Por Mariana Schreiber, da BBC .
No Brasil, o movimento Escola Sem Partido acabou emprestando seu nome a um controverso projeto de lei que está em apreciação na Câmara dos Deputado. O texto estabelece regras para a conduta dos professores com objetivo de evitar supostas “doutrinações” em sala de aula e proíbe o ensino de questões de gênero.
Nos vizinhos latino-americanos, a resistência conservadora ganhou um lema comum: o “Con Mis Hijos No Te Metas” – em português, “não se meta com meus filhos”. O slogan começou a se espalhar pelas ruas e redes sociais do Peru em 2016, quando grupos conseguiram barrar a implementação de parte do novo Currículo Nacional para Educação Básica, e acabou inspirando articulações com o mesmo nome em países como Equador, Chile, Argentina e Paraguai.
O inimigo comum é a “ideologia de gênero” – que, na visão desses grupos, seria uma forma de ensinar as crianças erroneamente que elas podem ser, sexualmente, o que quiserem. Todos repetem a mesma identidade visual, baseada nas cores azul e rosa, para marcar o que consideram a diferença natural entre homens e mulheres.
Já os grupos que defendem as escolas como promotoras da igualdade de gênero e do respeito à diversidade sexual veem o mundo de forma mais “colorida” e rechaçam o termo ideologia, adotado pelos opositores.
À BBC News Brasil, o advogado Miguel Nagib, coordenador do Escola Sem Partido, diz que não mantém articulação com esses grupos, mas reconheceu a semelhança.
“Eu gosto muito dessa expressão, ‘con mis hijos no te metas’. É exatamemte isso: os pais querem apenas poder educar os seus filhos. É um direito natural das famílias e estão querendo tirar para virar um Estado totalitário”, disse.
Os opositores da proposta, por sua vez, dizem que o autoritarismo está em impedir que os filhos aprendam outras perspectivas nas escolas. “O movimento tem uma noção de família em que os pais são proprietários dos filhos. É uma relação muito autoritária”, afirma Renata Aquino, docente de história e integrante do movimento Professores contra o Escola Sem Partido.
A Organização das Nações Unidas tem criticado esses movimentos e se manifestou contra a suspensão do ensino de questões de gênero no Peru.
“Os valores familiares não precisam ser contrapostos pela escola, mas precisam ser colocados em perspectiva, entendendo que existe uma variedade de valores. Temos crianças e adolescentes sofrendo muito com esse apagamento da possibilidade de discutirem sua identidade de gênero”, ressalta Ítalo Dutra, chefe de Educação do Unicef (órgão da ONU para os direitos das crianças) no Brasil.
‘Homem é homem, mulher é mulher’
No Peru, o Con Mis Hijos No Te Metas conseguiu levar multidões às ruas em março de 2017, em diversas cidades. Poucos dias depois, o governo peruano baixou uma resolução alterando a redação de alguns trechos do currículo escolar, com objetivo de promover uma “adequação” para superar “mal-entendidos”, explicou à BBC Brasil Marilú Martes, na época ministra da Educação peruana.
No entanto, um tópico bastante criticado pelo movimento foi mantido: o que regula como deve se dar o enfoque de igualdade de gênero na sala de aula.
Ele começa dizendo: “Todas as pessoas têm o mesmo potencial para aprender e se desenvolver plenamente. Igualdade de gênero refere-se à avaliação igualitária dos diferentes comportamentos, aspirações e necessidades de mulheres e homens”.
O trecho que gerou mais resistência aparece pouco depois e diz: “Embora o que consideramos feminino ou masculino seja baseado em uma diferença biológica sexual, essas são noções que construímos dia a dia, em nossas interações”.
Na sequência, o documento orienta o professor a fomentar a “valorização respeitosa do corpo” como forma de “prevenir situações de abusos sexuais”. Também chama atenção para a não reprodução de preconceitos como considerar que mulheres limpam melhor ou que homens não são sensíveis.
Embora o tópico não aborde diretamente a diversidade de orientação sexual, o Con Mis Hijos No Te Metas considera que o texto promove o homossexualismo. O movimento conseguiu no ano passado uma decisão liminar da Justiça peruana suspendendo o enfoque de igualdade de gênero do currículo escolar. Ainda se aguarda uma manifestação definitiva da Suprema Corte. Cientes de que a vitória não é definitiva, seguem mobilizados, disse à BBC Brasil o porta-voz do movimento, Christian Rosas.
“Já estamos anunciando uma nova marcha para garantir que não se volte a implementar uma abordagem que não seja a abordagem humana, isto é, a imposição de uma ideologia (teoria do gênero), independentemente de que alguns possam ou não estar de acordo. Não compete às nossas autoridades decidir, dado que a função do Estado é transmitir um ensinamento a partir da neutralidade e não da imposição ideológica”, escreveu, por email.
Já a ex-ministra da Educação Marilú Martes, que deixou o governo após a renúncia do presidente Pedro Pablo Kuczynski em março, espera que os sucessivos casos de violência doméstica sensibilizem a Suprema Corte a autorizar a volta do enfoque de gênero na sala de aula.
“Grupos evangélicos dizem que estamos confundindo as crianças. Não é verdade. Você não confunde quando informa bem e é isso que faz o Ministério da Educação: informar as crianças e jovens quais são seus direitos”, defendeu.
“Lamentavelmente, é justamente nas famílias que mais ocorrem violações a meninas menores. Como podemos dizer então que a educação sexual deve ser apenas promovida pelos pais se justamente os pais, tampouco educados, lamentavelmente causam dano a seus próprios filhos?”, questionou ainda.
‘Erradicar a ideologia de gênero do mundo’
Após o sucesso do movimento peruano, algumas dezenas de milhares de equatorianos foram às ruas de Guayaquil e Quito em outubro contra a inserção de artigos que previam ensino de questões de gênero em uma lei de combate à violência contra as mulheres. O texto aprovado não agradou completamente a nenhum dos lados da disputa.
Também em outubro passado, após manifestações nas ruas do Paraguai, o então ministro da Educação Enrique Riera determinou a retirada de materiais didáticos, herdados da gestão anterior, que diziam que gênero é uma construção social.
“A família tradicional é papai, mamãe e filhinhos. Naturalmente, nós respeitamos as opções diferentes, mas não vamos inculcar (essa percepção) nas escolas públicas”, disse Riera à imprensa paraguaia na ocasião.
O Con Mis Hijos No Te Metas do Chile, por sua vez, tem marcado oposição às “tomas”, movimento liderado por feministas de ocupação de universidades e escolas contra as práticas de assédios sexuais dentro dessas instituições. O movimento critica a interrupção das aulas e apresentou, por meio de parlamentares aliados, um projeto de lei para proibir as ocupações.
Iniciativas parecidas com outras denominações também vêm ganhando força em países como México e Costa Rica. O debate no continente, porém, não se limita aos latinos. Recém-eleito para governar a província de Ontario, no Canadá, Doug Ford cumpriu sua promessa de campanha e suspendeu nesta semana o currículo de educação sexual implementado em 2015, que havia sido alvo de protestos. O currículo estabelecia, por exemplo, o ensino sobre diferentes identidades de gênero e abordava a masturbação como algo natural “que muitas pessoas fazem e sentem prazer”.
Christian Rosas, porta-voz do Con Mis Hijos No Te Metas peruano, disse que tem mantido articulação frequente com esses grupos. Segundo ele, o movimento está presente em todo o continente americano e já inspirou grupos na França, Dinamarca, Japão e Austrália. No Brasil, citou a presença de uma vertente, mas suas páginas no Facebook somam poucas dezenas de seguidores.
“Temos reuniões mensais de forma virtual, onde compartilhamos uma agenda e acompanhamos programaticamente as iniciativas que são apresentadas nos diferentes países. Isso nos ajuda a ter uma reação mais sincronizada, compartilhando estratégias sociais, comunicacionais, políticas etc.”, contou.
“Nosso objetivo é erradicar a ideologia de gênero do Peru, do continente e do mundo. Nesse sentido, as conexões com o Brasil e outros países fazem parte da estratégia programática no curto, médio e longo prazo”, explicou ainda.
Disputa no Brasil
O Escola Sem Partido, criado em 2004, não nasceu com o enfoque em questões de gênero, mas a partir da indignação de Miguel Nagib contra o que considerou uma tentativa de doutrinação do seu filho quando um professor comparou o líder comunista Che Guevara a São Francisco de Assis.
As reivindicações se aproximaram, porém, depois que grupos religiosos conseguiram barrar em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, a distribuição do material pedagógico “Escola Sem Homofobia”, que acabou apelidado de “kit gay” pelos opositores.
“A proposta que está no Congresso trata de aspectos políticos, partidários e ideológicos e também dessa questão relacionada à ideologia de gênero. Não acho que seja possível separar uma coisa da outra hoje”, afirma Nagib.
A proposta em discussão na Câmara dos Deputados prevê, entre outras determinações, que o professor “não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”. Estabelece também que o docente, “ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito”. Além disso, proíbe qualquer ensino de questões de gênero.
Críticos da proposta dizem que ela tolhe a liberdade de ensino garantida aos professores no artigo 206 da Constituição Federal. Dizem também que a Constituição já prevê o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” nas salas de aula. Afirma, ainda, que a proposta Escola Sem Partido é na verdade uma “cortina de fumaça” para impor o conservadorismo ao ensino no Brasil.
Estava previsto que o deputado Flavinho (PSC-SP), relator do projeto de lei, apresentasse seu parecer final nesta semana na comissão especial que está debatendo a proposta. Após uma longa e tensa sessão de debates na quarta-feira, porém, não houve tempo para a apreciação do texto, que agora só deve ocorrer em agosto, após o recesso parlamentar de julho.