“A cultura geral, no âmbito do sistema da justiça — que vai além do Poder Judiciário —, é voltada para a proteção dos direitos dos mais fortes ou do direito de propriedade, em detrimento dos direitos humanos fundamentais de uma coletividade”, diz o advogado.
Diante do “histórico processo de tratamento desigual que os órgãos públicos dão às problemáticas sociais coletivas”, é preciso utilizar instrumentos jurídicos que apontem para um novo olhar em relação aos conflitos fundiários envolvendo indígenas, quilombolas, agricultores e produtores rurais.
De acordo com Darci Frigo, um dos autores da proposta de desjudicializar as demandas de demarcações de terras, “a cultura do Poder Judiciário acha que o processo tem duas partes, como se fossem dois indivíduos, quando se pode ter, num processo, uma pessoa que é o demandante, normalmente um proprietário de imóvel rural ou urbano e, do outro lado, uma coletividade enorme”.
Para Frigo, situações que envolvem conflitos fundiários ou urbanos por conta de disputas de terra não devem ser tratadas como “um conflito interindividual”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ele explica que a proposta consiste em fazer com que o “Judiciário se abra para o diálogo com uma gama múltipla de atores da sociedade e do Estado para encontrar uma solução que seja justa e adequada, sobretudo, para aqueles que têm os seus direitos humanos violados”.
Darci Frigo é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Trabalhou por 17 anos na Comissão Pastoral da Terra – CPT-PR e atualmente, além de coordenar a ONG Terra de Direitos, é conselheiro do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Frigo recebeu, em 2001, o Prêmio Internacional Robert F. Kennedy, por sua luta pelos Direitos Humanos no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consistem os mecanismos de mediação para solucionar disputas por terras que o senhor sugere?
Darci Frigo – Trata-se de uma alternativa a um histórico processo de tratamento desigual que os órgãos públicos dão às problemáticas sociais coletivas. Normalmente a cultura do Poder Judiciário acha que o processo tem duas partes, como se fossem dois indivíduos, quando se pode ter, num processo, uma pessoa que é o demandante, normalmente um proprietário de imóvel rural ou urbano e, do outro lado, uma coletividade enorme.
Devemos fazer um debate — e essa é a proposta da pesquisa — para que uma situação desse tipo não seja tratada como um conflito interindividual, mas que passe a ser tratada com instrumentos mais adequados. Quais instrumentos? O juiz pode realizar um processo em que coordene a mediação desse conflito por meio de audiências públicas, de inspeções judiciais, da convocação de órgãos públicos que sejam responsáveis pela implementação de uma determinada política pública, e chamando a sociedade e os movimentos sociais que estão envolvidos nessa discussão. Em síntese, essa é a proposta: que o Judiciário se abra para o diálogo com uma gama múltipla de atores da sociedade e do Estado para encontrar uma solução que seja justa e adequada, sobretudo, para aqueles que têm os seus direitos humanos violados.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o processo de judicialização das demandas de demarcações e o protagonismo do Poder Judiciário nessa questão?
Darci Frigo – Existem sinais de que novos juízes e juízas estão preocupados com a questão social. Há um Fórum de conflitos fundiários que funciona no âmbito do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que começou a olhar essa problemática de forma diferenciada. Mas a cultura geral, no âmbito do sistema da justiça — que vai além do Poder Judiciário —, é voltada para a proteção especialmente dos direitos dos mais fortes ou do direito de propriedade, em detrimento dos direitos humanos fundamentais de uma coletividade. Então, o processo de enfrentamento desses conflitos acontece com uma ampla judicialização, a qual coloca os movimentos sociais — 80 a 90% dos casos — no polo passivo, como réus, como demandados perante o sistema da justiça. Na verdade, os atores que demandam e que acessam o sistema da justiça são exatamente aqueles que detêm maior poder econômico. Então, nesse sentido, o Judiciário está sendo cada vez mais demandado. Ou seja, à medida que o Estado, através dos Poderes Executivo e Legislativo, não soluciona de forma adequada essa problemática social, os conflitos sociais tendem a desaguar no Poder Judiciário através de um constante processo de judicialização. Infelizmente esse processo em geral acontece contra a parte mais fraca, que são os cidadãos e cidadãs mais pobres da sociedade.
“Existem sinais de que novos juízes e juízas estão preocupados com a questão social”
IHU On-Line – Quantas demarcações de terras estão sendo contestadas na justiça?
Darci Frigo – Não é possível dizer, mas posso dar uma pista. O juiz do CNJ de Minas Gerais, Rodrigo Rigamonte, coordenador do Fórum de Conflitos Fundiários do CNJ, me disse que eles estão montando um formulário para fazer o levantamento e a classificação dos conflitos em terras indígenas, quilombolas, terras de reforma agrária, enfim, dos diferentes conflitos fundiários e possessórios urbanos existentes hoje no país. Não há, no âmbito do Judiciário, uma pesquisa que possa dizer, neste momento, quantos são os conflitos judicializados na questão indígena. O que é público e notório é que a Confederação Nacional da Agricultura – CNA e a Bancada Ruralista articulam nacionalmente as suas ações políticas em três direções: estão investindo no âmbito do Congresso Nacional para desconstruir ou desconstitucionalizar os direitos indígenas, tornando a Constituição uma letra morta no sentido de inviabilizar os direitos indígenas; no âmbito judicial procuram contestar todas as demarcações para retardar o processo de retirada de invasores de áreas indígenas — a palavra “invasor” só serve para essa situação, só se aplica para quem adentra em terras indígenas, e não na situação em que um sem terra ou outro posseiro entra em uma fazenda, nesse caso é ocupação mesmo; e a terceira via é a que se manifestou nos discursos dos deputados ruralistas do Rio Grande do Sul, propondo inclusive a ação armada paramilitar, uma resistência ou uma ação direta contra os indígenas que estão reivindicando a demarcação das suas terras.
IHU On-Line – Como está o processo de demarcação das terras indígenas hoje no Brasil? É possível estimar quantas terras estão sendo estudadas, quantas foram delimitadas, homologadas e regularizadas?
Darci Frigo – No lançamento da pesquisa, os representantes da articulação dos povos indígenas do Sul se manifestaram sobre a necessidade de o governo federal agilizar o processo demarcatório dessas áreas que estão sendo disputadas com pequenos agricultores. Na ocasião, colocamos publicamente uma posição preocupante em relação às situações do Sul, porque entendemos que talvez elas sejam a “ponta de lança” para o processo de desconstitucionalização dos direitos indígenas ou retrocesso em toda a política indigenista, porque envolvem pequenos agricultores e a bancada ruralista. Esses setores já utilizaram os pequenos agricultores para mudar o Código Florestal e poderiam querer convencer a sociedade, neste momento, contra os direitos indígenas. Isso nos preocupa muito. Não é na Amazônia Legal nem nas regiões onde as áreas indígenas estão sendo demarcadas que existem os maiores conflitos. Nas Regiões Sul e Nordeste é que estão acontecendo os enfrentamentos mais agudos na retomada de territórios indígenas, portanto, é ali que pode haver a arregimentação dos agricultores familiares contra os direitos indígenas.
“Os atores que demandam e que acessam o sistema da justiça são exatamente aqueles que detêm maior poder econômico”
IHU On-Line – Quais são os principais impasses em torno das demarcações? Reconhecer quem é o dono original da terra?
Darci Frigo – O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST nasce exatamente de uma situação de colonos que haviam sido assentados pelo Estado em terras indígenas no Rio Grande do Sul. Eles tiveram de ser retirados e então acamparam na beira das estradas. O acampamento da Encruzilhada Natalino é um exemplo de ex-colonos que receberam terras do Estado.
Como há prevalência dos direitos indígenas sobre outras pretensões, então, a solução para esses conflitos nas regiões já ocupadas é que o Estado indenize e também faça o processo de reassentamento dessas famílias. Não há outra saída. Se o território indígena for reconhecido por meio dos laudos antropológicos, o caminho é encontrar uma solução mediada, negociada e com indenização e reassentamento das famílias. No entanto, esse tipo de solução já não serve para invasores de outras áreas indígenas, como está acontecendo, por exemplo, em uma área que está sendo demarcada no Maranhão, e que foi invadida. Nesse sentido, os invasores não têm direito, porque adentraram em área indígena, se apropriaram dos recursos florestais, ameaçaram os índios, criaram uma série de situações que colocaram em risco, inclusive, a vida dessas comunidades. Nesse caso nós não defendemos algum tipo de compensação para esses invasores.
IHU On-Line – Além do caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que outras comunidades indígenas têm disputas com a União ou com agricultores no Supremo Tribunal Federal? É possível estimar quantas ações por disputas de terra tramitam no STF?
Darci Frigo – Comunidades de guaranis do Norte do Rio Grande do Sul, do Oeste de Santa Catarina e do Mato Grosso do Sul, onde ocorrem os conflitos mais graves, envolvendo os Terena e os Guarani Kaiowá. Esses são os conflitos mais sérios. Neste momento, o território mais conflituoso é o do Sul da Bahia, com os Tapajós. Trata-se de um conflito aberto, várias pessoas foram assassinadas recentemente e o exército está no local. A situação é tão grave que levou à medida extrema — com a qual não concordamos — de ter a presença do exército no local.
IHU On-Line – O senhor propõe um diálogo do Poder Judiciário com órgãos públicos e movimentos sociais que reivindicam políticas públicas para a questão indígena. Como se daria esse diálogo?
Darci Frigo – Isso vale para casos envolvendo quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais que lutam pela reforma agrária, como também outros posseiros que enfrentam conflitos coletivos. A proposta é que o juiz, diante desta situação, chame as partes para uma audiência pública para encontrar caminhos de solução contrários aos propostos pela bancada ruralista e pela CNA. Nesse sentido, o juiz pode chamar órgãos públicos para participarem das ações. No caso dos conflitos envolvendo a reforma agrária ou no caso da questão quilombola, chamar o INCRA; no caso da questão indígena, chamar a FUNAI. Além disso, um responsável da Justiça pode ir ao local em que está acontecendo o conflito e tomar ciência da realidade de uma determinada comunidade.
Conhecemos várias comunidades na Região Sul ou na Região Centro-Oeste, no Mato Grosso do Sul, tanto de indígenas quanto de quilombolas, que vivem em frações ínfimas de terra, e ali há um processo de pobreza extrema, de violência, etc. À medida que os juízes tomarem ciência dessas situações, poderão aplicar os comandos constitucionais de forma bem mais aberta do que simplesmente olhar para o direito de um proprietário, por exemplo, e deixar o direito de uma coletividade em segundo plano.
Se ao longo do tempo a incidência política do Estado se dirigiu ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo como poderes mais permeáveis às incidências políticas, hoje a sociedade reclama do Poder Judiciário mais abertura e diálogo nesse processo, e que ele se corresponsabilize para reparar, promover e efetivar direitos humanos.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Foto: Terra de Direitos/Divulgação