Consequências económicas das sanções (algumas)

Porque isto é claramente um momento de transição. Ninguém é capaz de dizer o que tudo isto realmente significa para uma outra geração. Por outro lado, como antropólogo, não posso ajudar mas vejo este confuso jogo de símbolos como importante em si e por si mesmo, capaz mesmo de desempenhar um papel crucial na manutenção das formas de poder que afirma representar. Em parte, estes sistemas funcionam porque ninguém sabe como eles realmente funcionam. David Graeber, Debt: The First 5000 Years

Por Jorge Figueiredo

Vivemos tempos com dimensão histórica. O ruir do velho mundo acelera-se e nada será como dantes. Uma nova ordem económica internacional anuncia-se, em meio às dores do parto.

A poeira das sanções anti-russas ainda não assentou para que se faça uma análise fria e com arcabouço teórico. No entanto, em meio ao nevoeiro, algumas coisas já se podem dizer/prever. A conclusão de ordem geral é que ondas do choque começam a precipitar-se. Tendências que já existiam agora aceleram-se. Aqui se elencam algumas, em modo de tópicos.

A primeira consequência é o acelerar da desdolarização do mundo. Pode-se dizer que esta começou em 15/Agosto/1971 quando o dólar foi desligado do ouro, mas agora adquire velocidade vertiginosa. A política generalizada de sanções – contra Cuba, Coreia do Norte, Irão e agora contra uma grande potência como a Rússia – obriga os países atingidos a procurarem medidas que as contornem. Portanto, o comércio internacional dos sancionados terá de recorrer cada vez mais a acordos bilaterais, como explicou Prabhat Patnaik. Isto tem o efeito paradoxal de criar um regime de facto alternativo ao neoliberalismo. Ao mesmo tempo, precipita ainda mais a desdolarização e começa a por fim à globalização. Assim, cada vez mais, o comércio internacional tenderá a ser feito à margem do dólar. A contrapartida disso é que o yuan chinês, o ouro e as criptomoedas tenderão a ter um papel progressivamente maior.

Com a desdolarização, fica comprometido o direito de seignoriage que os EUA detinham sobre o resto do mundo:   a máquina de emissão [1] de US dólares que permite aos EUA comprarem bens e serviços ao resto do mundo por quase nada. Este “privilégio exorbitante”, como o classificou De Gaulle, chega assim ao seu fim. Isto é uma boa notícia para a humanidade, mas uma péssima notícia para a potência imperial. Para terem o que precisam terão de trabalhar. As forças armadas dos EUA e as suas 800 bases militares espalhadas pelo mundo já não poderão ser financiadas pela parte da humanidade que faz trabalho produtivo.

A segunda consequência é de ordem financeira. A truculência de Biden com a apreensão dos 300 mil milhões de dólares de divisas Forex depositadas no estrangeiro pelo Banco Central da Rússia (47% do seu total de US$640 mil milhões) dispara um sinal de alerta vermelho a todos os bancos centrais do mundo. Aquilo que agora aconteceu à Rússia poderá acontecer a qualquer país cuja política não agrade a Washington. Os BCs e magnatas saberão tirar as consequências e certamente procurarão reduzir a sua exposição a esse perigo. Esta truculência, já experimentada antes pelo Irão e pela Venezuela, não pode deixar de ter efeitos em cadeia. A diferença entre eles e a Rússia é que uma grande potência tem mais condições de retaliar. Algumas das retaliações já anunciadas – não pagamento em dólar de títulos da dívida pública russa a credores de uma lista de países declarados hostis – ferem rentistas do ocidente, mas certamente ainda há outras na forja (tanto financeiras como económicas).

Ainda no plano financeiro, a exclusão de muitos bancos russos do SWIFT provocará a prazo o definhamento deste sistema de pagamentos e o desenvolvimento de sistemas alternativos, nomeadamente o russo e o chinês. As importações/exportações dos demais países do mundo que quiserem fazer negócios com a Rússia precisarão integrar-se a estes sistemas alternativos. Isto, a par da bilateralização do comércio, significará uma nova machadada no capital financeiro.

Uma consequência divertida é também o susto que as apreensões de propriedades de oligarcas russos, agora verificadas no ocidente, estará a provocar nos demais oligarcas do mundo. Nesta altura eles estarão a pensar “se fizeram isso com as propriedades deles também poderão fazer o mesmo com as minhas”. Assim, aqueles que mantinham as suas riquezas na Grã-Bretanha ou nos EUA terão de considerar onde é que as põem agora. A City e a Wall Street irão perder clientes.

A terceira consequência tem a ver com a União Europeia e os seus estúpidos dirigentes, agora transformados em serviçais lobotomizados da potência imperial. Neste caso, pode-se dizer que a consequência não era inevitável e sim devida a tais dirigentes. No plano imediato já se verifica uma penúria energética com altas espantosas de preços, o que provoca enormes dificuldades aos povos europeus e uma perda de competitividade da indústria europeia. Esta já ocorria antes, o que resultava em deslocalizações industriais. Mas agora a presente alta espantosa nos preços da electricidade, do gás natural e dos refinados de petróleo poderá ser a pá de cal num sub-continente que já foi um líder industrial. Não se trata apenas do episódio estarrecedor de governantes alemães a suicidaram o país com o cancelamento do Nord Stream 2. Trata-se de algo mais geral: a irracionalidade da política energética da UE pelo facto de estar ao serviço do capital monopolista. Exemplos: a tarificação da electricidade pelo custo marginal para melhor extorquir os consumidores; o não aproveitamento de todas as potencialidades do gás natural, nomeadamente nos transportes; a ideologia tola da “descarbonização”; a promoção de iniciativas economicamente ruinosas como os veículos eléctricos e a produção de hidrogénio em grande escala, etc.

O assunto é tão vasto que exige estudos à parte, mas a conclusão de ordem geral que já se pode tirar é que na UE tudo aponta para uma desestruturação sistémica. Isso se verifica até no burgo lusitano, onde a irracionalidade dos governantes ao invés de atenuar os problemas agrava-os com privatizações selvagens, destruições do parque industrial e energético, ausência de políticas industriais e energéticas e imposição de medidas absurdas, etc. O começo do fim de neoliberalismo está a ser tormentoso. Nesse mar encapelado a pequena nau lusitana, submissa à UE e amarrada ao euro, precisaria de dirigentes muito mais lúcidos do que aqueles que tem.

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