Como Israel perdeu toda a credibilidade

Por Ramzy Baroud e Romana Rubeo.

No sábado, 11 de novembro, o porta-voz militar israelense Daniel Hagari afirmou em uma coletiva de imprensa que Israel havia matado um “terrorista” que impediu que 1.000 civis escapassem do Hospital Shifa.

As alegações não faziam muito sentido. Mesmo para os padrões da propaganda israelense, falsificar uma informação como essa, sem fornecer nenhum contexto e nenhuma prova, contribui ainda mais para a deterioração da credibilidade de Israel na mídia internacional e da imagem em todo o mundo.

Apenas um dia antes, um funcionário não identificado dos EUA foi citado pela CNN como tendo dito, em um telegrama diplomático, que “estamos perdendo muito no espaço de batalha das mensagens”.

O diplomata estava se referindo à reputação estadunidense no Oriente Médio – na verdade, no mundo todo – que agora está em frangalhos devido ao apoio cego dos EUA a Israel.

Papéis invertidos

Esse deficit de credibilidade pode ser observado no próprio Israel. Não apenas o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu está perdendo a credibilidade entre os israelenses, de acordo com várias pesquisas de opinião pública, mas todo o establishment político israelense também parece estar perdendo a confiança dos israelenses comuns.

Uma piada comum entre os palestinos atualmente é que os líderes israelenses estão imitando os líderes árabes nas guerras árabe-israelenses anteriores, em termos de linguagem, vitórias falsas e ganhos infundados no front militar.

Por exemplo, em junho de 1967, enquanto Israel estava rapidamente empurrando os exércitos árabes para trás em todas as frentes, com total apoio dos EUA e do Ocidente, é claro, os líderes dos exércitos árabes estavam declarando pelo rádio que haviam chegado aos “portões de Tel Aviv”.

A sorte parece ter se invertido. Abu Obeida e Abu Hamza, porta-vozes militares das Brigadas Al-Qassam e das Brigadas Al-Quds, respectivamente, fornecem relatos muito cuidadosos sobre a natureza da batalha e as perdas das forças militares israelenses que avançam em suas declarações regulares e muito esperadas.

O exército israelense, por outro lado, fala de vitórias iminentes, da morte de “terroristas” não identificados e da destruição de inúmeros túneis, embora raramente forneça qualquer evidência. A única “evidência” fornecida é o ataque intencional a hospitais, escolas e casas de civis.

E, embora as declarações de Abu Obeida sejam quase sempre seguidas de vídeos bem produzidos, documentando a destruição sistemática de tanques israelenses, nenhuma documentação desse tipo comprova as alegações militares israelenses.

Para além do campo de batalha

Mas a questão da credibilidade israelense, ou melhor, a falta de credibilidade, não está ocorrendo apenas no campo de batalha.

Desde o primeiro dia da guerra, médicos palestinos, funcionários da defesa civil, jornalistas, blogueiros e até mesmo pessoas comuns filmaram ou registraram todos os crimes de guerra israelenses em todos lugares da Faixa de Gaza sitiada. E, apesar do desligamento contínuo da Internet e da eletricidade em Gaza pelos militares israelenses, de alguma forma, os palestinos acompanharam todos os aspectos do genocídio israelense em andamento.

A precisão da narrativa palestina até mesmo forçou as autoridades dos EUA, que inicialmente duvidavam dos números palestinos, a finalmente admitir que os palestinos estavam dizendo a verdade, afinal de contas.

Barbara Leaf, Secretária de Estado assistente para Assuntos do Oriente Próximo, disse num painel da Câmara dos EUA em 9 de novembro que os mortos por Israel na guerra são provavelmente “mais altos do que o que está sendo citado”.

Na verdade, todos os dias, Israel perde credibilidade, a ponto de as mentiras israelenses iniciais sobre o que aconteceu em 7 de outubro acabarem sendo desastrosas para a imagem e a credibilidade geral de Israel no cenário internacional.

Estupro, ISIS e Mein Kampf

Na euforia de demonizar a resistência palestina – como forma de justificar o futuro genocídio de Israel em Gaza – o governo e os militares israelenses, depois os jornalistas e até mesmo as pessoas comuns, foram todos recrutados para uma campanha hasbara [Hasbara foi formalmente apresentado ao vocabulário sionista por Nahum Sokolow. Hasbara (hebraico: ??????????) não tem tradução direta, mas significa aproximadamente “explicar”. É uma estratégia comunicativa que “procura explicar as ações, justificadas ou não”. Como se concentra em fornecer explicações sobre as ações de alguém, o hasbara tem sido chamado de “abordagem reativa e orientada a eventos”. Ou seja propaganda abjeta.- nota do tradutor] sem precedentes com o objetivo de pintar os palestinos como “animais humanos” – segundo as palavras do ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant.

Poucas horas depois dos eventos e antes que qualquer investigação fosse conduzida, Netanyahu falou de “bebês decapitados”, supostamente mutilados pelas mãos da Resistência; Gallant afirmou que “meninas jovens foram violentamente estupradas”; até mesmo o ex-rabino-chefe militar, Israel Weiss, disse ter “visto uma mulher grávida com a barriga rasgada e o bebê arrancado”.

Até mesmo o presidente israelense, supostamente “moderado”, Isaac Herzog, fez declarações ridículas na BBC em 12 de novembro. Quando perguntado sobre os ataques aéreos israelenses em Gaza, Herzog afirmou que o livro Mein Kampf, escrito por Adolf Hitler em 1925, foi encontrado “na sala de estar de uma criança” no norte de Gaza.

E, é claro, houve as repetidas referências às bandeiras do ISIS que, por algum motivo, foram carregadas por combatentes do Hamas ao entrarem no sul de Israel em 7 de outubro, entre outros contos de fadas.

O fato de o ISIS ser um inimigo declarado do Hamas e do Eixo da Resistência ter feito tudo o que estava ao seu alcance para erradicar qualquer possibilidade de o ISIS estender suas raízes na sitiada Faixa de Gaza parecia irrelevante para a propaganda ensandecida de Israel.

Como era de se esperar, a mídia israelense, norte-americana e europeia repetiu a alegação da conexão entre o Hamas e o ISIS, sem nenhuma discussão racional ou a verificação de fatos minimamente necessária.

Mas, com o tempo, as mentiras israelenses não conseguiram mais resistir à pressão da verdade que vinha de Gaza, documentando cada atrocidade e cada batalha e ofuscando todas as alegações israelenses.

Talvez o ponto de virada da série implacável de mentiras israelenses tenha sido o ataque ao Hospital Batista Al-Ahli, na Cidade de Gaza, em 17 de outubro. Embora muitos tenham adotado e, infelizmente, ainda defendam a mentira israelense – de que um foguete da Resistência caiu sobre o hospital -, o sangue puro desse massacre, que matou centenas de pessoas, foi, para muitos, um sinal de alerta.

Uma das muitas perguntas que surgiram após o massacre do Hospital Batista é: Se Israel foi, de fato, honesto em relação à sua versão dos fatos ocorridos no hospital, por que bombardeou todos os outros hospitais de Gaza e continua a fazê-lo há semanas?

Hasbara israelense cancelada

Há motivos pelos quais a propaganda israelense não consegue mais influenciar efetivamente a opinião pública, apesar de a grande mídia continuar ao lado de Israel, mesmo quando esse país está cometendo um genocídio.

Em primeiro lugar, os palestinos e seus apoiadores conseguiram “cancelar” Israel usando as mídias sociais, o que, pela primeira vez, superou as campanhas de propaganda organizadas, muitas vezes criadas em nome de Israel na mídia corporativa.

Uma análise do conteúdo on-line em plataformas populares de mídia social foi realizada pela plataforma israelense de marketing de influência, Humanz. O estudo, publicado em novembro, admitiu que “enquanto 7,39 bilhões de posts com tags pró-Israel foram publicados no Instagram e no TikTok no mês passado, no mesmo período 109,61 bilhões de posts com tags pró-Palestina foram publicados nas plataformas”. Isso, de acordo com a empresa, significa que as opiniões pró-palestinas são 15 vezes mais populares do que as opiniões pró-israelenses.

Em segundo lugar, a mídia independente, palestina e de outros países, ofereceu alternativas para aqueles que buscam uma versão diferente dos eventos que estão ocorrendo em Gaza.

Um único jornalista palestino freelancer em Gaza, Motaz Azaiza, conseguiu conquistar mais de 14 milhões de seguidores no Instagram em um único mês por causa de suas reportagens em campo.

Em terceiro lugar, o “ataque surpresa” de 7 de outubro privou Israel da iniciativa, não apenas em relação à guerra em si, mas também à justificativa para a guerra. Na verdade, a guerra genocida contra Gaza não tem objetivos específicos, mas também não tem uma campanha de mídia precisa para defender ou racionalizar esses objetivos não especificados. Portanto, a narrativa da mídia israelense parece desconexa, aleatória e, às vezes, até mesmo autodestrutiva.

E, finalmente, a brutalidade absoluta do genocídio israelense em Gaza. Se compararmos as mentiras da mídia israelense com os horríveis crimes israelenses cometidos em Gaza, não encontraremos nenhuma lógica plausível que possa justificar de forma convincente o assassinato em massa, o deslocamento, a fome e o genocídio de uma população indefesa.

Nunca a propaganda israelense falhou de forma tão surpreendente e nunca a grande mídia falhou em proteger Israel da raiva global – na verdade, do ódio fervente – pelo feio regime de apartheid de Israel. As repercussões de tudo isso certamente afetarão a maneira como a história se lembrará da guerra israelense em Gaza, que até agora matou e feriu dezenas de milhares de civis inocentes.

Uma geração inteira, se não mais, já construiu uma percepção de Israel como um regime genocida, e nenhum número de mentiras futuras, filmes de Hollywood ou propagandas da revista Maxim jamais diminuirá isso de forma alguma.

Mais importante ainda, essa nova percepção provavelmente obrigará as pessoas não apenas a reexaminarem suas opiniões sobre o presente e o futuro de Israel, mas também sobre o passado – a própria base do regime sionista, que, por sua vez, se baseia apenas em mentiras.


O Dr. Ramzy Baroud é jornalista, autor e editor do The Palestine Chronicle. Ele é autor de seis livros. Seu último livro, co-editado com Ilan Pappé, é Our Vision for Liberation: Engaged Palestinian Leaders and Intellectuals Speak Out. Seus outros livros incluem My Father was a Freedom Fighter The Last Earth. Baroud é pesquisador sênior não residente do Center for Islam and Global Affairs (CIGA). Seu site é www.ramzybaroud.net.

Romana Rubeo é uma escritora italiana e editora-chefe do The Palestine Chronicle. Seus artigos foram publicados em vários jornais on-line e revistas acadêmicas. Tem mestrado em Língua e Literatura Estrangeiras e é especializada em tradução audiovisual e jornalística.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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