desde então, a Comissão Europeia lançou processos de consulta que analisaram conjuntos mais amplos de produtos, como tecidos, móveis e pilhas.
Mais recentemente, em novembro, o Parlamento Europeu aprovou um relatório a favor do estabelecimento de regras mais rígidas sobre o “direito de consertar”.
Também há avanços a nível nacional.
Na Áustria, o governo reduziu pela metade o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) sobre certos consertos para 10%, e vários estados introduziram um sistema de vouchers de até 100 euros para financiar os reparos.
Na Hungria, o governo estendeu o período de garantia de certos eletrodomésticos para até três anos.
Além disso, a Austrália divulgou um relatório sobre o “direito de consertar”, e as conclusões devem ser apresentadas em breve, enquanto alguns estados dos EUA têm o direito de consertar em vigor há uma década, embora seja focado sobretudo em veículos.
Esses avanços também vão exigir mudanças significativas na forma como os fabricantes de bens de consumo operam atualmente e nos produtos que eles produzem, diz Chloe Mikolajczak da campanha Right to Repair, uma coalizão de 40 organizações em 15 países europeus.
Muitos fones de ouvido sem fio, observa ela, não podem ser desmontados, tampouco consertados; uma vez que as baterias se esgotam, precisam ser descartadas; enquanto os smartphones estão cada vez mais complexos com várias câmeras, o que os torna mais difíceis de consertar.
As atualizações de software são parte dessa reparabilidade, acrescenta Mikolajczak, e os fabricantes precisarão manter os dispositivos mais antigos.
No entanto, nem sempre é o caso.
A fabricante de alto-falantes Sonos foi criticada em 2019 por um recurso de software que tornava os dispositivos mais antigos inutilizáveis.
E a Apple gerou polêmica ao reduzir intencionalmente a capacidade de computação dos iPhones mais antigos em uma prática conhecida como “obsolescência programada”.
A DigitalEurope, órgão da indústria de tecnologia digital que representa empresas como Amazon, Apple e Google, se recusou a comentar o assunto quando contatada pela BBC Future Planet.
Mas um porta-voz fez referência a um posicionamento oficial da DigitalEurope, que observa que os seus “membros há muito tempo abriram caminho para o avanço ambiental” e que “enfatiza a necessidade de garantir requisitos equilibrados” para o direito de consertar.
O documento exige que as regras sobre o direito de consertar sejam “proporcionais, viáveis, rentáveis e respeitem o sigilo comercial” e defende que “os fabricantes devem continuar a optar por um serviço profissional por meio de uma rede de parceiros técnicos certificados, que, segundo eles, são preferíveis a técnicos externos por questões de qualidade, de segurança, comerciais e ambientais.
“Não acreditamos que esses argumentos se sustentem”, diz Mikolajczak, no entanto.
“Não há razão para pensar que consertos de terceiros resultariam em danos. E, se as empresas concorrentes realmente quisessem olhar dentro dos dispositivos da concorrência, não precisariam de um técnico terceirizado para fazer isso. Essas restrições apenas tornam mais difícil e mais caro para os consumidores consertar os dispositivos”, acrescenta.
Para quem vai aos cafés de conserto de Paris, a realidade dos reparos é completamente diferente.
As conversas animadas, o cheiro de bolo recém-saído do forno e o barulho das ferramentas tomam conta da sala, que conta com cerca de uma dúzia de estações de conserto ocupadas pelos participantes.
“Me disseram que não poderia ser consertado”, diz Caroline, mostrando o parecer do fabricante atestando que sua máquina de costura de 20 anos é irreparável.
“Mas identificamos o problema em questão de minutos. As coisas funcionam melhor quando resolvemos o problema com nossas próprias mãos.”