Início Mundo Oriente Médio Como me tornei uma israelense militante pela questão Palestina

Como me tornei uma israelense militante pela questão Palestina

A rua Ben Yehuda com a King George, em Jerusalém, onde aconteceu a explosão (Foto: Reprodução)

Por Iara Haasz e Bruno Huberman.

Uma das autoras do blog, Iara Haasz, relata a sua experiência durante a explosão de um homem-bomba palestino em Jerusalém durante a Segunda Intifada e reflete sobre a importância desse evento na sua trajetória enquanto ativista pela libertação da Palestina

Jerusalém, 2002

Num segundo eu ouvi e senti, quase ao mesmo tempo, fui empurrada levemente para trás, pra dentro do trocador. Levou um tempo pra entender o que estava acontecendo, entrei no modo de emergência. Sabia que era melhor se eu não visse nada, então engatinhei no chão. Uma colega estava gritando e olhando por cima do balcão para a rua, puxei-a para baixo e a abracei. Ela começou a chorar.

Acendi um cigarro, um dos meninos, que também trabalhava ali, disse algo sobre ser proibido dentro da loja e eu respondi que ninguém nos despediria por fumar em uma hora dessas. Ele acendeu um também.

Eu ainda estava sentada no chão, minhas costas para o balcão e meus olhos virados na direção oposta da rua. Não lembro quem ligou, acho que fui eu, falei com a minha tia por telefone, disse que estava inteira e pedi que desse o número da loja para minha mãe no Brasil.

A gerente da loja não estava aquele dia. Ligou pra ver se estávamos todos vivos, estava chorando muito e dizia que deveria ter estado lá com a gente! Eu disse: graças a Deus (pois é, disse isso mesmo…) que ela não estava, teria sido perigoso para a gravidez dela.

Minha tia ligou e disse pra deixar minha avó pagar a passagem de volta para o Brasil. Já não valia a pena resistir: este foi o único trabalho que consegui para juntar dinheiro e comprar uma passagem pra casa! Aceitei a oferta, não fazia sentido ficar mais.

Em algum momento, no meio de tudo isso, ouvi sirenes. Pessoas entraram e disseram que tínhamos que esperar para eles liberarem nossa saída dali. Um cara, acho que era um paramédico, me fez algumas perguntas, não me lembro quais, e levou a menina que eu tinha abraçado. Ela ainda estava em choque, não disse uma palavra.

Minha família ligou do Brasil, não lembro o que eu disse, só lembro-me de ter dito que estava bem.

Aí, entrou outro cara na loja e disse que a rua estava liberada. Agora podíamos sair.

Eu me levantei pela primeira vez. Olhei primeiro para as paredes de vidro da loja, ainda tinha algo vermelho grudado no vidro, deduzi que eram restos de pessoas, mas não era nojento, só surreal. Finalmente olhei além das paredes de vidro, vi duas pessoas na rua levantando, a última evidência de que pessoas estiveram envolvidas naquela bomba suicida.

Naquele momento, foi muito rápido, foi um download de informação, lembrei de ter ouvido que os homens e mulheres quando vestem bombas fazem de um jeito que a cabeça deles fique intacta.

Eu vi o rosto dele.

Foi como se eu ficasse translúcida, não haviam fronteiras na forma como sentia meu corpo. Entendi muitas coisas naquele momento, coisas que só fariam sentido consciente pra mim depois de anos.

Comecei a andar para o restaurante onde uma amiga trabalhava, pois tinha decidido pedir que ela me levasse para casa, então fiz o que havia planejado. No caminho cruzei com uma pessoa que conhecia da universidade, ele me perguntou se eu sabia o que tinha acontecido e eu disse que estive lá. Ele me abraçou e me disse muitas “coisas certas” que se diz numa ocasião dessas.

Continuei meu caminho. Minha amiga, que trabalhava perto da loja, me levou para casa em um táxi e ficou falando de outras coisas, além de falar também “coisas certas”.

Quando cheguei em casa, meus companheiros de apartamento estavam me esperando, ela com um copo de chá para mim numa mão e na outra o celular ligando para todos os amigos, como normalmente fazíamos depois de uma bomba, para ver se estavam vivos. Ele, depois de me dar um baseado, saiu correndo para o hospital mais perto para ver se podia ajudar, havia sido paramédico no exército e fazia isso sempre depois de uma bomba.

Minha melhor amiga ligou, ela começou a rir, muito! Gritei e chorei. Me senti muito grata a ela por não dizer “coisas certas”, por ela não ter um roteiro de como reagir a isso.

Fiquei emocionalmente adormecida no dia seguinte. Fui para a casa da minha tia. Meus dois primos mais novos vieram me pegar na estação de ônibus. No caminho, no carro, estávamos conversando e ele me perguntou se eu ia voltar para o Brasil, lhe respondi algo do tipo: não consigo mais viver assim. Minha prima de dez anos disse uma das coisas mais tristes de se ouvir de uma criança: estamos todos cansados, ninguém deveria viver assim.

À tarde, quando eu estava sozinha com a minha tia, ela se sentou perto de mim e me disse que eu tinha que contar a ela o que havia visto para que não me consumisse por dentro. Então, contei sobre a cabeça, foi difícil, mas consegui. O que eu não consegui foi dizer em voz alta o que eu estava pensando, tudo que eu conseguia pensar era:

Aquele homem devia estar sofrendo demais pra fazer aquilo. Não é o ato de uma pessoa louca! Que inferno que ele estava passando pra chegar no ponto que a única saída possível foi amarrar uma bomba a seu corpo e se explodir levando outros com ele.

Pensei isso em 2002, se passaram muitos anos desde então, escrevi este texto em 2012. Nos anos que vieram depois desta vivência muita coisa mudou na minha vida, demorou muito para que eu realmente fosse olhar para isso de novo, a principio só quis me desligar de tudo isso, cheguei a dizer que não era mais judia.

Depois fui estudar, fui me informar, sobre tudo o que a minha educação sionista não me disse e sobre aquilo que ela me mentiu. Li Illan Pappe , Edward Said, entre outros, vi muitos documentários sobre a questão Palestina. Foi duro esse caminho, doeu muito. Hoje tenho uma idéia mais clara do que ele, Mohammad Hashaika, estava passando. Digo que tenho uma idéia mais clara por que eu nunca vou saber, não sou palestina, não vivo sob ocupação e tudo o que ela significa, e não sou obrigada a escolher que forma de resistência tomar ou como lidar com essa vida que lhe foi dada.

Sou israelense e minha obrigação é saber sobre isso e não me calar. É contar como acontece que uma pessoa acredita em meias informações, em mentiras completas, em um amor por uma pátria mágica que nunca existiu. O mais difícil é que ela foi vivenciada de maneira mágica por tantos, mesmo estando baseada em mentiras, violações absurdas de direitos humanos e leis internacionais, e uma violência sistemática que visa a expulsão dos palestinos desta terra.

Quero contar aqui memórias minhas, de israelense que mudou para o Brasil aos 5 anos e voltou para Israel aos 18, para entender se era mais israelense ou brasileira, e o que significaram para mim estas memórias. Mas quero contar também histórias recentes de descoberta da situação real neste território Palestino, onde está localizado o estado onde nasci: Israel.

Não quero ser mal interpretada, mas sei que serei, por que este assunto mexe muito com muitas pessoas.

Quero expressar aqui meus pêsames pelas três vitimas mortas no atentado e por Mohammad Hashaika.

Fonte: Opera Mundi.

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