Por Jorge Figueiredo
Vivemos tempos com dimensão histórica. O ruir do velho mundo acelera-se e nada será como dantes. Uma nova ordem económica internacional anuncia-se, em meio às dores do parto.
A poeira das sanções anti-russas ainda não assentou para que se faça uma análise fria e com arcabouço teórico. No entanto, em meio ao nevoeiro, algumas coisas já se podem dizer/prever. A conclusão de ordem geral é que ondas do choque começam a precipitar-se. Tendências que já existiam agora aceleram-se. Aqui se elencam algumas, em modo de tópicos.
A primeira consequência é o acelerar da desdolarização do mundo. Pode-se dizer que esta começou em 15/Agosto/1971 quando o dólar foi desligado do ouro, mas agora adquire velocidade vertiginosa. A política generalizada de sanções – contra Cuba, Coreia do Norte, Irão e agora contra uma grande potência como a Rússia – obriga os países atingidos a procurarem medidas que as contornem. Portanto, o comércio internacional dos sancionados terá de recorrer cada vez mais a acordos bilaterais, como explicou Prabhat Patnaik. Isto tem o efeito paradoxal de criar um regime de facto alternativo ao neoliberalismo. Ao mesmo tempo, precipita ainda mais a desdolarização e começa a por fim à globalização. Assim, cada vez mais, o comércio internacional tenderá a ser feito à margem do dólar. A contrapartida disso é que o yuan chinês, o ouro e as criptomoedas tenderão a ter um papel progressivamente maior.
Com a desdolarização, fica comprometido o direito de seignoriage que os EUA detinham sobre o resto do mundo: a máquina de emissão [1] de US dólares que permite aos EUA comprarem bens e serviços ao resto do mundo por quase nada. Este “privilégio exorbitante”, como o classificou De Gaulle, chega assim ao seu fim. Isto é uma boa notícia para a humanidade, mas uma péssima notícia para a potência imperial. Para terem o que precisam terão de trabalhar. As forças armadas dos EUA e as suas 800 bases militares espalhadas pelo mundo já não poderão ser financiadas pela parte da humanidade que faz trabalho produtivo.
A segunda consequência é de ordem financeira. A truculência de Biden com a apreensão dos 300 mil milhões de dólares de divisas Forex depositadas no estrangeiro pelo Banco Central da Rússia (47% do seu total de US$640 mil milhões) dispara um sinal de alerta vermelho a todos os bancos centrais do mundo. Aquilo que agora aconteceu à Rússia poderá acontecer a qualquer país cuja política não agrade a Washington. Os BCs e magnatas saberão tirar as consequências e certamente procurarão reduzir a sua exposição a esse perigo. Esta truculência, já experimentada antes pelo Irão e pela Venezuela, não pode deixar de ter efeitos em cadeia. A diferença entre eles e a Rússia é que uma grande potência tem mais condições de retaliar. Algumas das retaliações já anunciadas – não pagamento em dólar de títulos da dívida pública russa a credores de uma lista de países declarados hostis – ferem rentistas do ocidente, mas certamente ainda há outras na forja (tanto financeiras como económicas).
Ainda no plano financeiro, a exclusão de muitos bancos russos do SWIFT provocará a prazo o definhamento deste sistema de pagamentos e o desenvolvimento de sistemas alternativos, nomeadamente o russo e o chinês. As importações/exportações dos demais países do mundo que quiserem fazer negócios com a Rússia precisarão integrar-se a estes sistemas alternativos. Isto, a par da bilateralização do comércio, significará uma nova machadada no capital financeiro.
Uma consequência divertida é também o susto que as apreensões de propriedades de oligarcas russos, agora verificadas no ocidente, estará a provocar nos demais oligarcas do mundo. Nesta altura eles estarão a pensar “se fizeram isso com as propriedades deles também poderão fazer o mesmo com as minhas”. Assim, aqueles que mantinham as suas riquezas na Grã-Bretanha ou nos EUA terão de considerar onde é que as põem agora. A City e a Wall Street irão perder clientes.
A terceira consequência tem a ver com a União Europeia e os seus estúpidos dirigentes, agora transformados em serviçais lobotomizados da potência imperial. Neste caso, pode-se dizer que a consequência não era inevitável e sim devida a tais dirigentes. No plano imediato já se verifica uma penúria energética com altas espantosas de preços, o que provoca enormes dificuldades aos povos europeus e uma perda de competitividade da indústria europeia. Esta já ocorria antes, o que resultava em deslocalizações industriais. Mas agora a presente alta espantosa nos preços da electricidade, do gás natural e dos refinados de petróleo poderá ser a pá de cal num sub-continente que já foi um líder industrial. Não se trata apenas do episódio estarrecedor de governantes alemães a suicidaram o país com o cancelamento do Nord Stream 2. Trata-se de algo mais geral: a irracionalidade da política energética da UE pelo facto de estar ao serviço do capital monopolista. Exemplos: a tarificação da electricidade pelo custo marginal para melhor extorquir os consumidores; o não aproveitamento de todas as potencialidades do gás natural, nomeadamente nos transportes; a ideologia tola da “descarbonização”; a promoção de iniciativas economicamente ruinosas como os veículos eléctricos e a produção de hidrogénio em grande escala, etc.
O assunto é tão vasto que exige estudos à parte, mas a conclusão de ordem geral que já se pode tirar é que na UE tudo aponta para uma desestruturação sistémica. Isso se verifica até no burgo lusitano, onde a irracionalidade dos governantes ao invés de atenuar os problemas agrava-os com privatizações selvagens, destruições do parque industrial e energético, ausência de políticas industriais e energéticas e imposição de medidas absurdas, etc. O começo do fim de neoliberalismo está a ser tormentoso. Nesse mar encapelado a pequena nau lusitana, submissa à UE e amarrada ao euro, precisaria de dirigentes muito mais lúcidos do que aqueles que tem.