O presidente da República eleito irá encontrar uma conjuntura internacional completamente diferente daquele com o qual se deparou em 2003, no seu primeiro governo. De lá para cá, a crise internacional piorou muito. Além disso, conforme o próprio Lula destacou inúmeras vezes ao longo da campanha, a situação econômica e social do Brasil é muito pior que aquela encontrada em 2003. O golpe de Estado de 2016 não só impediu a economia e a sociedade de avançarem, como atrasou o país em muitos aspectos (econômico, social, político). Por exemplo, destruiu direitos obtidos, no mínimo, em várias décadas de lutas dos trabalhadores. Em alguns casos lutas com mais de um século de duração.
É difícil calcular, por exemplo, a dimensão do prejuízo humano e econômico, do país, na perda da guerra contra a fome, que tinha feito o Brasil sair do famigerado mapa da ONU em 2014, durante o governo de Dilma Rousseff. Com o golpe, os próprios instrumentos de política econômica para retomar um padrão mínimo de crescimento foram em parte desmontados. Como no caso da entrega da Eletrobrás, maior empresa de energia da América Latina, 35 usinas dadas em troca de bananas. Em um processo de mentiras em série, visando enganar a população (como de resto, ocorreu em todas as privatizações).
Uma diferença fundamental na conjuntura internacional entre 2002 e 2023 é a de que naquele ano o mundo era unipolar. Com o fim da União Soviética os EUA literalmente faziam o que queriam no mundo. Inclusive, a invasão do Iraque contou com a aprovação de Vladimir Putin, em função do xadrez da geopolítica. Agora a situação é diferente, está se consolidando o mundo multipolar, encabeçado por China, Rússia, Índia, Irã e Turquia. Esses países lideram o chamado Sul Global, países cujas populações somadas representam cerca de 87% da população mundial. Logo, a atual ofensiva dos norte-americanos contra Rússia e China, e todos os países do Sul Global, concretizada neste momento pela ardilosa guerra da Ucrânia, está sendo realizada contra 87% da população mundial.
Tais países, registre-se, não estão apoiando a “russofobia”, a demonização da Rússia, que os grandes meios de comunicação no mundo, instigados pelos EUA e Otan, têm realizado. Nem o governo de extrema direita do Brasil se colocou contra a Rússia, apesar de Bolsonaro ser um entreguista e puxa-sacos dos EUA. Claro, isso por razões fundamentalmente econômicas, que aliás movem essencialmente a política internacional.
O mundo já está dividido entre países da Otan comandados pelos EUA, e os países do Sul Global liderados por China, Rússia, Índia, Irã etc. O Brasil no novo governo obviamente continuará mantendo relações econômicas e diplomáticas com os EUA. Aliás, Joe Biden foi um dos primeiros presidentes no mundo, senão o primeiro, a cumprimentar o presidente eleito, pela vitória. Agora, é preciso mencionar que os EUA, em termos econômicos, não têm muito a oferecer ao Brasil. A política dos EUA em relação ao mundo, há algumas décadas, é de extrair coisas do mundo, e não de oferecer. Prova disso é o que estão fazendo com a economia da Europa, que corre o risco de ser totalmente destruída pela guerra na Ucrânia.
Sempre é bom lembrar que o golpe de 2016 foi engendrado pelos EUA. Joe Biden era o vice de Obama e ajudou a articular golpes na América Latina toda. Um dos motivadores do golpe no Brasil, inclusive, foi a relação do país com Rússia e China, através principalmente dos BRICS. Esse processo teve inclusive, talvez, um momento culminante, quando os países do bloco reforçaram a estratégia de utilizar moedas próprias para o comércio internacional, ao invés de realizar as transações em dólar. Essa orientação dos BRICS, que foi ficando cada vez mais forte a partir de 2010, parece ter sido decisiva para os EUA resolverem derrubar na mão grande o governo no Brasil, com a miserável farsa do impeachment de Dilma Rousseff.
Se analisarmos somente as últimas duas décadas da história recente dos EUA no mundo, veremos que o país quer extrair recursos e não oferecer. Somente de 2001 para cá já invadiram ou provocaram guerras no Afeganistão (2001), Iraque (2003), Síria (2011), Sudão (2013), Líbia (2014), Iêmen (2014), Palestina (2021). Sempre com objetivos econômicos, sejam fontes de petróleo, matérias primas fundamentais, e outros recursos, seja por interesse geopolítico.
Mesmo à sua população os EUA têm pouco a oferecer. Mais de 38 milhões de americanos enfrentam a fome todos os dias, incluindo 1 em cada 6 crianças. Uma das razões do aumento da pobreza é a desigualdade de renda, que expandiu dramaticamente nas últimas décadas no país. Cálculos indicam que desde 1980, a maior parte do crescimento dos salários concentrou-se nos mais ricos, enquanto os salários médios estagnaram, o que tem reduzido inclusive a classe média.
O novo governo brasileiro que assume em janeiro irá enfrentar uma combinação de forças, ao nível internacional, que é “nitroglicerina pura”. As forças que dominam a política mundial irão tentar cooptar e/ou levantar obstáculos ao novo governo de todas as maneiras. Vão tentar impedir que ele faça o mínimo pela população mais pobre e pela soberania, dois eixos fundamentais na guerra que o país terá que travar.
O Império se rendeu ao resultado eleitoral porque seus estrategistas sabem que um novo golpe, após o resultado, significaria um risco elevado no Brasil de polarização violenta. Também não havia muito o que fazer além de reconhecer o resultado oficial das eleições. Talvez tenha pesado também o interesse de conter a extrema direita no mundo, até pela situação do governo Biden, que deve perder as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos, no dia 08, terça-feira próxima. A tendência dominante é os democratas perderem a maioria na Câmara dos Representantes e, talvez, serem derrotados no Senado também. Esse resultado, se confirmado, pode ser quase todo creditado na conta da economia. Os EUA enfrentam neste momento, dentre outras mazelas, a maior inflação anual das últimas quatro décadas. Em cenário de estagnação salarial, inflação alta é veneno puro.
Lula e sua equipe estão se mexendo. A comissão de transição de governo está providenciando uma PEC de Transição, articulada com a relatoria do Congresso, para fazer emendas no orçamento federal para 2023. A prioridade, inclusive, é de manter o Auxílio Emergencial de R$ 600,00, uma das promessas de campanha do presidente eleito. O novo presidente, ao se deparar com uma economia nacional semidestruída e um mundo vivendo o risco de uma terceira guerra, terá que se transformar numa mistura de Pelé com Garrincha. Ou seja, ser ótimo em todos os fundamentos (como foi Pelé) e ser um titã nos dribles (como foi Garrincha). Os mais velhos como eu, que pelo menos viram Pelé jogar, irão entender a comparação.