O Brasil vem de cinco anos de estagnação do Produto Interno Bruto (PIB), possivelmente o pior desempenho do produto que se tem registro nas contas nacionais, fruto da crise mundial e das políticas recessivas adotadas a partir do golpe de 2016. Isso leva a um círculo vicioso: baixos níveis de crescimento do PIB conduzem a uma queda na arrecadação de impostos com aumento proporcional da dívida pública. Esse fenômeno foi verificado recentemente na Europa: os países que apostaram em maior austeridade e cortes de despesas públicas, como Grécia e Itália, acabaram aumentando seus níveis de dívida pública e pagam o preço disso.
Neste momento assistimos no Brasil a um debate sobre as dificuldades de continuar pagando o auxílio emergencial, mecanismo fundamental para evitar que milhões de compatriotas passem fome. Críticos da proposta alegam que o pagamento de R$ 600 para os pobres, compromete a “saúde fiscal” do país. Mas o país transfere todo ano 5% ou mais do PIB para os credores da dívida pública, comprometendo mais de 50% do orçamento federal executado, sem praticamente ouvirmos um pio desses críticos da proposta de um novo Bolsa Família.
Como item integrante desse método de exploração colonial, o Brasil pratica há anos o maior juro real (taxa de juros descontada da inflação prevista para os próximos 12 meses) do mundo. O fato da taxa básica de juros do Brasil estar muito acima da média mundial (neste momento bem acima do segundo lugar da lista, o México) seguindo uma receita que nunca funcionou – tentar controlar com juros altos uma inflação que não decorre de excesso de demanda – não tem nada de “opção técnica”. Antes de mais nada, é uma decisão política do Banco Central.
O orçamento federal destinou míseros R$ 139,9 bilhões para saúde neste ano e R$ 62,8 bilhões para a educação, que são uma fração dos quase dois trilhões destinados aos juros da dívida em 2021. Mas quase ninguém fala disso, é como se esses pagamentos fossem uma determinação vinda dos céus. Ao longo dos anos vários mecanismos foram montados para garantir aos banqueiros o recebimento fácil dos juros, o que praticamente ninguém questiona. As vozes que denunciam esse assalto sistemático ao país não têm espaço na grande imprensa, que está ao serviço desse sistema.
Os mecanismos de favorecimento dos credores vêm sendo construídos há anos. Ainda em 2000 foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI) para conceder empréstimos ao Brasil, que em 1988 tinha quebrado financeiramente mais uma vez, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LRF impõe limites ao poder público com os gastos com pessoal, de forma a garantir os polpudos juros aos banqueiros. O teto de gastos, vindo com a Emenda Constitucional 95, de 2016, uma das primeiras medidas do golpe, garante que o orçamento destinado a todas as despesas do governo com infraestrutura, salários, aposentadorias, saúde, educação, transportes, etc. não ultrapasse um valor determinado, garantindo que a parcela destinada ao pagamento de juros da dívida não seja afetada.
Para garantir o modesto auxílio de R$ 600 no ano que vem, a equipe de transição está propondo na PEC encaminhada ao Congresso, ultrapassar o limite (teto) de gastos previsto no Orçamento. Recentemente Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, que foram do governo FHC, todos ligados à fina flor dos especuladores mundiais, lançaram uma carta aberta (em 17.11.22) posicionando-se em relação ao comentário de Lula que disse que “Se eu falar que será preciso ultrapassar o teto de gastos para colocar os programas sociais prometidos vai cair a bolsa, vai aumentar o dólar. Paciência. Porque o dólar não aumenta e a bolsa não cai por conta das pessoas sérias, mas é por conta dos especuladores que vivem especulando todo santo dia” (fala na COP 27).
Na Carta Aberta criticam a fala acima e saem em defesa da “sagrada” responsabilidade fiscal e do teto de gastos. Ou seja, o teor da Carta revela que os banqueiros até aceitam que o futuro governo combata a fome e a pobreza, desde que isso não diminua em um centavo os ganhos que extraem sistematicamente do Brasil, através do sistema de pagamento da dívida pública.
A capacidade de apropriação de riqueza por parte desses banqueiros, de extrair todo ano 5% ou mais do PIB brasileiro, lhes fornece um poder que permite controlar sistematicamente os processos políticos e, assim, muitas vezes os próprios governos que se revezam no poder. Essa reação dos porta-vozes dos credores revela o grau de pressões que o novo governo já está enfrentando, que certamente se aprofundarão nos próximos meses.
A pancadaria da imprensa à decisão de Lula de furar o teto de gastos para atender aos famintos corre solta. Matérias nos jornais especializados, já afirmam que se furar o teto de gastos (estimativas apontam um valor de menos de 200 bilhões anuais) talvez Lula nem consiga terminar o seu governo. Ou seja, a chantagem já está de vento em popa, pela medida mais simples possível, que é atender aos miseráveis, proposta que compõe o núcleo central do programa do futuro governo.
No início do Plano Real, em julho de 1994 (28 anos atrás), a dívida pública (dívida externa e interna) era de cerca de R$ 60 bilhões. Fechou o ano de 2021 em R$ 5.613 trilhões. Somente no ano passado o estoque da dívida brasileira teve um aumento de R$ 604 bilhões. Ou seja, é um sistema infinito de exploração do povo brasileiro, que é quem sustenta essa festa toda. Não existe país no mundo que transfira tanto recurso para os banqueiros quanto o Brasil. O país sofre um processo de desindustrialização há décadas, mas não há recurso para reerguer a indústria porque não sobra dinheiro (dentre outras razões).
No Brasil os especuladores levam todo ano mais da metade do Orçamento Federal. Nos EUA, que têm um orçamento federal de 6 trilhões de dólares (cerca de 8,2 vezes superior ao brasileiro) a dívida pública custa 12% do Orçamento. Isso com uma dívida pública bruta, de 31,2 trilhões de dólares (outubro de 2022), que representou mais de 124,9% do PIB norte-americano no ano passado (23 trilhões de dólares). Claro, temos que considerar que os EUA dispõem de uma condição única no mundo, típica do maior império terreno, que a de contar com uma moeda com “aceitação” mundial (forçada), uma espécie de “padrão dólar” no qual essa moeda é utilizada no mundo inteiro para comércio entre as nações. Este é um privilégio equivalente, na área econômico-financeira, ao de ser a principal potência militar do planeta. A transição para outras moedas, como já está ocorrendo gradativamente, significa um duro golpe para os EUA, que há décadas imprime em casa a moeda que possui utilização mundial (em declínio).
A dívida pública é uma síntese de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. A dívida é um sistema extraordinário de transferência de riqueza para pessoas jurídicas e físicas muito ricas, residentes no país, ou não. Como é um sistema complexo, afeito aos especialistas, a população não entende. Como quem controla tudo é gente ligada aos próprios banqueiros, é um sistema fora do controle das estreitas instâncias democráticas da sociedade.
Os especialistas no tema denunciam sistematicamente que não há transparência nenhuma nos dados da dívida pública. Mas imaginem se um processo de desvio de 5% do PIB nacional, para um grupo de bilionários, em nome de uma dívida ilegítima poderia ter transparência? Se a população entendesse que o país que deixa 33 milhões de brasileiros passar fome, tem ruas esburacadas e gente morrendo na fila do SUS, transfere diária mente bilhões para super-ricos? Isso em nome de uma dívida, inclusive, que no fundo, já foi paga várias vezes? Por isso mesmo, esses processos não poderiam ser transparentes.
A Eletrobras, que o governo Bolsonaro entregou neste ano, foi “doada” por cerca de um sétimo dos juros pagos aos banqueiros no ano passado. A maior empresa de energia da América Latina foi entregue, praticamente em troca de bananas. O que revela que a história de privatizar empresas públicas para pagar a dívida, repetida tantas vezes por Paulo Guedes e outros, é uma conversa fiada que não tem limites.
A situação do Estado brasileiro é radicalmente complexa e, portanto, requer ações determinadas. Os capitalistas não investem em obras de infraestrutura, seja porque não têm dinheiro (no caso dos pequenos e médios), seja porque podem ter muito mais retorno especulando com papéis da dívida pública (no caso dos grandes capitalistas). Por outro lado, a sucção de recursos provocada pela dívida pública, faz com que o Estado fique trabalhando o tempo todo somente para engordar os especuladores. Não sobra dinheiro para mais nada. Quando acontece uma enchente, como há poucos dias no Sul do Brasil, o povo pobre fica debaixo de água, porque o Estado não tem dinheiro para fazer obras fundamentais para um mínimo de bem-estar da população. Isso em um país onde a estrutura de arrecadação é regressiva, ou seja, feita através de impostos indiretos, pagos pelo povo.
Do ponto de vista econômico algumas medidas não poderiam faltar em um processo de reconstrução econômica do Brasil, cuja economia foi quase destruída pelos golpistas: retomada do crescimento; programa vigoroso de combate à fome; programa de investimentos em infraestrutura urbana; recuperação do mercado consumidor interno; revogação do Teto de Gastos; nova política de preços dos derivados do petróleo; amplo programa de recuperação da indústria e inovação; política de exploração mineral do país; política pública e integrada de segurança hídrica para o país; reversão das privatizações na Petrobrás e na Pré–Sal Petróleo S.A. (PPSA); reversão de todas as privatizações ocorridas desde o golpe de 2016; estruturação de uma política de defesa da Amazônia.
A implementação dessas medidas – e tantas outras essenciais – depende de alteração na correlação de forças, e não apenas de competência técnica. Ademais, o encaminhamento das medidas elencadas implica na retomada do papel que foi retirado do Estado brasileiro, principalmente a partir do golpe, de indutor do crescimento e do desenvolvimento nacional. O país precisará ser reconstruído. Lula, em entrevista coletiva no dia 02 de dezembro último, repetiu o que já tinha dito em outras ocasiões: “ganhei as eleições para governar para o povo pobre mais humilde deste país. Esta é a minha missão”. Esta genuína convicção do futuro presidente, para se tornar ação concreta, terá que encarar o problema da dívida pública e os seus beneficiários, que são muito poderosos.
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.