Documentaristas buscam informações para construir biografia de Joana Batista Ramos
Há 110 anos, uma mulher negra e pobre, possivelmente filha de escravos, compôs a letra do mais popular frevo do Carnaval de Pernambuco, a “Marcha Número 1 do Vassourinhas“. Mas a história oficial, moldada em território masculino, tratou de apagá-la.
Na terra do frevo, Joana Batista Ramos ainda é apenas um conjunto de indícios. As informações sobre ela são bastante escassas, quase inexistentes. Resumem-se a poucos parágrafos de jornais do início do século passado. Não há nem sequer certidões de nascimento ou de óbito.
O único documento público que comprova a sua existência é o recibo de venda por 3.000 réis dos direitos autorais da música para o tradicional Clube Vassourinhas, fundado em 1889, um ano após a assinatura da Lei Áurea.
Escrita em 1909, a música virou uma espécie de hino popular de Pernambuco.
Ela foi gravada pela primeira vez, porém, em 1945, pela Continental, interpretada por Deo e Castro Barbosa. Na versão, a letra original acabou sendo alterada com a inserção do verso de domínio público “se essa rua, se essa rua fosse minha”, cantiga popular rearranjada pelo maestro Heitor Villa-Lobos na década de 1930.
Nascido como uma marcha, o frevo de Vassourinhas foi sofrendo outras modificações ao longo do tempo, até que teve a letra suprimida. O garimpo mostra que a música era executada quando o Vassourinhas estava retornando para a sua sede, na chamada marcha de regresso.
Hoje, no Carnaval, o frevo funciona como uma espécie de “acorda povo”, aquele momento em que os músicos estão cansados e precisam retomar a animação dos foliões.
Partitura mostra os verdadeiros autores do famoso frevo:
Matias da Rocha e Joana Batista
Uma equipe pernambucana de documentaristas iniciou um trabalho de investigação para contar quem foi Joana Batista Ramos. A produtora cultural Tactiana Braga e os jornalistas Camerino Neto e Maíra Brandão dirigem o documentário “Joana: Se essa Marcha Fosse Minha”, ainda sem data para lançamento.
Uma campanha na internet também foi lançada na tentativa de encontrar parentes da compositora ou qualquer informação que contribua para construir a sua biografia.
Até agora, além de testemunhos e escassos relatos em jornais da época, conseguiram encontrar uma única imagem do rosto dela, provavelmente uma pintura, que consta no documentário “Cem Anos de Vassourinhas” (1989), pertencente ao acervo da Fundação Joaquim Nabuco.
Estamos falando do território da cana-de-açúcar, do senhor de engenho, da casa grande e da senzala, demarcado pela violência do poder. Joana é um grito neste momento em que o Brasil ameaça a fala e o direito da mulher”, diz Tactiana Braga.
Camerino Neto conta que, nos antigos bailes de Carnaval, com várias orquestras, a introdução de Vassourinhas era o alerta para que os próximos instrumentistas subissem ao palco e pudessem substituir aqueles que já estavam tocando.
Isso talvez explique porque ela se popularizou tanto. Era executada várias vezes durante a mesma noite”, diz.
Algumas peças do quebra-cabeça histórico estão sendo descobertas aos poucos.
Joana era possivelmente empregada doméstica, ex-escrava ou descendente de escravos”, lembra Brandão.
Mas ainda não se sabe onde exatamente ela nasceu.
O próximo passo é fazer o caminho contrário. Estamos tentando localizar a certidão de óbito”, aponta.
O governo de Pernambuco afirma que a Secretaria da Mulher se prontificou a acionar a estrutura de informações oficiais para encontrar qualquer documento sobre Joana.
Há o entendimento de que essa invisibilidade não é um ato falho. É um ato de machismo. É preciso reconhecer sua contribuição a partir da história de Joana”, afirma Braga.
Nas pesquisas, há relatos da presença dela e de Mathias da Rocha, que também assina a música por possivelmente ter criado a melodia, num lugar em que os negros costumavam realizar celebrações, no Porto da Madeira, na zona norte do Recife. A composição teria nascido num dos mocambos do bairro.
A busca documental já chegou a algumas conclusões. Joana tinha três filhos e, provavelmente, morreu aos 74 anos, em 1952. Os registros em cartório da venda da música ao Clube Vassourinhas são de 1910, enquanto o documento de autoria é de 1949.
A pesquisadora Carmem Lelis informa que, em 1951, a marcha passou ser reproduzida também no Carnaval carioca. “Mas as informações são precárias e sem fontes para se constatar a veracidade.”
O filme será composto por entrevistas com pesquisadores, maestros renomados do frevo e compositoras e cantoras pernambucanas.
Entre os entrevistados está a cantora, compositora e dançarina Flaira Ferro.
Há cem anos, a realidade era pior para as mulheres. Ainda mais sendo negra. Ela estava na margem da margem da margem”, afirma ela.
Quem foi Joana Batista Ramos?
Mulher negra, compôs, junto de Mathias da Rocha, em 1909, o frevo ‘Marcha Número 1 do Vassourinhas’, um dos mais famosos de Pernambuco. Tudo o que se sabe sobre ela é que tinha três filhos e, provavelmente, morreu aos 74 anos, em 1952
Fonte: Folha de SP, João Valadares, Recife, 01/03/2019
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