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O aumento da fome no Brasil é uma das problemáticas que o novo governo federal deve enfrentar nos próximos anos. Os graus de desigualdades sociais se agravam quando a fome é combinada com outro fator: a crise climática. Dados do Sistema de Informações e Análises sobre Impactos das Mudanças Climáticas (Adapta Brasil), instituído pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), mostram que mais da metade dos municípios da Amazônia Legal não possuem condições e estruturas mínimas para a enfrentar as consequências da crise, colocando, assim, boa parte da região em altos graus de vulnerabilidade e insegurança alimentar. São 62% dos municípios em risco e a Amazônia é a região mais afetada do Brasil.
O índice de vulnerabilidade mede a capacidade adaptativa de municípios frente aos efeitos das mudanças climáticas, que inclui planejamento, logística, manutenção e capacidade adaptativa. Ele mede, também, a sensibilidade em relação às mudanças climáticas, que inclui a produção de alimentos, os estabelecimentos agropecuários e a qualidade dos produtos alimentícios.
A segurança alimentar e nutricional é um conceito definido pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) que significa o direito da população ao acesso à alimentação em quantidade e com qualidade para manter uma vida saudável e ativa. A forma com que o governo atua nessa área é por meio da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, promulgada em 2006.
Nessa combinação de informações, o Mato Grosso é o estado com o maior número de municípios em vulnerabilidade, são 24. Depois, vem o Tocantins, com 15 e, em seguida, o Maranhão, com 10.
É no Mato Grosso que estão os municípios do país que atingiram o grau mais elevado de vulnerabilidade: São Félix do Araguaia e Gaúcha do Norte. Dos 1,7 mil municípios que estão com índice classificado como de baixa vulnerabilidade, apenas 50 fazem parte da Amazônia Legal.
Os dados apenas constatam o que já é sentido por extrativistas, ribeirinhos e agricultores na Amazônia. Em Rondônia, por exemplo, a agricultora familiar Cleide Nascimento, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), percebe que o tempo para plantar mudou. Ela cultiva hortaliças, banana, mandioca e café. “O tempo ficou ‘meio doido’, né? Então a gente fica sem saber direito quando pode plantar. Tem período que chove muito, então as plantações não vingam”, disse à Rede Cidadã InfoAmazonia.
O coordenador da Adapta Brasil, Jean Ometto, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), explica o que deve ser feito a partir dos dados que indicam que a Amazônia é a região mais necessitada de políticas públicas.
“Quando falamos de vulnerabilidade da região, vemos um quadro muito sensível. Temos municípios com graus muito altos. Então, se você tiver que ter um auxílio para a população, a região do norte do Amazonas, por exemplo, tem uma necessidade maior. A capacidade adaptativa da Amazônia é muito baixa, esse é um problemão. Porque logística e abastecimento é um problema, planejamento e gestão são um problema, manutenção da produção é um problema e a capacidade socioeconômica das famílias como um todo também”, disse.
Extremos
Nos últimos anos, os estados da Amazônia Legal têm enfrentado cheias, vazantes e estiagens extremas, até com recordes históricos, que afetam centenas de pessoas e colocam cidades em situação de emergência. Os eventos climáticos não poupam ninguém e afetam as pessoas que vivem nos centros urbanos e, também, as que estão nas zonas rurais.
Em junho de 2022, o Amazonas passou por mais uma cheia histórica, a 8º desde 2009, que colocou 75% dos municípios em situação de emergência. No mesmo ano, a vazante também ocorreu de forma anormal em algumas regiões do estado, prejudicando quem precisava se deslocar pelos rios, como estudantes e pessoas em busca de atendimento médico.
Em 2021, o Acre passou por uma enchente severa que atingiu mais de 120 mil pessoas. Nesses momentos, as famílias não têm onde ficar, porque as casas inundam, é difícil resgatar ou transferir animais, as plantações são alagadas e a renda dos moradores cai, além da própria produção, que é a fonte de sustento e alimento das famílias.
Em Santarém, o portal Tapajós de Fato noticiou, em janeiro deste ano, que os efeitos da crise climática já modificam a alimentação e a venda de pescados na região. Na reportagem “Pescadores já percebem a diminuição do pescado como efeito das mudanças climáticas no Baixo Amazonas”, o veículo escutou os pescadores que relataram as alterações em lagos e nos ciclos das águas.
No Amapá, mais de 30 mil pessoas também foram atingidas pelas enchentes em 2022, alguns municípios registraram recordes históricos.
Em outubro de 2021, o site O Vocativo publicou o resultado de um levantamento mostrando que nenhum estado da Amazônia Legal possui sistemas de alerta e planos de contingência permanentes para eventos extremos, como inundações, secas, incêndios florestais e ondas de calor.
O pesquisador do Instituto Mamirauá, Leonardo Capeleto, que tem mestrado e doutorado em ciência do solo, explica que os desafios climáticos são maiores para as pessoas que vivem nas zonas rurais. “A gente tem o maior paradoxo da Amazônia, porque temos a sensação de que ter muita água vai ser sinal de muito peixe. Afinal de contas, você não precisa nem sair de casa para pescar, dá pra pescar na janela, mas não funciona assim. Quando tem muita água os peixes se diluem, então quando as cheias são muito longas, tem impacto demais na pesca”, explicou.
Além do impacto no pescado, um estudo desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) mostrou que as mudanças climáticas estão afetando a produção da castanha-da-amazônia. Em 2017, a safra teve oito vezes menos a quantidade normal da coleta. De acordo com o estudo, a queda foi resultado de um dos El Niños mais intensos da história que afetou a América do Sul entre 2015 e 2016. Com isso, a produção e coleta da castanha, feita por habitantes da Amazônia, foi impactada e os preços subiram, dificultando o acesso até de quem vive na região.
O Tapajós de Fato também mostrou como a desregulação dos níveis do rio e a imprevisibilidade das cheias e secas afetam a produção de açaí. “Os pés de açaizeiros que garantem uma fonte de renda a mais para o aposentado Francisco Furtado, também estão sendo impactados com o excesso de águas em suas raízes, muitos não resistiram e acabaram virando sob a lama que tem se formado no solo”, disse à reportagem, publicada em novembro do ano passado.
Mato Grosso
Os dados da Adapta Brasil mostram que em São Félix do Araguaia, por exemplo, a acessibilidade pode ser um problema em situações de seca e a falta de infraestrutura e logística de transporte tem forte impacto neste caso.
A plataforma da Adapta também mostra que a baixa produção de alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca, trigo e leite para abastecimento interno da população é um dos fatores de influência que colocam esse município num grau elevado de vulnerabilidade.
O Mato Grosso foi o segundo estado mais desmatado da Amazônia Legal em 2022, com 152 mil km² desmatados. De acordo com estudo publicado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), é também o segundo estado com a maior área dedicada à agropecuária, com 18 milhões de hectares.
Eduardo Darvin, coordenador do Programa de Negócios Sociais do Instituto Centro de Vida (ICV), explicou que esse desmatamento na região está associado com a expansão da agricultura empresarial usada para plantio de soja e milho.
“A diminuição da cobertura florestal tende a causar mudanças no clima, como diminuição e alterações sazonais no regime de chuvas e elevação da temperatura em toda macrorregião. Essas mudanças impactam a produção agrícola suscetível a condições específicas edafoclimáticas [solo e clima] que eram propiciadas pela floresta. Essa produção agrícola afetada negativamente é que garante a segurança alimentar nas regiões afastadas dos grandes centros de comercialização e distribuição de alimentos”, explicou Darvin.
Além das mudanças no clima causadas por esse desmatamento, as famílias agricultoras são impactadas pelo uso de agrotóxicos usados por essas empresas. “O aumento do uso de agrotóxicos na região afeta principalmente a produção de alimentos de povos e comunidades tradicionais através da contaminação dos cursos d’água, do solo ou mesmo diretamente atingindo os cultivos agroecológicos da região pela chamada ‘deriva’ durante a pulverização [distribuição de agrotóxicos líquidos em pequenas partículas]. Essa produção local que é afetada é justamente a que garante a alimentação tanto das famílias agricultoras como o abastecimento de produtos frescos e saudáveis para o mercado regional. Assim, impactando a segurança e soberania alimentar da maior parte da população local”, disse Darvin.
Com a pressão dos empreendimentos, o ICV também observa um impacto da especulação fundiária, em que as famílias são pressionadas pela venda de suas terras, fazendo com que as produções locais sejam reduzidas. O município de São Félix do Araguaia é onde vive o povo Xavante, na Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, que passa por intenso avanço do agronegócio, com sojeiros pressionando os limites das suas terras e diminuindo as áreas para cultivo, pesca e caça.
Em entrevista à InfoAmazonia, a liderança Xavante Hiparidi Top’tiro, afirma que os plantios de soja ao redor da terra e dentro da terra do povo Xavante estão causando danos. “Com essa entrada do agro no nosso território, piorou de vez. Muita gente fala que é exagero, mas onde tinha refúgio dos animais, está sendo derrubado. E vamos perder os conhecimentos tradicionais milenares das ervas medicinais. Eles vão desaparecer”, disse em reportagem publicada em setembro de 2021.
Gênero, cor e lugar
O II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, publicado no último ano com os dados atualizados da fome no Brasil, mostram que mulheres, as pessoas negras e quem vive na região Norte, que compõem a maior parte da Amazônia brasileira, são os mais afetados pela fome. A pesquisa é realizada pela Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
De acordo com o inquérito, da população que convive com a fome na região Norte, 2,6 milhões de pessoas estão no estado do Pará, enquanto na região Nordeste 2,4 milhões vivem no Ceará; 2,1 milhões no Maranhão e em Pernambuco; e 1,7 milhão de pessoas na Bahia.
“É a região Norte do Brasil que tem o maior índice de insegurança alimentar do país. Essa insegurança não é medida apenas pelo fato de você comer ou não, mas principalmente pelo o que você come. Por conta do baixo acesso à renda, as pessoas estão se alimentando cada vez mais daqueles alimentos processados”, diz Flávio Barros, do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que participou da construção do inquérito.
Em novembro do ano passado, um estudo mostrou que o Brasil tem 57 mil mortes por ano decorrentes do consumo de ultraprocessados. Os alimentos ultraprocessados são aqueles que passam por técnicas de processamento em que são adicionados sal, açúcar, óleos, gorduras e substâncias para deixar o produto com aparência mais artificial. Os enlatados, refrigerantes, macarrão instantâneo, estão na lista, por exemplo. “Tudo isso afeta de maneira muito séria a qualidade do consumo alimentar das famílias brasileiras”, disse Flávio.
O inquérito mostra, também, que a segurança alimentar está presente em 53,2% das casas de pessoas brancas e em lares de pessoas negras, isso cai para 35%. Quando falamos de gênero, isso também se agrava. Nas casas em que a mulher é chefe da família, a fome é de 19,3%. Quando um homem é o chefe, a fome é de 11,9%.
“Nós somos um povo que consumimos muito peixe, então nunca se ouviu falar aqui no Pará de gente comprando carcaça de peixe. Você sabe que é carcaça, né? A pessoa tira o filé do peixe e fica somente aquele osso com o resquícios de pele. As pessoas estão comprando carcaça de peixe para fazer caldo e comer com farinha. Algo que a gente não viu na história recente do Brasil”, disse Flávio.
Desmonte e políticas públicas
A fome foi negligenciada no último governo, ao ponto do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) negar que existisse fome no Brasil. Em agosto do ano passado, quando participava de uma entrevista, Bolsonaro disse que “se for em qualquer padaria aqui não tem gente pedindo para comprar um pão para ele”. Desde o início do seu governo, políticas e órgãos importantes para o combate à pobreza e à fome foram desmantelados e até extintos.
Em janeiro de 2019, por exemplo, primeiro mês de sua gestão, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), responsável por formular políticas públicas e criar debates sobre alimentação saudável. O Bolsa Família foi drasticamente impactado. Entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, a região Norte perdeu 13 mil inscritos e a região Nordeste perdeu 48 mil, segundo reportagem do UOL.
Alguns programas que eram essenciais para manter a produção de alimentos no país também foram impactados. O Cisterna, por exemplo, um programa do Governo Federal que entregava caixas de água para armazenar em épocas de seca e que funcionou de 2003 até o ano passado. Bolsonaro foi reduzindo os recursos do programa até finalmente interromper o trabalho. Hoje, o Ministério de Desenvolvimento (MDS) investiga se houve desvio de verbas na última gestão.
O Presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Amazonas, Clodoaldo Pontes, está participando das discussões em torno da criação de uma secretaria de segurança alimentar no estado e, também, das discussões sobre a implementação de políticas de combate à fome no Brasil. Para ele, é importante que o Cisterna retorne e que seja levado também para a região Norte do país, além de investir nas produções feitas a partir da matéria-prima da floresta.
“A primeira política que deve ser implementada é para garantir acesso à água. Nós precisamos que o Programa Cisterna chegue aqui. Depois, é preciso reunir uma política sustentável que garanta política de geração de renda sócio produtivas para a Amazônia, onde você possa investir na qualidade dos produtos como o Açaí, a copaíba, o manejo dos pirarucu, na produção da castanha. Investir na geração de renda das populações amazônicas”, afirmou.
Clodoaldo também afirmou que é necessário fazer compensação para aqueles que protegem as florestas e conservam seus recursos naturais.
O professor Flávio Barros, da UFPA, também sugere que sejam investidos recursos na garantia do acesso às estradas. “A gente precisa melhorar as nossas estradas e as nossas hidrovias para que, quem se alimenta possa chegar às áreas urbanas. Nós que somos da Amazônia é muito difícil o povo entender como é a dinâmica do nosso lugar, a gente tem um período do ano em que os rios sobem muito e temos um período de seca. Então tudo isso deve ser pensado”, afirmou.
Preocupado com a produção de alimentos e acesso à alimentação de qualidade, Flávio afirma que é preciso investir na agricultura familiar. “A gente precisa ampliar os programas de fortalecimento e de apoio financeiro para os pequenos agricultores, porque há muita produção do nosso país na nossa Amazônia. Nós temos a maior floresta tropical do planeta que produz muito alimento e precisa ser preservada”, disse.
Respostas governamentais
O Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) foi procurado, mas não respondeu à reportagem. O Ministério de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas também foi procurado e não respondeu.
No dia 28 de fevereiro, o governo anunciou a volta do Consea. “A estratégia [do combate à fome] gira em torno da assistência social, do acesso à renda e ao trabalho, da produção e do consumo de alimentos saudáveis, e da mobilização e participação social”, diz uma nota do (MDS), publicada no início deste mês.
Em reunião, o ministério e outros órgãos do governo informaram que estão trabalhando na revisão dos dados do Cadastro Único, para garantir acesso à renda, e anunciaram o retorno do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), responsável pelas compras de alimentos de pequenos produtores.
Até o momento, o MDS ou o Consea não informaram sobre políticas públicas com recorte na Amazônia ou na região Norte. “Essa diversidade de populações têm que ser inseridas nessa política nacional do enfrentamento à fome e das políticas de segurança alimentar nutricional. Nós não temos que fugir disso. O governo não pode enxergar de outra forma e nós estamos hoje na região Amazônica, território importante para o Brasil e para o mundo”, defendeu Clodoaldo Pontes.