Além de se negar a dar a mão ao ditador, Carlos Caszely participou ativamente do plebiscito contra o regime militar
Por Vanessa Martina Silva.
“Estávamos uniformizados. Havia um silêncio sepulcral. Eu olhava para todos como que querendo pedir socorro. De repente, a porta abre, entra um tipo com uma capa e uma touca escura. Ele começou a andar e a cumprimentar todo mundo. E neste segundo, antes de chegar até mim, fecho os olhos, coloco as mãos para trás e deixo passar o ditador sem dar a mão para mim”.
Carlos Caszely, um dos maiores ídolos do futebol chileno, ex-jogador do clube mais popular do país, o Colo-Colo, não soube das torturas e desaparecimentos forçados em seu país durante o regime militar pela televisão ou por qualquer meio jornalístico, mas através de própria mãe, Olga Garrido, que foi sequestrada e torturada pela polícia de Augusto Pinochet (1974-1990). O relato ficou famoso ao ser utilizado pela campanha do “não” no plebiscito realizado em 1988 para decidir se o ditador deveria seguir ou não no poder até 1991.
“Queriam que eu dissesse frases [para a campanha]”, contou durante sua participação no Seminário Ditaduras no Cone Sul 50 anos Depois, realizado em Santo André no início do mês. Ao invés disso, pediu uma câmera e um operador. “Eu os chamei para ir pela manhã até a minha casa e disse que após o depoimento da minha mãe, eu falaria”.
Na gravação, Olga conta como foi vítima de violência e desrespeito. Do seu lado, aparece um dos rostos mais conhecidos do país: o “chinês”. “Quando o ‘não’ ganhou, fiquei orgulhoso. De alguma forma, minha família ajudou a derrubar a ditadura de Pinochet”, disse Caszely.
A campanha pode ser vista aqui (a partir do minuto 3’30’’)
A primeira negativa
Na contramão do estereótipo de que jogador de futebol não se posiciona politicamente, “o rei do metro quadrado” se negou, em diversas ocasiões, a cumprimentar Pinochet. “A situação estava difícil. Fora do país nos perguntavam a respeito dos mortos e não sabíamos de nada porque as TVs e meios de comunicação falavam apenas que o Chile havia recuperado a democracia”.
Foi então que em 1974, antes do Mundial na Holanda, sua mãe foi sequestrada. Pouco tempo depois, na despedida da seleção antes da viagem para a Alemanha, Caszely se negou a cumprimentar o ditador. Não sei se fui um homem valente ao não dar a mão a Pinochet, ou se me caguei de medo de dar a mão a Pinochet”, contou.
Como consequência, “em 1977, quando me preparava para embarcar para disputar as Eliminatórias do Mundial na Argentina, recebi uma ligação dizendo que eu não iria jogar porque Pinochet estaria no Estádio Nacional e poderia ser que os torcedores começassem a gritar meu nome”. O artilheiro foi cortado e a seleção chilena não disputou o Mundial. “Foi uma das grandes tristezas de minha vida”, lembrou. Depois disso, nunca mais o general foi ao estádio ver as partidas de la Roja.
“Meu coração continuará vermelho”
Caszely voltou à seleção no Mundial da Espanha de 1982, mas a equipe não conseguiu triunfar. Até hoje o jogador é cobrado pelo pênalti perdido contra a Áustria. “Quando os jornalistas vieram até mim, para me cobrar, somente disse: ‘eu fracassei’”.
Em 1985, el chino se despediu da seleção chilena em jogo contra o Brasil. “O momento mais lindo da minha vida foi quando me retirei com aplauso do estádio no fim da minha carreira”, disse a Opera Mundi.
No mesmo ano, em uma recepção no Palácio de la Moneda, Caszely teve um novo encontro com Pinochet. De acordo com o jogador, foi a única ocasião em que cumprimentou o general. “Eu fui de gravata vermelha. Quando Pinochet passou por mim, me disse: ‘vou cortar a sua gravata’. E eu respondi: ‘senhor Pinochet, pode cortá-la que meu coração seguirá sendo vermelho’”.
Polêmicas
Mas, também há críticas à sua atuação política. Em 21 de novembro de 1973, ocorreu a partida mais “estúpida e tonta” que teve notícia. Isso porque a antiga União Soviética (URSS) se recusou a participar do jogo no Estádio Nacional, onde milhares de pessoas foram torturadas e mortas pelo governo de Pinochet.
Assim, os 11 jogadores chilenos tocaram a bola calmamente e o capitão, Francisco “Chamaco” Valdés, a chutou contra um gol sem goleiro. Sobre o polêmico lance, Caszely afirmou que “assim como jogamos na Rússia, que era uma ditadura de esquerda, eles teriam que vir jogar em nosso país. O futebol está acima das ditaduras e dos governos. O futebol é do povo, daquele que sofre a semana inteira e tem somente 90 minutos para se divertir”.
Veja o gol do “jogo”, válido para as eliminatorias da Copa do Mundo de 1974:
Quase 30 anos após ter pendurado as chuteiras, Caszely avalia que o futebol segue sendo “uma das poucas alegrias das pessoas”. Para ele, “o entorno do futebol é complicado. Mas os problemas sociais, dos governos, não são um problema do esporte”. A respeito das críticas contra o campeonato que será realizado no Brasil a partir de 12 de junho, ele contemporizou: “nos outros países em que não haverá o Mundial, temos os mesmos problemas” .
Caszely nunca escondeu sua orientação política e seu alinhamento com o governo socialista do presidente deposto Salvador Allende (1970-1973). Em 2013, apoiou a candidatura da presidente reeleita Michelle Bachelet. Para ele, os trabalhadores estão voltando para as ruas para fazer ouvir sua voz e construir um mundo muito melhor do que o que temos hoje”.
Fonte: Ópera Mundi.