Por Viegas Fernandes da Costa.
Em “Brasil: uma biografia”, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling escrevem que no processo de construção da identidade nacional brasileira os índios foram tratados de forma paradoxal. Segundo as autoras, “o descuido político com os indígenas é paralelo à sua eleição como símbolo romântico na literatura e na poesia. Sabia-se pouco a respeito dos nativos, mas na literatura ferviam os romances épicos com chefes indígenas heroicos e amores silvestres”.
O trecho se refere ao século 19, quando o Brasil, com suas dimensões continentais e carente de estradas que garantissem a interligação dos seus diferentes territórios, buscava construir para si uma história, um rosto e um mito fundador. Foi então que os construtores desta identidade enxergaram no índio o elemento principal para compor a “alma” de um país que nunca antes se pensara nação. Não o índio real, habitante das matas, despido e pagão. Mas o índio idealizado nas tintas românticas dos artistas da Academia de Belas Artes e nas penas de autores como José de Alencar.
O “Guarani” dos versos e das óperas não era o mesmo que tombava crivado de chumbo e febres brancas. No mesmo tempo em que as damas da corte sonhavam com a bravura de Peri, e os nobres mancebos tinham nos lábios de mel de Iracema a razão das suas poluções noturnas, nas frentes de colonização os imigrantes pagavam aos bugreiros por par de orelhas indígenas cortadas à facão. O índio das lições de moral e civismo, pintado das cores viris de um ufanismo cego e criminoso, marchava sobre os corpos chacinados dos índios empurrados para a miséria, para a doença e para o suicídio. Foi assim nos tempos de invenção do Brasil, continua assim hoje. O índio é bonito quando distante da cidade e quando não interrompe estradas. Mas sob os semáforos e espalhado pelas calçadas, vira bandido ou mendigo perante nossos olhos. O que não pode é atrapalhar o progresso, esteja este no Morro dos Cavalos, em Palhoça, ou em Belo Monte, no Rio Xingu. E não importa que produza seu artesanato com qualidade e tradição, a maior parte dos seus clientes asseados e apressados, compra por pena, não por respeito.
A razão de conversarmos aqui sobre os índios e de eu ter me lembrando do trecho escrito por Schwarcz e Starling, foi ter tropeçado durante a semana em uma postagem no Facebook que criticava duramente os indígenas que haviam acampado às margens da Lagoa das Capivaras, em Garopaba. “Foram embora e sujaram tudo”, escreveu o autor da postagem. “Não são índios, são porcos”, respondeu alguém nos comentários. A razão da indignação, entretanto, não foi o lixo abandonado no terreno usado para o acampamento, mas o fato de terem sido os índios a sujá-lo. Os índios, estes invasores, segundo dá a entender a postagem. Os índios que nunca deveriam ter saído das páginas dos romances de José de Alencar ou daquela musiquinha cantada pela Xuxa. Afinal, pouco importa o lixo que espalhamos pelas praias e todo esgoto que jogamos nas lagoas e rios. É nosso lixo e nosso coco! O lixo e o coco dos índios é o lixo e o coco do outro, daquele que atrapalha o progresso, daquele que só serve quando encurralado em suas reservas, desesperado por ganhar um troco aparecendo em selfies com turistas.
Ao tropeçar naquela postagem de Facebook, tropecei também no século 19. O índio que as pessoas imaginam só existe na ficção daqueles que nunca saíram do conforto da corte. Um índio desprovido de humanidade. Um Peri reduzido às virtudes da sociedade branca. Um índio que deve amar o branco e pedir licença para entrar na cidade e agradecer a esmola que jogamos em seus cestos de taquara. E se nós o roubamos, mutilamos, estupramos e matamos, não importa. Importa que não suje nosso quintal.
Como é triste viver no século 19!
* Viegas Fernandes da Costa é historiador e professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC)
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Foto:Carlos Gomes.