Contra argumentos não há fatos. Por Paulo Nogueira Batista Jr.

Por Paulo Nogueira Batista Jr.

Depois de uma rápida incursão pelo terreno da literatura e da cultura, a coluna volta hoje a seus temas habituais – economia, política, Brasil. Não o faço com grande satisfação, leitor. Afinal, convenhamos, que prazer há em fazer a crítica das barbaridades que vêm sendo cometidas em nosso País por um governo caricato? É preciso escolher bem os adversários, já diziam os antigos. Se escolhes adversários medíocres, logo te tornarás tão medíocre quanto eles.

Mas, enfim, não há muito o que fazer. O Brasil optou por este caminho em 2018, e estamos pagando o preço. Retomo então o fio da minha meada. O bom filho à casa torna – ainda que tenha dificuldade de reconhecer essa casa como sua.

Observações sobre a nossa barbárie econômica

Queria me dedicar hoje a um lado da nossa barbárie que antecede Bolsonaro e que continuou com ele e Guedes – o imenso atraso das ideias e práticas econômicas no nosso querido País. O que passa aqui por ciência econômica é uma outra caricatura, e paupérrima, do que se ensinava e propagava nos Estados Unidos há vinte ou trinta anos, época em que alguns luminares da bufunfa brazuca lá fizeram seus estudos de economia. Como se vê, estamos nos especializando em caricaturas.

Vamos dar nome aos bois para quebrar um pouco a monotonia? Vamos. Por exemplo, Ilan, sopa de letrinhas, Goldfayn ou Goldfajn. É bem verdade que esse aí nem é propriamente brasileiro, diga-se de passagem. Nascido em Israel, é portador de dupla nacionalidade israelense/brasileira. Não obstante, chegou à presidência do Banco Central do Brasil. Em outros países, mais conscientes do interesse nacional, portadores dessa duplicidade não podem chegar a altos postos governamentais.

Mas isso não é nem o pior. Durante o governo Temer, o sopa de letrinhas era considerado pela mídia tradicional uma das cabeças pensantes do chamado dream team econômico. Dream team? Cabeças pensantes? Pensamento ali não existia, mas a mera reprodução dos preconceitos do mercado financeiro e a imitação servil de padrões estrangeiros já superados lá fora. Melhor seria falar das cabeças miméticas do nightmare team do governo Temer – afinal, foi exatamente essa trupe mambembe que nos legou, para mencionar apenas uma realização imorredoura, o famigerado teto de gastos constitucional – uma das regras fiscais mais mal pensadas da história. E o governo Bolsonaro sofreu horrores com o apego do mercado e da mídia a essa regra inviável. Vamos falar português mais claro, com o risco de ofender ouvidos mais sensíveis – o teto é umas das regras fiscais mais tolas da história econômica brasileira e mundial.

Nesse ponto, preciso reconhecer, entretanto, certa criatividade do nightmare team. O teto de gastos, pelo que sei, é uma ideia original, uma jabuticaba brasileira, sem paralelo na experiência mundial, pelo menos na dos principais países. Só existe, pelo que sei, aqui no Brasil. Pena que seja uma ideia perfeitamente idiota. Congela em termos reais, por 20 anos, no nível de 2016, a quase totalidade dos gastos primários (isto é, não-financeiros) do setor público federal. Faça chuva ou faça sol, o gasto primário não poderia ultrapassar esse teto. E a regra foi colocada, para maior efeito destrutivo, no texto da Constituição Federal. Exatamente as mesmas figuras carimbadas que viviam, e ainda vivem, criticando a Constituição de 1988 por seu excessivo detalhamento, apoiam (ou apoiavam até recentemente) com vigor, até com fervor religioso, a presença de uma regra fiscal detalhada no texto constitucional. Não sei se saiu da cabeça de Ilan, sopa de letrinhas, essa ideia abstrusa. Talvez não, pois não consta dos manuais de economia norte-americanos, e o bufunfeiro em questão não costuma arriscar-se com novidades.

Permita-me, leitor, pequena digressão. Gosto de descrever meus personagens. No caso em tela, basta dizer que se trata de um gordo, de rotunda e generosa circunferência. Diferentemente, porém, de outros gordos, mais folclóricos, mais interessantes, este não tem nenhum senso de humor, nenhuma presença de espírito, nenhum mísero lampejo. Um dia, Goldfain caminhava incauto pela Avenida Faria Lima quando tropeçou, de repente, numa ideia. Assustou-se e, olhando para o lado constrangido, disfarçou, ajeitou-se rapidamente, puxou um pigarro imaginário e seguiu caminho, suando frio. Dirigiu-se, ato contínuo, a uma instituição bancária próxima, onde já recomposto do susto, expos a sua sabedoria, também imaginária, e embolsou polpuda remuneração, esta bem real, pelos conselhos fornecidos. Quando deixou o recinto, todos sem exceção, do presidente do banco aos estagiários, dos diretores do conselho aos ascensoristas, todos se entreolhavam, admirados, e exclamavam – “Que cabeça! Que cabeça!”.

Estou me alongando um pouco nessa digressão, bem sei. Mas, afinal, uma das funções do colunista é divertir o leitor. E, como lembrava Galbraith, o humor é um instrumento de considerável valor científico para o economista, uma vez que o comportamento econômico tem dimensões eminentemente ridículas. Acrescento, para encerrar, que ainda há salvação para o ilustre bufunfeiro. Eis que ele acaba de ser nomeado para a chefia de um departamento no Fundo Monetário Internacional, em Washington. Ora, o FMI, desde a crise financeira de 2008, está em processo de aggiornamento, revendo teorias, dogmas e recomendações. Assim, em breve, veremos o bufunfeiro brazuca/israelense defender teses um pouco menos ultrapassadas.

O leitor, se já tiver certa idade, dirá que “peguei assinatura” com o sopa de letrinhas. De forma alguma. Estou disposto a reconhecer as suas qualidades, publicamente e sem hesitação. O problema, leitor, é que não as encontro!

Apresso-me a fazer uma última ressalva. Não pense, leitor, que a descrição acima é obra de alguma “gordofobia” da minha parte. Sou um admirador ferrenho de vários gordos, muitos dos quais se destacam por suas qualidades humanas – inteligência, criatividade, humor, entre outras. Não é o caso, porém, do ex-integrante do nightmare team.

Teto de gastos – de âncora a símbolo

Mas vamos deixar bufunfeiros individuais de lado e retornar ao plano mais geral das ideias e políticas econômicas. Ideias é exagero. O que temos no Brasil são mais preconceitos e dogmas do que ideias. Como a reflexão é rala, banqueiros, economistas e jornalistas econômicos caem em contradições escandalosas. Há exceções notáveis, mas a regra é essa, lamentavelmente. É o que eu costumo chamar de ortodoxia econômica de galinheiro.

Voltemos um instante ao famigerado teto de gastos. Com o abrupto crescimento dos precatórios judiciais, algo que o Ministério da Economia do atual governo não previu, inventou-se mais um expediente – postergar grande parte desses pagamentos em nome da defesa do teto. No popular: tratou-se de providenciar um deslavado “calote” nos detentores de precatórios, que são, recorde-se, sentenças judiciais transitadas em julgado, contra as quais não cabe mais recurso. Por meio de mais uma proposta de emenda constitucional, a PEC dos precatórios, ora em tramitação no Congresso, tenta-se abrir espaço para duas coisas: 1) a introdução de um novo programa social que o presidente Bolsonaro possa chamar de seu (o Auxílio Brasil no lugar do Bolsa Família da era petista); e 2) as volumosas emendas parlamentares do Centrão. São, como sabemos, objetivos fundamentais para a aliança Bolsonaro/Lira, com vistas às eleições de 2022.

Aproveitou-se a PEC dos precatórios para também redefinir e elevar o teto constitucional de forma casuística. O teto de 2022 será corrigido, não mais pela inflação acumulada até junho de 2021, mas por uma projeção para o ano. Como a projeção será maior, a mudança na base de correção permite aumento do teto no ano que vem.1 Aprovada na Câmara, a PEC será apreciada no Senado. A armação enfrenta ainda a decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender a execução de emendas parlamentares, o que atinge em cheio o esquema político do qual a PEC dos precatórios faz parte.

Guedes e sua equipe espernearam o quanto puderam e vários técnicos acabaram abandonando o Ministério da Economia. Mas a ala política do governo, principalmente o próprio Presidente, e o Congresso se renderam ao óbvio. O teto de gastos não é consistente com a realidade política, social e econômica. Ficou claro que o teto não era sustentável na sua forma original. Vão se acumulando as gambiarras para permitir que o Executivo e o Congresso furem o teto sem abandoná-lo inteiramente. Até os seus defensores mais fervorosos se mostram dispostos a renegá-lo. O próprio ministro da Economia já se refere ao teto como “símbolo”, como “bandeira de austeridade” – e pede pragmatismo.

Mesmo assim, a linha dura da ortodoxia ainda tenta uma rearguard action, uma ação de retaguarda em defesa do teto. Integrantes do mercado financeiro argumentam que a sua preservação justifica plenamente a postergação de grande parte dos precatórios. Ora, ora. Eu vivi, leitor, para ver a turma da bufunfa defender um calote na dívida pública! Os bufunfeiros não deveriam, entretanto, esquecer que, por legítima extensão do argumento, a defesa da austeridade fiscal poderia então recomendar um calote também nos títulos públicos em mãos dos investidores. Felizmente para eles, a regra do teto só se aplica (e não por acaso!) ao gasto primário, e não aos juros da dívida. Mesmo assim, a rigor, se o importante é impedir o crescimento real do gasto e da dívida do setor público, e se calotes são afinal defensáveis, a turma da bufunfa deveria, por coerência, defender um calote mais amplo na dívida governamental.

Mas não quero, querido leitor, ser muito ríspido na crítica, nem ficar cobrando coerência dos outros. Lembro que, como dizia Oscar Wilde, coerência é a virtude dos que não têm imaginação. E, como se vê, não é dessa virtude de segunda categoria, não é de coerência ou apego a princípios, que se pode acusar a turma da bufunfa.

A autonomia do Banco Central começa de forma bisonha

Para ampliar um pouco essa pequena diatribe contra a ortodoxia de galinheiro, passo da política fiscal para a monetária. Na questão da moeda e do Banco Central, reencontramos os mesmos traços e cacoetes da turma da bufunfa e da mídia que ela controla e que lhe dá fiel cobertura. Como diria Nelson Rodrigues, o que temos aqui é o patético raiando pelo sublime. Patética, a ênfase caricata com que se defendeu a autonomia legal do Banco Central, instituída afinal em 2021. Sublime, o futuro que se vislumbrava para um Brasil “moderno”, dotado de uma instituição monetária central, insulada das podridões da política eleitoral e parlamentar, comandada por presidentes e diretores com mandatos fixos e longos, não coincidentes com o do Presidente da República.

Cercada de expectativas fantasiosas, a estreia do Banco Central autônomo foi bisonha. Já no seu primeiro ano, 2021, a inflação irá estourar o teto da meta estabelecida – e por larga margem. Há risco real de que o fiasco se repita em 2022. Assim, leitor, veja a ironia! Sem autonomia formal, o Banco Central costumava ficar dentro da meta de inflação. Agora, com autonomia assegurada por lei, o presidente da autoridade monetária vai ter que explicar por que não consegue cumprir o seu mandato neste ano e talvez, também, no ano que vem.

Outros fatores, dirão os economistas bufunfeiros, explicam a dificuldade desse Banco Central maravilhosamente autônomo em cumprir o seu objetivo central. A culpa será certamente atribuída aos políticos populistas, no Congresso e no Executivo, que não conduzem a política fiscal de forma responsável. Note-se o que isso significa em última análise. Por coerência lógica, a política fiscal também teria que ser insulada, de alguma forma, dos políticos e da política. Reductio ad absurdum da doutrina ortodoxa!

Desempenho das contas públicas – melhor do que parece

Destaco mais uma e última constrangedora inconsistência entre os fatos e a pregação econômica predominante. Apesar de todo o ruido sobre “risco fiscal” no Brasil, o desempenho das contas públicas primárias tem sido bem razoável em 2021, melhor do que o esperado.

Um indicador importante da política fiscal é o resultado primário, a diferença entre as receitas e despesas não-financeiras do setor público. Em 2020, influenciado pela pandemia e pela recessão, o déficit primário do setor público consolidado (União, Estados, municípios, empresas estatais) foi maior que 9% do PIB. Em 2021, esse déficit cairá para apenas 1% do PIB, segundo a mediana das projeções de mercado coletadas semanalmente pelo Banco Central. A dívida líquida do setor público, de 63% do PIB no final de 2020, deve cair para pouco mais de 60% do PIB, segundo as projeções de mercado.2 Assim, os resultados esperados para 2021 não confirmam a noção muito difundida de que estaríamos vivendo um desastre fiscal.

Será então que o problema residiria na incerteza fiscal para o ano eleitoral de 2022? Talvez. Note-se, contudo, que também aqui os dados não parecem confirmar o discurso alarmista. As projeções coletadas pelo Banco Central junto ao mercado indicam, por enquanto, que o déficit primário seguiria próximo de 1% do PIB em 2022, e que a dívida líquida aumentaria pouco, para 63% do PIB no final do ano que vem. Essas projeções talvez sejam otimistas demais. Mas são do próprio mercado que tanto agita a bandeira da crise fiscal. Difícil conciliá-las com cenários de terror para as contas públicas.

Acrescento que as projeções do FMI não discrepam muito das que vêm sendo coletadas pelo Banco Central. Para este ano, o FMI projeta um déficit primário de 1,7% do PIB; para 2021, de 1,0% do PIB.3 De novo, pode ser que os técnicos do FMI também estejam redondamente enganados e que o ano eleitoral de 2022 traga, sim, uma acentuada deterioração dos resultados fiscais. A ver. Mas não é o que se prevê até agora. Fica a suspeita de que, mais uma vez, a retórica do mercado mostre propensão a exagerar o risco fiscal. Com a vantagem, talvez apenas acidental, de aumentar os prêmios de risco e a remuneração associada à posse de títulos públicos…

Realmente, com a alta da taxa básica de juro, a Selic, e dos juros de prazo mais longo (em função do aumento do risco fiscal percebido, ou declarado, e de fatores externos), as despesas nominais de juros estão aumentando de forma significativa, para 4,9% do PIB em 2021 e 5,4% do PIB em 2022, também segundo as projeções de mercado. Assim, o déficit nominal cresce, a despeito do déficit primário reduzido. Note, leitor, que a deterioração resulta da alta das taxas de juro incidentes sobre a dívida pública, beneficiando rentistas e instituições financeiras, e não de descontrole dos gastos primários ou de diminuição da arrecadação. Nothing to see here, como dizem ironicamente os americanos. Curioso – não é mesmo? –, que disso quase não se fale…

Sem ilusões

Mas chega. Termino aqui, leitor. Já falei demais. Não tenho ilusões. Não adianta muito invocar fatos, mostrar estatísticas, apontar contradições gritantes entre doutrina e realidade.

Contra argumentos não há fatos. E essa inversão da frase feita, esse pequeno paradoxo, resume o que eu queria dizer hoje.

 

Notas

1 Para mais detalhes sobre a PEC dos precatórios e projeções para o orçamento de 2022, ver Manoel Pires, “Desafios econômicos e políticos para o orçamento do próximo ano”, Blog do IBRE, 9 de novembro de 2021. Ver, também, Luiz Schymura, “Os riscos da PEC dos precatórios”, Valor Econômico, 9 de novembro de 2021, p. A2.

2 Essas projeções de mercado, assim como as referidas nos parágrafos seguintes, podem ser encontradas no Relatório Focus, publicado pelo Banco Central. Ver Banco Central do Brasil, Focus – Relatório de Mercado, 5 de novembro de 2021.

3 International Monetary Fund, Brazil – 2021 Article IV Consultation Staff Report, IMF Country Reports No. 21/217, September 2021, table 1.

***

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 12 de novembro de 2021.

O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.

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