Narrar episódios da luta de classes depende não apenas do lado em que o autor está nas barricadas (do presente ou do passado), mas da maneira como ele constrói o relato. A questão aqui é posta em especial no contexto da literatura.
Por Afonso Machado
Narrar episódios da luta de classes depende não apenas do lado em que o autor está nas barricadas( do presente ou do passado), mas da maneira como ele constrói o relato. A questão aqui é posta em especial no contexto da literatura. Primeiramente deve-se definir sobre o que escrever. Que tal a greve geral do último 14 de junho? Dar atenção a este acontecimento, destaca-lo, já é por si só um ato literário em prol da classe trabalhadora, visto que a mídia burguesa obviamente não deu, em grande parte, a menor bola ao acontecido. Certo, já se sabe sobre o que escrever. Pensemos agora nos personagens e na estrutura das ações, na exposição das situações. Dependendo da natureza e da abordagem destes personagens, corre-se o risco de cair num drama burguês, folhetinesco. A comunicação de um acontecimento histórico esbarra assim na questão estética.
Vamos costurar a coisa toda em local e horário definidos: em Campinas, trabalhadores e estudantes começaram a se concentrar no dia 14 de junho de 2019, no Largo do Rosário, centro da cidade, por volta das 17h. Para o autor que escreve estas linhas fica mais fácil, afinal ele estava lá. Mas mesmo que fosse um acontecimento que ele não vivenciou, seja por razões geográficas(o mesmo ato na cidade de Salvador, por exemplo) ou por fatores temporais(se o autor decidisse escrever sobre algum outro acontecimento que se passou numa época em que ele nem havia nascido), o tratamento que ele dá ao texto depende do controle dos documentos históricos utilizados, da sua posição política e das suas escolhas estéticas. Façamos agora o esboço de uma história. Estavam então no Largo do Rosário dois personagens fictícios: “ Mariana “ é uma estudante universitária que milita em uma dada organização política de esquerda. “ Paulo “ é um sindicalista que milita na mesma organização que Mariana. Como proceder agora?
Se optássemos por uma história folhetinesca, Mariana seria uma jovem rebelde que, rompendo com suas supostas origens pequeno burguesas, mergulha no marxismo e apaixona-se por Paulo, um trabalhador. Eles formariam um casal de revolucionários que, empunhando juntos uma bandeira vermelha, fariam do trajeto da própria passeata a marcha do seu amor. Muito melado, não é mesmo? Tem cara de novelão e não de drama revolucionário. E se decidíssemos por uma proposta literária realista clássica? Mariana e Paulo não formariam propriamente um casal romântico. Eles se encontram casualmente e de vez em quando rola de ficarem juntos. Mariana de fato é uma militante de esquerda que esforça-se para superar uma visão de classe média, mas que possui muitas contradições, revelando em seus atos preconceitos e um temperamento esnobe. Paulo é um sindicalista que apesar de sua militância, também possui graves contradições, agindo muitas vezes como machista. Muitas outras possibilidades poderiam se dar na construção desta história: Paulo é um personagem de classe média que torna-se sindicalista e Mariana uma estudante de origem proletária. Combinações é o que não faltam para se pensar tais personagens enquanto produtos históricos de uma época. Ganhamos muito com esta representação “ realista “? Existe nesta proposta a possibilidade crítica de expor a dialética da personalidade dos personagens. Mas o fundo histórico permaneceria como mero cenário ou como sucessão linear de acontecimentos( por entre as falas e as situações em que Paulo e Mariana se encontram, a narrativa daria informações episódicas sobre o local, os pequenos acontecimentos e até a exposição de um conjunto histórico mais amplo). Ficamos assim fadados á escolha do folhetim bobo alegre e do realismo cara fechada? Não, claro que não: existem possibilidades inventivas, com as quais o proletariado atual precisa estabelecer um contado experimental.
Uma colagem de diferentes formas narrativas acerca do panorama histórico que define o 14 de junho de 2019, substituiria a mera descrição linear dos fatos: o movimento das bandeiras, o conteúdo dos panfletos, as falas do carro de som, o ritmo dos tambores usados pelos manifestantes, precisam atingir a percepção do leitor , precisam articular-se no plano do texto: incursões gráficas no texto, com direito a BOOM e BAAM + a reprodução na íntegra de algum panfleto + a foto de uma bandeira + palavras de ordem , dinamizam a coisa toda. Para representar as forças políticas da classe dominante, pode-se recorrer ás declarações e medidas do governo contrastando com estatísticas sobre o desemprego, contrastando com relatos de trabalhadores sobre a precarização das suas condições de trabalho + fotos de trabalhadores expondo as dificuldades do cotidiano+ relatos de paralisações em outros pontos do país. Forma-se assim por diferentes textos(e imagens) no mesmo texto, um panorama nacional da greve. O país inteiro cabe num texto que se passa no Largo do Rosário, em Campinas-SP. Nada de açúcar. Nada de prestar contas ás amarras que limitam a expressão literária. Posição política clara na luta de classes.
Devemos agora manter os personagens Mariana e Paulo? Pode-se manter sim: eles podem ser namorados, amigos, sei lá. Eles poderiam ser amigos e terem outros relacionamentos com outros personagens(Mariana e André, Paulo e Roberto, Mariana e Andréia, Roberto e Andréia) ou ainda não estarem a fim de ninguém.
Expor a personalidade dos personagens, suas contradições íntimas, sua orientação e temperamento sexual, enriquece o texto desde que não fiquemos na previsibilidade de um drama individualista, de meros retratos individuais, que não entrelaçam-se com o evento histórico, com a sua significação política. Pode-se também não utilizar personagens individuais mas narrar movimentos de massa, ou seja, personagens coletivos que representam as classes sociais em luta. É possível inclusive relacionar um personagem coletivo com indivíduos. Imaginemos a descrição de um choque ideológico entre o povo na passeata e um trabalhador despolitizado num ponto de ônibus. Este trabalhador observa a passeata que atravessa a avenida Glicério. Como ele sente e se posiciona perante a passeata? Isto é algo que deve-se levar em conta no texto: o trabalhador que está no ponto de ônibus tira um foto do seu celular e depois fica pensando sobre o acontecido. Este personagem poderia afirmar que apesar dele estar desempregado, vivendo inúmeras dificuldades, é “ temente “ a Deus e que a sua bandeira “ nunca será vermelha “. Mas ele poderia também se entusiasmar com a passeata, aderindo a ela e marchando ao lado dos manifestantes. O trabalhador em questão poderia ser fictício ou não.
Existem muitas outras possibilidades para escrevermos os dramas da luta de classes. É hora de pesquisarmos e experimentarmos caminhos para construirmos a literatura revolucionária do nosso tempo.