Por Raul Milliet Filho.
Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores dos séculos XX e XXI, falecido em 1º de outubro de 2012, trilhou caminhos pouco frequentados pelo mundo acadêmico. Além de economia, política, e movimentos sociais dominava outros temas como jazz, artes plásticas, moda e futebol.
Marxista, avesso a análises reducionistas e dogmáticas, Hobsbawm foi um estilista erudito e original, senhor de uma narrativa leve e sofisticada, respeitado até mesmo por críticos contundentes, como Tony Judt.
E aqui fica uma pergunta. Como este notável historiador pousaria seu olhar crítico sobre Jair Bolsonaro? Não esquecendo que Hobsbawm dedicou uma pequena parte de sua obra aos estudos da América Latina.
Suas análises sobre o nazifascismo, principalmente em Era dos Extremos, seu posicionamento firme, corajoso no que diz respeito às desigualdades sociais, sempre ressaltando a excrescência e o totalitarismo neoliberal nos levam a concluir que, com a profundidade e a seriedade costumeiras, Bolsonaro não escaparia de sua pena crítica.
O historiador Hobsbawm e sua obra só podem ser compreendidos através do contraponto de sua vida pessoal e de sua formação acadêmica na Inglaterra.
De família judaica, nasceu em Alexandria em 1917. Sua infância e adolescência foram duras, marcadas por graves dificuldades financeiras e pelo falecimento precoce de seus pais.
Passou a infância em Viena, mudando-se para Berlim aos 14 anos para residir com uma tia. A conjuntura era singular e efervescente: crise econômica e embates políticos cotidianos.
Eric ingressa no Partido Comunista Alemão (KPD) antes de concluir o ginásio, no apogeu das Frentes Populares.
Foi uma fase que marcou sua vida para sempre, conforme assinalado em sua autobiografia Tempos Interessantes:
“Os meses que passei em Berlim me tornaram comunista para o resto da vida, ou pelo menos me transformaram em alguém cuja vida perderia a natureza e o significado sem o projeto político a que se dedicou quando estudante, ainda que visivelmente esse projeto tenha falido -e, como agora sei, somente poderia falir. O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado do computador lá permanece, a espera de que os técnicos o recuperem dos discos rígidos”.
Conforme vimos no parágrafo acima, “o sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim”, a sua militância política e de historiador voltariam obrigatoriamente sua atenção e disciplina de pesquisador para dardejar Trump e Bolsonaro.
Autor de livros que inovaram a compreensão do mundo contemporâneo – Era das Revoluções (1789-1848); Era do Capital (1848-1875); Era dos Impérios (1875-1914) e Era dos Extremos (1914-1991), Eric encantou leitores e críticos de várias correntes do pensamento, independente de filiação ideológica ou político-partidária.
Era dos extremos
O historiador Niall Ferguson, em entrevista ao The Guardian, considera estes quatro livros, o ponto de partida mais indicado para quem pretende aprofundar seu conhecimento sobre a História Moderna.
Hobsbawm pode ser denominado como o mais completo historiador do capitalismo e um de seus mais severos críticos.
Seu método era invulgar. Abdicava de preâmbulos teórico-metodológicos, componentes que fluíam em sua narrativa entrelaçados harmonicamente nos desdobramentos dos períodos históricos analisados.
Em suas investigações evitava abstrações conceituais, pautando-se por uma rigorosa historicidade, recuperando para a História a tradição dos estudos panorâmicos, abrangentes, articulando as dimensões da economia, cultura, política e lutas sociais.
Nos quatro volumes aludidos, Hobsbawm envolve o leitor através de uma análise sólida, instigante e inovadora, demonstrando os vínculos estreitos entre a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, além de empreender uma investigação sobre a expansão imperialista e a Revolução Russa.
Em paralelo, situa a História do trabalho, o mundo do trabalho como elemento central do processo histórico, abrindo caminho para a valorização de movimentos sociais não organizados, vertente que levaria a termo em Rebeldes Primitivos (seu primeiro livro publicado, em 1959) e Os Trabalhadores.
Da Era das Revoluções, à Era dos Extremos, a Revolução Francesa e a Revolução Russa são destacadas como os dois momentos de ruptura mais significativos da História.
Em Era dos Extremos, Eric Hobsbawm estabelece parâmetros comparativos destas duas revoluções:
“Contudo, a Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que sua ancestral (a Revolução Francesa). Pois se as ideias da Revolução Francesa, como é hoje evidente, duraram mais que o bolchevismo, as consequências práticas de 1917 foram muito maiores e mais duradouras que as de 1789. A Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna. Sua expansão global não tem paralelo desde as conquistas do Islã em seu primeiro século. Apenas 30 ou 40 anos após a chegada de Lenin à Estação Finlândia em Petrogrado, um terço da humanidade se achava vivendo sob regimes diretamente derivados dos ‘Dez dias que abalaram o mundo’ (REED, 1919) e do modelo organizacional de Lenin, o Partido Comunista.”
Em um dos seus textos, afirmou que um historiador social não podia negligenciar nem a economia nem Shakespeare. Deveria analisar não somente os aspectos econômicos da vida em sociedade como as ideias, a linguagem e o imaginário coletivo.
Para Hobsbawm a História se move pela ação direta do homem e o papel do historiador seria buscar a compreensão deste processo a partir de suas múltiplas inflexões.
O seu rompimento com o marxismo vulgar e positivista, plasmado na sucessão dos modos de produção e na marcha inevitável do escravismo ao socialismo, deságua na sua proposta analítica de “Eras”, cujo eixo está centrado na ascensão da burguesia, na luta de classes, na Revolução Russa, no crescimento das forças produtivas e nas duas Guerras Mundiais.
Apesar de recusar o dogmatismo, não abdicou de suas convicções, não tomou assento nos vagões de um marxismo adocicado, nem enveredou por caminho da micro-história e/ou da História das Mentalidades. Ao contrário.
Personagens à semelhança do moleiro Menocchio de Carlo Ginzburg (O Queijo e os Vermes) e de toda uma gama de Pessoas Extraordinárias, homens simples do povo, solistas do jazz brotam ao longo de sua obra, sem a perda da noção de totalidade. O diálogo constante entre a macro e a micro-história é conduzido com sabedoria e fluência, aliado a um domínio pleno da narrativa em seus livros e textos.
Da mesma forma, Hobsbawm não sucumbiu aos embates com o estruturalismo, apoiando E. P. Thompson em sua longa polêmica com Althusser.
Trump e seu vassalo Bolsonaro
Por que sucumbiria, então, diante do desafio de analisar a ascensão em dois países continentais, como EUA e Brasil, de falcões da extrema direita como Trump e seu vassalo Bolsonaro? Afinal, trata-se da maior potência mundial e do país capaz de influenciar toda América do Sul e alhures.
É o próprio Hobsbawm que nos leva a conhecer os momentos iniciais de sua formação acadêmica, já em solo inglês, nos anos que precedem a Segunda Guerra Mundial. Anos marcantes, onde já despontam o estilo e o método do historiador, ainda muito jovem:
“Meu próprio marxismo se desenvolveu como uma tentativa de compreender a humanidade. O que me preocupava na época não eram os problemas macro-históricos clássicos do debate histórico marxista sobre o desenvolvimento da história – a sucessão de ‘modos de produção’. Era o lugar e a natureza do artista e das artes (de fato, a literatura) na sociedade, ou, em termos marxistas ‘De que forma a superestrutura está ligada à base?’ “
Em Sobre História, Hobsbawm afirma que não seria possível empreender uma abordagem consistente da História “que não se reporte a Marx ou, mais precisamente, que não parta de onde ele partiu”.
Por outro lado, compreendia que as análises inovadoras de Marx sobre as transformações estruturais das sociedades não incorporaram as questões culturais e o imaginário coletivo, pelas limitações do referencial teórico disponível em meados do século XIX.
Hobsbawm entendia que seria impossível aprofundar a obra de Marx sem contextualizá-la historicamente. E foi exatamente isto que levou a termo em seus estudos, como no ensaio “A História Britânica e os Annales: Um Comentário“:
“ […] o modelo marxista da base e superestrutura, apesar do que possam pensar a seu respeito, implica, afinal de contas, uma consideração da superestrutura também como uma base, ou seja, a importância das ideias. Não é amplamente reconhecido que, na discussão da Revolução britânica do século XVII, foram marxistas como Christopher Hill que constantemente insistiram contra os deterministas economicistas sobre a importância do puritanismo, como algo em que as pessoas acreditavam, e não simplesmente como uma espécie de espuma no topo das estruturas de classes ou movimentos econômicos.”
O contraponto entre as relações econômicas e culturais está presente em vários de seus livros. Em Pessoas Extraordinárias: Resistência, rebelião e jazz, aprofunda temas como classe operária na transição do século XIX para o XX, como o Bandido Giuliano e o jazz em Nova Orleans no pós-1930 “como um dos poucos desdobramentos no âmbito das artes maiores, totalmente originado no cotidiano das pessoas pobres”.
Em História Social do Jazz, Eric Hobsbawm estabelece um diálogo criativo com as concepções gramscianas de cultura, resgatando o próprio Walter Benjamin, vislumbrando nos aparelhos privados de hegemonia cultural terreno fértil para a guerra de posição, principalmente no ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.
Quando discorre sobre o jazz, suas origens e trajetos, uma paixão sincera de sua vida, Hobsbawm incorpora os conceitos de sociedade civil, guerra de movimento e guerra de posição em Gramsci, lapidados com estilo e tradição iluminista:
“O jazz é o mais importante desses exemplos. Se eu tivesse de fazer um resumo da sua evolução em uma só sentença eu diria: é o que acontece quando a música popular não sucumbe, mas se mantém no ambiente da civilização urbana e industrial.”
A consolidação do Hobsbawm historiador é tributária da escola britânica de historiadores marxistas formada nos anos 1930. Um grupo de intelectuais que iniciou sua trajetória profissional a partir da literatura: Christopher Hill, E.P.Thompson, Victor Kiernan, Leslie Morton, Raymond Williams, além do próprio Eric.
Este grupo mantém, entre 1946 e 1956, um seminário marxista permanente, discutindo novas ideias, objetos e métodos. Em 1952, seus membros criam a publicação Passado e Presente, que marcou época disseminando a influência da erudição histórica britânica em todo o mundo, principalmente na década de 1960.
Em sua trajetória pessoal e profissional sempre esteve próximo a E.P.Thompson, com quem compartilhava ideias e posições políticas de forma nem sempre retilínea. Convergiam em torno da noção de que é no processo das pugnas políticas que as classes populares constroem sua identidade, sem assumir necessariamente uma postura de ruptura revolucionária, de classe para si.
Tanto para Hobsbawm quanto para Thompson, movimentos aparentemente despolitizados podem sedimentar fortes vínculos de identidade e solidariedade de classe, como diques prontos a reter, ao menos provisoriamente, o maremoto da modernização capitalista.
Bandidos
É sabido que Eric demonstrou vivo interesse na força e importância do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), chegando a rascunhar um trabalho sobre este tema, que infelizmente ficou incompleto. Com sua criatividade invulgar, abriria uma frente de oposição a Messias Bolsonaro, seja por este personagem apoiar e fortalecer milícias, ameaçar populações indígenas, negras e pobres seja pela insanidade psicopata do atual presidente brasileiro e de alguns de seus ministros que não é necessário mencionar.
No livro “Bandidos” lançado no Brasil em 2010, cujo texto original foi concluído nos anos 70, sua análise transborda a infração da lei alcançando o conceito de banditismo social.
Para ele, o bandido social se distancia do ladrão comum que vê os mais humildes como presas fáceis. Segundo Hobsbawm, o bandido social, regra geral, não seria capaz de expropriar a colheita dos camponeses, porém, não hesitaria em invadir e tomar propriedades rurais estatais ou privadas.
Pode-se afirmar que a experiência do MST e os crimes de Bolsonaro seriam abordados, com observações críticas ao estímulo da violência urbana / rural e a distribuição de armas para a população com claro objetivo de aparelhar milícias fascistas.
O conceito de classe social amplamente trabalhado e alargado por Thompson para além da posição dos indivíduos quanto à propriedade dos meios de produção, valorizando a vivência / experiência cotidiana, sempre teve em Hobsbawm um entusiasta permanente. Da mesma forma, Thompson comungava com o colega a sua visão de Estado ampliado (de clara inspiração gramsciana), bem como as conclusões sobre nacionalismo e o surgimento do Estado Nação moderno. É sabido que Hobsbawm situava as ideias nacionalistas como construções anteriores ao Estado Nação do dezenove.
A valorização da vivência / experiência no desenho do conceito de classe social, ilumina e amplia as possibilidades de observar o nascimento de estruturas do pensamento, derivadas de cultos, convivências e inculcações de ideias que abdiquem da ciência e empobreçam atividades contestatórias.
Em Mundos do Trabalho e Os Trabalhadores, Hobsbawm traçou panoramas instigantes sobre assuntos aparentemente distanciados e dispersos, mas com sólidos vínculos conceituais e interpretativos, manejando um quase imperceptível fio condutor, costurando questões metodológicas ao longo de capítulos sobre períodos e regiões sem vizinhança cronológica e geográfica.
Eric Hobsbawm considerava-se “um antiespecialista em um mundo de especialistas, um cosmopolita poliglota, um intelectual cujas convicções políticas e obra acadêmica foram dedicadas aos não intelectuais”, e ia além, definindo-se como um pássaro migratório, pois segundo ele a “história exige mobilidade e capacidade de avaliar e explorar um vasto território, isto é, a capacidade de ir além das próprias raízes”.
De fato, levou tudo isto ao pé da letra, vivendo como pensava, sobrevoando o ártico e os trópicos, desvencilhando-se daqueles que considerava os dois pecados capitais da história: o anacronismo e o provincianismo, “ambos resultado de simples ignorância de como são as coisas alhures, o que nem a leitura ilimitada, nem o poder da imaginação podem superar”.
Desde os anos 30 foi um viajante do mundo e pelos livros. Em 1936, percorreu várias cidades na boleia de um caminhão de um cinejornal do Partido Socialista, no momento de apogeu da Frente Popular em Paris. Pouco depois, cruza a fronteira espanhola dirigindo-se à Catalunha, no momento exato em que eclode a Guerra Civil. Durante a Segunda Guerra Mundial cavou trincheiras em uma divisão do exército britânico, exercendo simultaneamente o papel de tradutor no serviço de inteligência.
Vivendo como pensava
Em 1962, em Cuba, foi tradutor de Che Guevara e de vários colegas ingleses em debates e encontros.
Sua paixão pelo jazz o levou a escrever uma coluna mensal como crítico para o jornal New Statesman and Nation, assinando com o pseudônimo de Francis Newton, homenageando, assim, Frankie Newton, músico de jazz declaradamente comunista.
Torcedor do Arsenal, não perdeu um jogo da Copa do Mundo de 1970, revelando anos depois para Luciano Costa Neto, tradutor para o português de A Era do Capital, sua admiração por Gerson e Tostão. Retinha na memória toda a trama do gol brasileiro contra a Inglaterra feito por Jair.
Em Era dos Extremos, disse: “e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?”.
Ao longo de sua obra citou vários brasileiros: Luís Carlos Prestes, Oscar Niemeyer, Carlos Nelson Coutinho, Lula e Luiz Schwartz.
Gostava do chorinho como gênero musical, talvez por sua proximidade com o jazz em seus solos improvisados. Participou em Porto Alegre de uma sessão em praça pública, organizada por vereadores e pelo prefeito (administração do PT), debatendo abertamente com os cidadãos presentes.
O que Hobsbawm diria sobre a guerra cultural incentivada pelo aparelho de estado bolsonarista? E do apoio às igrejas evangélicas fundamentalistas e seus canais de televisão que anestesiam almas, consciências e visões de mundo?
Como responderia às afirmações de que o nazismo foi um regime de esquerda, frequentemente repetidas pela milícia bolsonarista, particularmente pelos Ministros da Educação e das Relações Exteriores?
A resposta, se encontra em um dos seus principais trabalhos (Era dos Extremos) quando analisa a segunda guerra mundial e o papel decisivo da União Soviética na vitória aliada. Afinal, como é sabido, 25 milhões de soviéticos foram mortos, um milhão dos quais na batalha decisiva de Stalingrado quando a máquina de guerra nazista foi derrotada em 1941.
Diz Hobsbawm:
“A democracia só se salvou por que … houve uma aliança … entre capitalismo liberal e comunismo; basicamente a vitória sobre a Alemanha de Hitler foi, como só poderia ter sido, uma vitória do Exército Vermelho … a vitória da União Soviética sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado pela Revolução de Outubro, como demonstra uma comparação do desempenho da economia russa e czarista na PGM com a economia soviética na Segunda Guerra … sem isso, o mundo hoje (com exceção dos EUA) provavelmente seriam um conjunto de variações sobre temas autoritários e fascistas, mais que de variações sobre temas parlamentares liberais. Uma das ironias desse estranho século é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro … cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo – o medo para reformar após a Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento econômico, oferecendo-lhe alguns dos procedimentos para sua reforma”. (Era dos Extremos)
Hobsbawm que cunhou o século XX como Breve Século (de 1914 a 1991) talvez viesse a nominar o século XXI como o século da pandemia e de novas formas de ditaduras pautadas pelo neoliberalismo em seus grilhões econômicos e sociais.
Ele certamente dedicaria algumas palavras, breves que fossem, aos economistas de Chicago e seus seguidores, comparando a política econômica de corte keynesiano levada a efeito por Roosevelt à do plano Marshall, pós Segunda Guerra, que veio conter o espraiamento da Revolução Bolchevique em boa parte da Europa, para felicidade e alívio das classes dominantes do velho continente.
Não perderia tempo mencionando nomes de rodapé como Paulo Guedes e outros ministros que assessoraram FHC e Palocci no primeiro governo Lula.
No seu livro Globalização, democracia e terrorismo defendeu a tese de que o mundo não estava retornando à Era dos impérios, mas vivendo um período de grande instabilidade, afirmava que é necessário “relembrar aquilo que os outros esquecem ou querem esquecer” defendendo que a intervenção armada estadunidense em outros países termina por inviabilizar a construção da hegemonia bem como a pax americana.
Hobsbawm neste seu trabalho afirma que a globalização acentuou a desigualdade social, mundializando os “exércitos de reserva de trabalhadores”, enfraquecendo a democracia liberal e sobrepondo a lógica do mercado à do cidadão. O consumidor toma lugar do cidadão.
O perigo maior segundo ele residia muito mais no clima de medo criado do que propriamente de ações solitárias ou conjuntas de grupos terroristas.
Afirmava neste livro:
“… É impossível prever a duração da atual superioridade americana. A única coisa da qual temos certeza absoluta é que se trata de um fenômeno historicamente temporário, como ocorreu com todos os impérios…
Existem razões internas pelas quais o império americano pode não ser duradouro, e a mais imediata delas é que a maioria dos americanos não está interessada no imperialismo e na dominação mundial no sentido de governar o mundo. O que interessa a eles é o que lhes acontece dentro dos Estados Unidos. A fragilidade da economia americana é tal que em algum momento tanto o governo quantos os eleitores americanos chegarão à conclusão de que é muito mais importante concentrar os esforços na economia do que continuar a fazer aventuras militares no exterior.
… Desde 1997-98 estamos vivendo uma crise da economia capitalista mundial ela não entrará em colapso, mas, apesar disso, não é provável que os Estados Unidos consigam prosseguir com seus ambiciosos projetos internacionais e lidar, ao mesmo tempo, com sérios problemas internos.“.
Eric Hobsbawm não viveu o suficiente para ver a pandemia atual. Mas já fazia os seus alertas expondo claramente sua linha de argumentação. Não temos dúvida que a nação norte americana tenha se transformado no grande epicentro do coronavírus pelas suas próprias fragilidades internas, pela arrogância desmedida de Trump e pela inexistência de um sistema público e gratuito de saúde. Um negacionismo imperial.
Já tinha concluído este artigo quando eclodiram as justas e importantes manifestações antirracistas nos Estados Unidos. Hobsbawm distante da conjuntura atual previu certo. O homem comum vê. O gênio antevê. O assassinato bárbaro por um policial supremacista de George Floyd foi apenas o estopim do que estava para acontecer há tempos.
Só Bolsonaro e seus seguidores não compreendem isto.
Ao contrário do que muitos afirmaram por ocasião de seu falecimento, Hobsbawm não ignorou o desmoronamento da União Soviética nem tampouco se omitiu em sua trincheira de historiador e homem de esquerda, que considerava Lenin o personagem político mais importante da história do século XX.
Analisando o papel do mentor da Revolução de Outubro, disse:
“O feito extraordinário de Lenin foi transformar esta incontrolável onda anárquica popular em poder bolchevique.” (Era dos Extremos)
Em O Novo Século, em uma longa entrevista a Antonio Polito, afirmou:
“Por outro lado, nunca mudei de opinião. E, como tantos outros comunistas, não concordava com as coisas terríveis que aconteceram sob aquele regime (referindo-se à experiência soviética). Porém, se você acredita que o comunismo é algo maior do que a história dos países atrasados nos quais os comunistas chegaram ao poder, então essa história não é motivo suficiente para abandonar a causa…
… Mas, por outro lado, se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída…”
A História que mais interessou a Hobsbawm sempre apontou para narrativas analíticas da evolução das sociedades na longa duração. Embora tenha nutrido simpatia pela École des Annales, ao contrário dos seus postulados, acreditava que a história muda, mesmo com as amarras do tempo longo.
O esquadrinhamento dos séculos XIX e XX em sua longa obra deixa um legado incomum no campo das Ciências Sociais.
Como mudar o mundo
No seu último livro publicado, Como mudar o mundo (2011), Hobsbawm salientou que Marx, mais do que nunca, é um pensador do século XXI e que, por ironia, foram os capitalistas que chegaram a esta conclusão. As crises econômicas da última década e a incapacidade do liberalismo político e econômico em apresentar alternativas indicam claramente isto.
O negacionismo frente a pandemia da COVID-19, o terraplanismo, o retorno a um passado quase medieval e de barbárie, talvez conseguisse retirar do sempre elegante Eric Hobsbawm a sua educação protocolar, diante do genocídio perpetrado por Trump, a erosão da sociedade estadunidense e de seu office boy Jair Messias.
Por fim, a maneira mais adequada de concluir esta pequena homenagem a Hobsbawm é reproduzir uma confissão sua, sincera e despojada. Um autorretrato revelador do homem e do intelectual humanista que foi.
“Mesmo assim foi bom ser historiador, mesmo em minha geração. Acima de tudo, foi agradável. Numa conversa sobre seu desenvolvimento intelectual, meu amigo, o falecido Pierre Bourdieu, certa vez disse: ‘vejo a vida intelectual como algo mais próximo da vida do artista do que da rotina da academia […] De todas as formas de trabalho intelectual, o ofício do sociólogo é sem dúvida aquele cuja prática me trouxe felicidade, em todos os sentidos da palavra’.
Substituindo o sociólogo por ‘historiador’, eu digo amém.”
Concluindo, em nenhum momento perderia a paciência com Trump e Bolsonaro, nem sairia da trilha serena que sempre percorreu.
Aqui, no entanto, resta uma dúvida: será mesmo que Eric Hobsbawm não perderia sua paciência e serenidade? Tenho dúvida.
Com a palavra os leitores.
Raul Milliet Filho é historiador, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens. Autor de “Vida que segue: João Saldanha e as copas de 1966 e 1970” e do artigo “Eric Hobsbawm e o futebol”, dentre outros. Dirigiu os documentários: “Quem não faz, leva: as máximas e expressões do futebol brasileiro” e “A mulher no esporte brasileiro”.