Por Paulo Nogueira Batista Jr.
A Manoel Bomfim
Todas as grandes nações passam por grandes crises. A França teve Pétain, Laval e Vichy. A Alemanha, Hitler e o nazismo. O Japão, Hiroshima e Nagasaki. Todas se refizeram e recuperaram o seu lugar no mundo. Não será diferente com o Brasil.
O atual governo federal constitui nossa maior e mais perigosa crise. Corremos mesmo o risco de uma crise terminal. Mas é provável que o Brasil sobreviva. O país se reerguerá e retomará seu lugar no mundo, a exemplo de nações que passaram por crises até piores do que a nossa.
Um cenário de pesadelo
Em dois anos de Bolsonaro, muita destruição já aconteceu. A pandemia e a incapacidade de enfrentá-la acelerou o processo em 2020. Não preciso recapitular, o desastre está à vista de todos. Schumpeter falava em destruição criativa, mas o que temos no Brasil hoje é destruição destrutiva, pura e simplesmente.
No terceiro ano do governo e no quarto (se houver), a desagregação nacional continuará. Se não nos livrarmos desta praga antes – Deus queira! –, teremos a oportunidade de fazê-lo nas eleições de 2022.
Não será fácil. O governo ainda desfruta de considerável apoio, por incrível que possa parecer. Chocante o resultado de três pesquisas de opinião realizadas em dezembro, que mostram, depois de tudo que ocorreu, um terço ou mais dos entrevistados atribuindo “ótimo” ou “bom” ao governo. Dificilmente haverá apoio parlamentar para o impeachment com pesquisas desse teor.
Veremos se esse apoio se sustenta após o fim do auxílio emergencial. Nas condições vigentes até o final de 2020, Bolsonaro chegará competitivo às eleições de 2022, com boas chances de passar para o segundo turno e mesmo de se reeleger. Cenário de pesadelo.
Fatores de enfraquecimento do governo brasileiro
Mas há, também, fatores de enfraquecimento do governo. Fatores nada desprezíveis. A derrota de Trump foi o fato mais importante no exterior. Bolsonaro perdeu seu principal ponto de apoio externo, persistentemente cultivado por meio de numerosas concessões unilaterais aos Estados Unidos ao longo de 2019 e 2020. Pode-se até duvidar se as concessões trouxeram alguma contrapartida prática para Bolsonaro. Para o Brasil, certamente não.
Seja como for, com a saída de Trump, o isolamento internacional do governo brasileiro é virtualmente total. No exterior, o presidente brasileiro é visto quase unanimemente com um misto de preocupação, desprezo e deboche. “O último trumpista”, é a designação mais polida. No momento, nenhum dos principais países, nenhum integrante do G20 por exemplo, segue a linha de Trump, essa mistura tóxica de folclore com protofascismo. Boris Johnson, o outro integrante destacado da extrema direita no mundo, abandonou esse barco em 2020.
Além disso, no plano interno, cresceu a oposição ao governo nos meios de classe média e alta. Nem sempre pelos melhores motivos, verdade. Um motivo óbvio é que brasileiro não suporta ser mal visto no exterior, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Confrontado com o desprezo americano ou europeu, o vira-lata nacional treme da cabeça aos sapatos.
Em grande medida por isso, já se pode falar em rejeição do establishment brasileiro a Bolsonaro, algo que parece espelhar o que aconteceu com Trump nos EUA. Os endinheirados locais sonham em repetir o feito alcançado por seus congêneres americanos – derrotar o aloprado em 2022 com um candidato moderado, tipo middle of the road. Joe Biden, não Bernie Sanders.
Dois tipos de oposição (ou “antes à tarde do que nunca”)
Configurou-se, assim, um quadro em que o governo brasileiro enfrenta dois grandes tipos de oposição. A de primeira hora, que é de esquerda ou centro-esquerda. E uma segunda oposição, mais recente e meia-boca, que vem da direita tradicional e inclui grande parte dos empresários, dos rentistas e da mídia corporativa. Não por acaso, “intelectuais orgânicos” da direita tradicional, sempre às ordens, revezam-se em críticas ásperas ao governo. Gente que votou 17 ou ficou neutra no segundo turno em 2018 agora se apresenta como anti-Bolsonaro desde criancinha.
Não importa tanto. Como dizia aquele letreiro de motel na Barra da Tijuca, “antes à tarde do que nunca”. A esquerda brasileira é preponderantemente moderada e propensa à conciliação, talvez demais. Mas não vai se iludir de novo. Se voltar a se iludir, pode fechar para balanço. Como ignorar que muitos companheiros atuais da jornada anti-Bolsonaro não merecem a mínima confiança? Para começo de conversa, boa parte deles têm pouco ou nenhum compromisso real com a democracia. As suas profissões de fé democrática valem pouco, muito pouco mesmo. Migraram, e com certa relutância, das fileiras do golpe de 2016 para a oposição soi disant democrática ao governo atual. Pariram Mateus, mas não querem mais embalá-lo.
Observo, de passagem, que não cabe falar de oposição de centro. Pelo menos não ainda. O centro político praticamente desapareceu no Brasil desde o governo Dilma Rousseff. Pode ser que se reconstitua até as eleições de 2022. Há espaço para isso. Seria preciso, entretanto, que aparecessem nomes novos, que pudessem se apresentar, de modo crível, como lideranças de centro. Um requisito mínimo: não ter participado da pajelança golpista de 2016.
A precariedade da direita tradicional brasileira não se resume a falta de credenciais democráticas, infelizmente. A falta de compromisso é também com o país e com o povo brasileiro. A coisa mais rara no Brasil é um nacionalista de direita. Se depender do establishment local, o país continuará deitado eternamente em berço esplêndido, subserviente no plano internacional e excludente no plano interno, enquadrado na nossa tradição secular, bem arraigada, que remonta ao período colonial.
Conquista e reconquista espiritual
Precisamos nos preparar, portanto, desde logo, para continuar a polêmica contra o atraso e a subserviência intelectual das facções hegemônicas das elites brasileiras. Atraso e subserviência que nos levaram ao desastre atual. Antes de Bolsonaro, o país não vinha bem. Óbvio. Afinal, o povo não teria votado no atual presidente não fossem as condições lastimáveis da economia, da sociedade e da política brasileiras. O voto vitorioso em 2018 foi um voto de protesto, uma esperança equivocada de renovação.
Não adianta tentar restabelecer o status quo ante. No campo da economia, por exemplo, salta aos olhos a perda de dinamismo do Brasil desde a crise da dívida externa da década de 1980. Depois de ter sido, durante cerca de meio século, uma das principais fronteiras de expansão do capitalismo, a economia brasileira caiu em várias décadas seguidas de estagnação ou semiestagnação. Esse quadro modorrento foi interrompido poucas vezes e por pouco tempo por experimentos de crescimento econômico com distribuição de renda – notadamente o plano Cruzado de 1986 e os anos de rápida expansão no governo Lula. Porém, foram exceções num ambiente marcado por baixo dinamismo e concentração da renda.
Sou daqueles que acreditam que o desarmamento intelectual tem sido um fator chave da estagnação das décadas recentes. O país incorporou como sua uma agenda econômica importada, que favorece primordialmente os interesses estrangeiros e de uma minoria “globalizada” de brasileiros, conectada com as prioridades e preconceitos externos. Adotamos um suposto consenso científico internacional como agenda nacional, uma agenda antinacional, na verdade. Esse suposto consenso costuma gerar vulnerabilidade externa e fiscal, é hostil ao crescimento da economia e tende a concentrar renda e riqueza.
Arrisco dizer que o país, por meio de suas classes dirigentes internacionalizadas, desenvolveu uma espécie de falsa consciência, uma concepção profundamente deturpada das condições nacionais e internacionais, que resultou na implantação, desde os anos 1990, de um arcabouço de políticas estreito e de horizonte curto. As elites financeiras e rentistas tupiniquins se acomodaram como sócios menores, inexpressivos do projeto imperial. O Brasil sofreu, com isso, uma degradação inesperada para quem observou a sua trajetória anterior no século 20.
Compare-se com o que aconteceu em outros países e regiões do mundo no mesmo período. Os países emergentes bem-sucedidos, notadamente os da Ásia, resistiram sistematicamente a essa agenda externa, denominada às vezes de “Consenso de Washington”. E não por acaso, foi na Ásia que aconteceram os casos de êxito no desenvolvimento, com crescimento econômico sustentado, modernização e redução da pobreza. Na América Latina, chasse gardée do Consenso de Washington, o que se viu, de maneira geral, foi crescimento medíocre e persistência do quadro de aguda desigualdade social.
Não cabe surpresa, a rigor. Fomos vítimas de um processo arquiconhecido, manjadíssimo mesmo. A conquista espiritual é um aspecto central de todo projeto imperial – agora como sempre. O que antes era catequização religiosa, torna-se agora catequização secular, ideológica – a exportação de supostos consensos econômicos, amparados em argumentos de autoridade. A sua absorção só é possível onde predominam as inibições habituais dos povos relativamente atrasados e marcados, como nós, por uma longa história colonial. A exemplo da catequização tradicional, a nova catequese não depende essencialmente de procedimentos racionais, de argumentação ou do apelo a fatos. Nos dois tipos de catequese, pesa sobretudo o papel da confiança, da crença. As palavras de ordem substituem os mandamentos – confortavelmente e até com vantagem. Os economistas são os novos jesuítas e merecem, como eles, uma perseguição razoável.
O que nos cabe, em suma, na atual quadra histórica? Nada mais nada menos do que empreender uma Reconquista, que haverá de ser espiritual, econômica, política. Reconquista que encontrará inspiração nas nossas raízes mais remotas, na Reconquista Ibérica, em especial dos nossos antepassados portugueses, a Reconquista que foi a ante sala das Grandes Navegações e que inspirou, inclusive, a reação brasileira às tentativas de ocupação francesas e holandesas nos séculos 16 e 17.
Como notou o grande Manoel Bomfim, entre outros historiadores, os brasileiros que derrotaram e expulsaram franceses, holandeses e seus comparsas locais encontraram energia e autoconfiança na Reconquista, na unificação de Portugal e na conquista do Atlântico. São os criadores do país-continente que nos cabe recuperar e reconquistar.
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Versão ampliada e atualizada de artigo publicado na revista “Carta Capital” em 8 de janeiro de 2021.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.
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