Contestando a culpa

ZumbiPor Vanessa Ibrahim.

Há uns quinze anos atrás, participando de um congresso em Minas Gerais, uma catarinense de Balneário Camboriú com sobrenome alemão me disse que em seu estado só existiam loiros – até nas favelas todos eram brancos. Eu, que ainda não tinha descido mais ao sul do país do que São Paulo, cogitei que a colonização europeia efetivamente tivesse “branqueado” o sul, e era o que eu via nas reportagens sobre Oktoberfest e o que me transmitia o biotipo das famosas modelos vindas da região. Porém, o incômodo causado pela satisfação da moça em admitir a pobreza, porém uma pobreza branca, e talvez por isso perdoável, fez com que eu não esquecesse o que disse.

Morando em Florianópolis há dois anos, vejo que a garota estava certa: existem brancos nas classes populares de Santa Catarina. E confesso, ainda me causa estranhamento ver algumas das moças responsáveis pela limpeza do órgão público onde trabalho, com seus cabelos loiros e olhos azuis. Mas, pasmem, ao lado delas trabalham negras! Trabalhamos com assentamentos rurais que estão repletos de gente de tez morena e com a regularização de mais de uma dezena de territórios remanescentes de quilombos no estado, inclusive um em Balneário Camboriú… Será que a moça não olhava ao seu redor ou optava não ver? Mas não, não é culpa dela.

Conheci por aqui município nomeado com a data da abolição da escravatura que desmente a origem negra de seu povoamento. E ontem, aprendi um pouco mais. Estou sobre terra cabocla, onde o estado reconhece em lei que seu povo é originário de gente mestiça de negro, índios, migrantes. Gente que, no início do século passado, travou a Guerra do Contestado pelo direito de viver onde viviam, contra multinacionais autorizadas pelo Estado a trazer o “desenvolvimento” da estrada de ferro, dos colonos e da exploração de sua natureza. Foram mortos. Talvez mais de 10 mil.

O que aconteceu foi uma tentativa de limpeza étnica que buscava aproximar do Hemisfério Norte esse pedaço de terra localizado ao sul da linha do Equador. Uma tentativa reforçada diariamente quando os catarinenses omitem seus negros e caboclos para garantir sua linhagem europeia. Mas não, não é culpa dos catarinenses.

A culpa é de nós, paulistas, quando culpamos os nordestinos pelas nossas mazelas. A culpa é dos nordestinos que negam seus quilombos. Daquele jogador carioca de cabelo crespo que não se considera negro. Dos rondonienses que não se veem ribeirinhos. A culpa é de todos os brasileiros que não se reconhecem índios. A culpa, com certeza, é daquele que pede impeachment e se diz representado pelo “príncipe” de sobrenome Orleans e Bragança que defende a paz no campo naqueles moldes do Constestado. Para, gente, esses somos nós e a culpa é nossa.

Vanessa Ibrahim é jornalista e servidora do Incra/SC

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