Como o trigo transgênico pode impactar o pão de cada dia no Brasil

Organizações da sociedade civil alertam que autorização desrespeita a Lei Nacional de Biossegurança e exigem que governo federal barre a liberação do plantio e da comercialização do produto no país

Foto: O Joio e o Trigo

Por Leandro Melito, em O Joio e o Trigo. 

O pão de cada dia da população brasileira, item básico na casa das famílias, pode estar perto de uma mudança histórica com a decisão que autoriza o cultivo e a comercialização do trigo transgênico no país. Caso a semente siga os passos do milho, em pouco tempo pode ser difícil encontrar pão, bolos, massas e biscoitos produzidos sem organismos geneticamente modificados. Tudo isso sem que os impactos disso para a economia e a saúde da população tenham sido avaliados conforme as determinações da Lei Nacional de Biossegurança.

“Nós estamos falando de um alimento básico para a população humana e que vai estar presente em todas as moradias, todos os dias do ano. Essa implicação é muito relevante”, alerta Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

A ANA está entre as organizações signatárias de um ofício que exige o cancelamento da decisão. O documento aponta os perigos à soberania alimentar, à saúde, à biodiversidade e à economia do país com a liberação do cultivo do trigo HB4, geneticamente modificado, produzido pela empresa Bioceres, sediada na Argentina.

O ofício foi entregue ao presidente do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), colegiado de ministros que deve se reunir até a sexta-feira (7) para avaliar a decisão da  Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) que autorizou o plantio e a comercialização do trigo transgênico no país em reunião ordinária realizada no dia 2 de março.

A partir da publicação no Diário Oficial da União, que se deu no dia 7, o CNBS tem 30 dias para dar um parecer sobre a liberação dessa nova tecnologia que envolve o produto transgênico do ponto de vista socioeconômico. É papel do Conselho analisar questões socioeconômicas em relação aos efeitos da liberação desse produto para a cadeia produtiva de trigo convencional no país – por exemplo, como será feita a segregação do produto transgênico com relação à produção do trigo convencional ou orgânico.

Para que o trigo transgênico não contamine as demais plantações, é necessário que haja a utilização de maquinários separados em todas as etapas do processo: nas lavouras, nas indústrias de moinho e de secagem, o que gera um custo adicional para os agricultores – da mesma maneira como ocorreu com o milho.

“Nós teríamos um custo bastante grande para esse trigo não transgênico se transformar em pão e massa não transgênica, e ser monitorado como [produto] não transgênico. Isso vai aumentar o custo do alimento saudável, e vai ter implicação no Sistema Único de Saúde e na manutenção da alimentação das famílias. São muitas implicações para considerar, para que a gente aceite que essa circunstância continue como está”, aponta Melgarejo.

São responsáveis pelo registro e pela fiscalização de organismos geneticamente modificados no país, segundo a Lei Nacional de Biossegurança, os ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Saúde e do Meio Ambiente. A lei prevê que, em caso de divergência quanto à decisão técnica da CNTBio sobre a liberação desses produtos, esses órgãos têm até 30 dias para apresentar recurso ao Conselho.

Rendimento não comprovado

O parecer técnico da CTNBio que liberou a importação da farinha de trigo HB4, em novembro de 2021, aponta que esse produto “apresenta o fenótipo de tolerância a diversos estresses ambientais, incluída a tolerância ao déficit hídrico”. Em outras palavras, que o trigo transgênico é resistente à seca. Este seria o principal atrativo do produto oferecido pela Bioceres.

O engenheiro agrônomo argentino Fernando Frank refuta essa afirmação, com base em um estudo em fase de revisão para publicação na Revista Brasileira de Agroecologia.

“O trigo transgênico rendeu bem abaixo do restante do trigo, abaixo até da média. Nós sistematizamos isso, por região, comparando com variedades não transgênicas. Com dados de ocorrência de seca no ano de 2021, vimos que o HB4 não é resistente em termos de rendimento.”

O Instituto Nacional de Sementes (Inase) na Argentina monitorou 53 mil hectares semeados com o trigo HB4 em 12 províncias e comparou com os da produção de trigo no país, sistematizados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca. De acordo com o estudo, o produto da Bioceres rendeu 17% menos quando comparado ao total nacional. Das 12 províncias analisadas, somente em duas o trigo HB4 produziu acima das médias – ainda assim, com rendimento menor do que o anunciado pela Bioceres.

“Em nove províncias o rendimento foi menor, fato não informado pela empresa às autoridades reguladoras, nem nos trabalhos científicos. As diferenças no rendimento em relação à média variaram entre 7,6% e 63%”, aponta o estudo.

Também foi realizada uma avaliação específica sobre o comportamento do trigo HB4 em situações de seca na Argentina durante o ano de 2021. Para essa avaliação foram utilizados relatórios mensais da Mesa Nacional de Monitoramento do Secas, que integra a Rede de Organismos Científicos Técnicos para a Gestão de Risco de Desastres (Red GIRCyT). Os relatórios analisados, de 2021, apontam períodos de seca durante o ciclo de crescimento do trigo, onde os resultados do HB4 também se mostraram abaixo da média do trigo convencional.

Na seca, o rendimento do trigo HB4 em Santa Fé foi 7,6% menor do que o rendimento médio da província; para o Chaco argentino, o rendimento do trigo HB4 foi 15,4% menor do que a média de referência. Em Santiago del Estero, o trigo HB4 rendeu 17% menos e, em Tucumán, 9% menos. Em Buenos Aires, os rendimentos foram 27% inferiores aos valores médios tomados como referência – foram plantados 25 mil hectares de HB4 na região em 2021.

“O trigo na Argentina enfrentou períodos de seca durante a safra de 2021 nas regiões mencionadas. Nessas condições, o trigo HB4 não expressou aumento na produtividade, sendo que seu rendimento foi significativamente menor do que as médias de referência retiradas dos dados oficiais. A tolerância à seca anunciada pela Bioceres e endossada por funcionários das agências reguladoras não foi expressa no campo”, aponta o estudo.

O trabalho de Frank como pesquisador tem sido avaliar as informações apresentadas pela Bioceres. Ele aponta que as informações divulgadas pela empresa são ações de marketing que se mostram enganosas, e alerta que, ao tomar uma decisão com base apenas nos resultados apresentados pela empresa, o governo brasileiro está comprando uma promessa, sem adotar o princípio de precaução necessário.

“Não há investigações independentes sobre isso. Na Argentina existem redes de pesquisa de variedades de trigo, mas a Bioceres não ofereceu seus materiais para serem avaliados. Eles apresentam dados produtivos que supostamente são muito bons, mas não fornecem os dados integrais das pesquisas. Apresentam alguns resultados, mas não oferecem a revisão dos cientistas, condição para que possa ser considerado como conhecimento científico”, ressalta.

Foto: Divulgação/Bioceres

Lacunas e ilegalidades

A CTNBio concluiu que o trigo geneticamente modificado proveniente da Argentina “é tão seguro ao meio ambiente, à saúde humana e animal quanto os grãos de trigo convencionais” e “isenta a requerente de monitoramento pós-liberação comercial”.

O extrato do parecer da CTNBio publicado no Diário Oficial aponta que a aprovação do pedido teve como base “informações apresentadas em audiência pública realizada pela CTNBio, informações aportadas pela solicitante e por especialista, e dados da literatura científica”.

A audiência pública citada pela CTNBio, no entanto, foi realizada no contexto da importação da farinha de trigo geneticamente modificada, aprovada em novembro de 2021. No caso de autorização para comercialização e plantio, seriam necessários novos estudos, testes de campo e uma nova audiência pública, o que não ocorreu.

“Eles pegam o mesmo número do processo para a importação da farinha e, a partir das informações desse processo, autorizam o cultivo. Mas no Brasil a legislação de biossegurança exige procedimentos diferentes. Teria como um requisito, por exemplo, fazer estudos nos biomas brasileiros”, explica Larissa Packer, integrante da organização internacional Grain.

O Parecer Técnico 7795/2021 referente à liberação comercial da farinha é claro ao afirmar que as informações ali contidas têm como base dados de estudos realizados na Argentina pela empresa Bioceres.

As normas de biossegurança da Argentina são mais flexíveis, porque o país vizinho não assina o Protocolo de Cartagena – do qual o Brasil é signatário –, que regulamenta os organismos geneticamente modificados em âmbito internacional e impõe procedimentos aos países-membros em relação a esses produtos.

Para o pedido de importação da farinha de trigo geneticamente HB4, a Bioceres firmou uma parceria com a empresa brasileira Tropical Melhoramento e Genética S.A (TMG), que tem a licença para operar com produtos geneticamente modificados no país. Já a autorização para comercialização e cultivo do trigo transgênico no Brasil foi solicitada pela TMG.

Os estudos conduzidos na Argentina, com critérios menos exigentes, foram utilizados para aprovar a importação da farinha. Para liberar o cultivo no Brasil, de acordo com a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), a TMG deveria pedir a abertura de um novo processo administrativo para conduzir pesquisas em território nacional de acordo com as exigências do Protocolo de Cartagena, fazendo pesquisas nos biomas em que esse trigo poderia ser introduzido.

Biossegurança

Lei 11.105/05 estabelece que a CTNBio deve emitir, caso a caso, decisão técnica sobre a biossegurança para organismos geneticamente modificados no âmbito das atividades de pesquisa, a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso. Nenhuma dessas informações foi disponibilizada pela CTNBio.

Em resposta ao questionamento apresentado pelas organizações signatárias do ofício ao CNBS, a CTNBio informou que os dados sobre o comportamento do trigo no Brasil “foram gerados em liberações planejadas no meio ambiente instaladas em regiões representativas para a cultura de trigo, Cambé/PR e Uberlândia/MG, em duas épocas de cultivo distintas”. A Comissão também afirma que os experimentos a campo “foram realizados segundo os ditames das Resoluções Normativas para Liberações Planejadas no Meio Ambiente (RN06, RN35) e foram apresentados dados completos de estudos realizados.”

Larissa Packer afirma que não há processo administrativo aberto sobre essas autorizações, e aponta falta de transparência no processo. Ela ressalta que os dados e conclusões desses estudos deveriam ser apresentados e discutidos com a sociedade por meio de uma audiência pública.

“Se houveram estudos, estão sob sigilo. Não é possível aferir se foram cumpridos os requisitos exigidos por lei, e se o trigo HB4 tem potencial de risco e dano nos biomas brasileiros. A gente não tem acesso ao processo e ao parecer para ver se teve a reprodução dessa semente no país por uma liberação contida ou a campo para fazer essas pesquisas nos prováveis meios receptores. Se houve a análise do estresse hídrico, se ele funciona nas condições do Brasil.”

A lei também prevê que, para serem introduzidos de forma segura no país, os organismos geneticamente modificados devem ser de tamanho limitado, no que for possível, às sequências genéticas necessárias — também conhecidas como pares de bases – para realizar a função projetada.

O problema, no caso do HB4, é que foram inseridas pares de bases para além do que havia sido previsto, segundo documentação da própria empresa. Leonardo Melgarejo alerta que os efeitos desses componentes adicionais devem ser  testados em campo, em diferentes biomas brasileiros. “Estamos falando de impactos ambientais, mas também de impactos sobre a saúde, porque vão existir alterações nesse trigo que podem gerar problemas nutricionais.”

A data de quando foram realizados esses estudos também é uma informação relevante a ser compartilhada com a sociedade. “Temos um histórico de cultivo ilegal de soja transgênica no Brasil antes de ser aprovada. Essa política de fato consumado é uma estratégia de negócios. Enquanto aguardam as aprovações, os transgênicos são liberados a campo, e a aprovação legítima algo que era ilegal, e que não está sendo investigado”, alerta Fernando Frank.

A reportagem de O Joio e O Trigo solicitou à CTNBio o cronograma da aprovação de cada semente, mas recebeu uma resposta evasiva.

Em seu relatório fiscal do segundo quadrimestre de 2022, a Bioceres destaca a aprovação da farinha de trigo transgênico no Brasil como “um passo necessário para o lançamento comercial na próxima temporada de plantio” e compartilha estimativas de comercialização do trigo transgênico da ordem de US$ 15-20 milhões para o ano fiscal de 2024, com pico estimado em 2,3 milhões de hectares e US$ 195 milhões em receitas para a empresa no atual mercado.

Neste mesmo documento, a empresa informa que o brasileiro Alexandre Garcia, doutor em Agronomia pela Universidade Estadual de Maringá, deixou seu cargo de diretor de inovação e pesquisa na TMG para assumir o cargo de diretor global do negócio de sementes da Bioceres com o objetivo de “aumentar o foco no acesso e desenvolvimento de genética de alto desempenho para a HB4 e novas tecnologias”. A Bioceres elogia seu desempenho na TMG por “liderar os esforços na cooperação” em relação ao HB4 desde 2014.

No relatório anterior, pouco após a aprovação da importação da farinha de trigo em novembro de 2021, a Bioceres comemora o fato de que, no “front regulatório” em relação ao trigo transgênico HB4, nenhuma informação adicional foi requerida pela CTNBio.

O organismo responsável por avaliar a produção de transgênicos na Argentina é a Comissão Nacional Assessora de Biotecnologia Agrícola (Conabia). Diferentemente da CNTBio, a Conabia é um órgão de assessoramento, cujas sugestões são encaminhadas para a Secretaria de Agricultura.

Criada em 1991, a Conabia tem um histórico de pouca transparência em sua composição e nos métodos de pesquisa, aponta Fernando Frank, que atua no Instituto de Agricultura Familiar Camponesa e Indígena. “Depois de muitos anos, soubemos, por meio de investigações, que ela estava formada com uma maioria de pessoas das mesmas empresas, estamos falando de um conflito grave de interesses em um organismo regulador.”

Apesar de ter função de assessoramento, as sugestões da Conabia têm sido aprovadas de forma automática pelo Estado argentino. O engenheiro agrônomo afirma que também há conflito de interesses entre representantes de órgãos públicos técnicos e científicos que integram a Conabia, que não têm a expertise necessária para as pesquisas que são realizadas. “Pessoas especializadas em criar transgênicos não têm formação para avaliar, por exemplo, se os produtos alimentícios têm potencial alergênico, então se limitam a receber e avaliar a informação apresentada pelas empresas.”

Agrotóxico

Outra informação central na divulgação sobre o trigo transgênico feita pela empresa é a sua resistência ao agrotóxico glufosinato de amônio. A Bioceres recomenda a aplicação de dois litros do produto para cada hectare plantado.

“A gente não tem nenhuma informação se esse agrotóxico causa riscos a outros organismos, a polinizadores que só tem no Brasil e não na Argentina. Se vai causar algum dano ao solo nos biomas do Brasil”, aponta Larissa Packer.

Para essa resistência ao herbicida, a Bioceres introduziu o transgene PAT/BAR sem a realização de testes experimentais, mesmo na Argentina.

“O que vemos é que a empresa está muito interessada em que se utilize esse herbicida, em vendê-lo. Esse é um dos principais motivos pelos quais a comunidade científica, de produção, organizações de consumidores da Argentina e também do Brasil, nos opomos a esse trigo”, alerta o engenheiro agrônomo Fernando Frank.

Leonardo Melgarejo aponta que o trigo transgênico deve entrar de forma intensa no mercado de lavouras transgênicas no Rio Grande do Sul, no Paraná e Santa Catarina, uma grande área de interesse para a comercialização do herbicida recomendado pela Bioceres.

“Sabemos que a introdução no mercado de um território tão importante para usar esse herbicida justificaria investimentos de grande porte. Estamos falando de um pacote tecnológico que está associado: quem plantar este trigo vai jogar sobre ele esse herbicida.” Nesse sentido, o trigo transgênico seguiria o caminho das sementes de soja e de milho, em especial a famosa Roundup Ready, da Monsanto, que resiste ao uso de glifosato, herbicida que rendeu à empresa centenas de condenações nos Estados Unidos por câncer e mortes.

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