Com os choques armados rolando soltos na Ucrânia neste preciso momento, temos uma boa oportunidade de verificar como se expressam na prática aquelas teorias linguísticas que debatíamos em nossos tempos de estudos acadêmicos.
Para alguém com algum embasamento em análise crítica do discurso, chegou a ocasião de confrontar as teorias e proposições tantas vezes estudadas em livros e artigos com aquilo que estamos vivenciando na realidade.
Para começar, quero deixar patente que está se comprovando muito válida aquela tese que costumávamos encontrar nos escritos do linguista holandês Teun Van Dijk de que a linguagem dos meios de comunicação refletem, em última instância, a base ideológica de quem a sustenta. Em outras palavras, não se pode esperar neutralidade de seres humanos quando abordam confrontações entre os próprios seres humanos. Somente estamos em condições de manter neutralidade e isenção em questões onde não existam interesses sociais em jogo.
Por isso, é bastante plausível que possamos encontrar debates acadêmicos profundos com total isenção emocional sobre uma questão do tipo: “As características mais apropriadas para o desenvolvimento da produção de cenouras em regiões de baixas temperaturas”. Assim como, talvez, pudéssemos analisar com frieza e isenção uma hipotética guerra travada entre os marcianos do norte e os marcianos do sul, uma vez que, fosse qual fosse nossa conclusão da análise, seu resultado não colocaria em risco nossos interesses concretos. Daria no mesmo para nós que fossem válidas e corretas as motivações dos nortistas ou as dos sulistas. Nossos interesses não seriam afetados e, portanto, poderíamos estudá-las e relatá-las com certa independência e neutralidade, chegando bem próximos a uma verdade objetiva.
Mas, nada disto ocorre quando o que temos é um embate que envolve diretamente interesses sociais conflitantes. Em tais situações, é quase que impossível que a ideologia não venha a exercer um peso determinante na análise.
Imaginemos, portanto, o grau de neutralidade que se pode esperar de um choque em que temos em jogo as seguintes forças: por um lado, os EUA e seu braço armado da OTAN, com a Ucrânia atuando por procuração; por outro, a Federação Russa e as forças identificadas com as populações russofalantes existentes dentro do território ucraniano. Evidentemente, o nível de neutralidade que se pode esperar neste caso é bem reduzido, visto que, qualquer que venha a ser o resultado deste confronto, os interesses de todos os outros povos e países do globo vão ser afetados. Assim que, seja para o bem ou para o mal, o desenlace dos acontecimentos na Ucrânia vai produzir efeitos nas condições de vida do restante do planeta.
Por isso, a questão da identificação ideológica vai exercer grande peso na hora de avaliar e narrar o que está acontecendo. É da lógica da natureza social humana que cada um procure sempre expor e argumentar a partir de seus próprios interesses e, em função de sua argumentação, buscar atrair aderentes para sua posição ou, na pior das hipóteses, neutralizar àquelas que poderiam ser-lhes contrárias.
Em vista do acima exposto, devemos considerar que tudo o que se transmite em relação ao conflito carrega o viés do transmissor. As falsificações da verdade e as mentiras descaradas costumam fazer parte das maiorias dos relatos de uma guerra. Mas, ainda que não houvesse apelo a mentiras e falsificações da verdade, a mera exclusividade de tecer a narrativa dos acontecimentos já seria de por si uma arma potentíssima em favor de quem a possuísse. Como se diz, a verdade é uma só, mas suas narrativas podem ser variadíssimas e, segundo o caso, provocar motivações inteiramente opostas nos receptores.
É possível expressar uma mentira das mais monstruosas, mesmo atendo-se tão somente a fatos verdadeiros. Por exemplo, alguns dos jornais do ocidente apresentaram há poucos dias uma notícia horripilante que dizia: Tanque russo esmaga automóvel com família ucraniana em pleno centro de Kiev.
Bem, tudo o que foi dito poderia corresponder à verdade dos fatos. O tanque poderia mesmo ser russo, tendo sido fabricado na Rússia ainda em período soviético e ter ficado na Ucrânia como parte do espólio militar quando do desmembramento da URSS. Em segundo lugar, havia mesmo uma família de ucranianos no automóvel, que foi esmagada como baratas pelo citado tanque. E a coisa aconteceu mesmo em Kiev, capital da Ucrânia. Ou seja, todas as verdades serviriam para montar uma mentira das mais criminosas em uma guerra.
Por ter o domínio absoluto da narrativa midiática em todo o Ocidente e mais além, o relator do caso em questão simplesmente não se interessou em dizer que, embora fosse de fabricação russa, o tanque era de propriedade e controle do exército da Ucrânia. Em outras palavras, considerou-se como um mero detalhe que não precisava ser informado o fato de que o tal tanque era uma arma sob completo domínio das forças militares ucranianas, e que a morte da família no centro de Kiev tinha sido causada por soldados a serviço do próprio estado ucraniano.
E por que os meios de comunicação corporativos dos países alinhados com os Estados Unidos se dispuseram a reproduzir em bloco a versão do caso de acordo com o relato inicial? Será que eles não sabiam que seria impossível que tanques do exército russo estivessem fisicamente presentes em Kiev no segundo dia das operações deflagradas a centenas de quilômetros de distância? Claro que os donos de meios de comunicação não são tão ignorantes como para não terem ciência disto. Mas, os interesses de classe que os motivam falaram mais alto. E é sempre assim, não tenhamos dúvidas.
Nas disputas bélicas da modernidade, embora a força tipicamente militar continue tendo grande relevância, ela não significa tudo o que uma potência precisa ter para se impor. Para viabilizar uma vitória, ou para torná-la mais aceitável e inconteste, é de grande relevância ganhar corações e mentes da maioria dos que não estão diretamente envolvidos no conflito e, desta maneira, impedir que apareçam fontes de oposição que possam dificultar a consagração dos vencedores. E é neste aspecto que o controle da narrativa desempenha um papel crucial no transcorrer do conflito.
Que fatores ideológicos poderiam ser mencionados para motivar alguém de um país como o Brasil a aspirar que sejam os EUA e a OTAN os vencedores e a Rússia os derrotados?
Sem dúvidas, terá todas as motivações para desejar ardentemente que a Rússia saia fragorosamente derrotada nesta disputa alguém que aprova o poder de dominação dos EUA sobre o mundo e o considera uma garantia para a continuidade dos negócios capitalistas e para o aumento ou manutenção das condições de extração de ganhos significativos das maiorias trabalhadoras pelo mundo afora.
Precisamos dizê-lo abertamente, uma eventual vitória dos EUA e da OTAN vai representar uma consolidação ainda mais acentuada da hegemonia estadunidense sobre os países da região periférica do capitalismo, entre os quais está o Brasil. Portanto, todo brasileiro que acredita que vai ser bom para nós que os Estados Unidos se mantenham isolados no comando do mundo e, com isso, estejam em condições de continuar determinando o futuro da humanidade conforme seus próprios interesses, todo brasileiro nessa situação tem mais é que torcer e atuar para tornar essa vitória uma realidade.
Também existem pessoas, mesmo entre os que se consideram de esquerda, que colocam como a primeira prioridade de sua luta pôr fim ao conservadorismo em costumes, um conservadorismo que desemboca, entre outras mazelas, no machismo e num moralismo de rigidez exacerbada. Para tais pessoas, portanto, parece fácil se posicionar em relação ao conflito em pauta. Se, como muitos dizem, Putin é um conservador inveterado que não se mostra disposto a ampliar os direitos da população LGBT, então, um Estado dirigido por Putin só pode ser um Estado a ser combatido. Portanto, não há vacilação, o apoio destas pessoas ao bloco EUA-OTAN (Ucrânia) vai ser quase que automático.
Sendo assim, não convém a quem defende uma das posições acima citadas que outras variantes venham à tona. Certamente, existem muitas pessoas de esquerda que não concordam com as visões moralistas de Putin, mas entendem muito bem que a Rússia atual não é um país imperialista. E, nem mesmo que quisesse sê-lo, teria condições para tal. A Rússia de Putin não tem bases militares espalhadas pelo mundo e prontas para intervir no momento em que sejam convocadas. Os Estados Unidos têm. A Rússia de Putin não detêm o controle da moeda de comércio internacional e não pode bloquear nenhum outro país por meio de medidas financeiras. Os Estados Unidos, sim. Em outras palavras, por mais conservador em costumes que digam que Putin é, nenhum país se torna imperialista por esse motivo.
Não é por acaso que todo o conglomerado midiático associado aos Estados Unidos e à OTAN tomou a decisão de bloquear e impedir a circulação de versões que não se subordinassem às orientações emanadas do bloco beligerante ocidental. Nunca antes na história tínhamos visto uma campanha de silenciamento tão brutal e gigantesca como a que se desfechou contra todos os meios que poderiam apresentar uma visão diferenciada dos acontecimentos.
Atuando de modo indecentemente compactuado, google, facebook, instagram, twitter, etc. se juntaram aos governos do bloco imperialista e retiram de suas plataformas os canais que não eram de seu agrado. Uma vez mais, os que se dizem paladinos da liberdade de expressão dão mostras de como temem a confrontação de sua versão da “verdade”. Será que, apesar dos milhares (melhor seria, milhões) de canais repetindo em uníssono os pontos de vista dos EUA-OTAN, a simples possibilidade de que os poucos meios russos existentes trouxessem à luz sua outra narrativa poderia pôr tudo a perder e acabar convencendo o público de que as coisas tinham se dado de modo diferente? Muito provavelmente, sim. Porém, isto deve ser devido à debilidade ou falsidade do que vem sendo divulgado. Se não, não haveria razão para o temor!
E como os jornalistas e militantes brasileiros de esquerda deveriam ou poderiam se comportar em meio ao panorama em que estamos inseridos? Bem, mais uma vez, é o posicionamento diante do imperialismo o grande divisor de águas que vai deixar visível quem é de verdade de esquerda e quem é tão somente um maquiador da face do capitalismo.
Não me parece possível ser realmente de esquerda e aceitar como válida, ou como um mal menor, a consolidação do poderio econômico-militar do império mais sanguinário de todos os tempos. Quem defende a vitória dos EUA-OTAN (via Ucrânia) neste momento não poderia de modo algum ser tido como alguém vinculado ao campo da esquerda, ou seja, dos que querem um mundo mais justo e solidário. Pois o imperialismo sempre foi e, agora mais que nunca, continua sendo o maior inimigo de todas as aspirações por justiça e independência de todos os povos fora dos centros de poder.
Um posicionamento correto e conforme com os interesses do povo brasileiro foi o que pudemos constatar em Lula, Dilma e nosso grande chanceler Celso Amorim. Todos eles deixaram claro que são contra a intervenção armada desfechada pelas forças da Federação Russa, mas, todos eles também deixaram patente que havia motivações, ou provocações, que instigaram a Rússia a enveredar pela ação militar. De tal forma que, ao mesmo tempo em que cobram a cessação da intervenção militar da Rússia, cobram igualmente o atendimento de suas justas reivindicações.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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