Por Caê Vasconcelos.
Em novembro, recebi uma mensagem de uma amiga pedindo ajuda para um amigo trans que não sabia se precisava ou não fazer o alistamento militar. Na hora fiquei em choque: esqueci completamente disso. Eu lembrava que, em algum momento dos meus longos três anos de transição de gênero, eu havia lido algo sobre. Sabia que era obrigatório, mas como isso devia ser feito?
Na hora, entrei no site da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a maior ONG do país para e sobre pessoas trans, e encontrei um guia da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) sobre o assunto. Esse guia foi elaborado pela ABGLT em parceria com a ANTRA e RENOSP-LGBTI (Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI).
Alguns meses antes, em maio, eu escrevi um texto aqui na Ponte contando sobre a minha transição de gênero. No mesmo mês, bati um papo com a ex-editora da Ponte, Maria Teresa Cruz, sobre esse processo de transição. Quando fiz aquele texto, ainda não tinha dado entrada na retificação dos meus documentos nem começado o processo de hormonioterapia, que iniciei no mês seguinte, em junho.
Em 31 de agosto a minha certidão, com o meu nome escolhido, chegou. Com a retificação do meu nome, também houve alteração do meu gênero, que agora é masculino. É por isso que homens trans e pessoas transmasculinas que retificam o seu gênero devem se alistar para o Exército.
Ah, mulheres trans e travestis que ainda não retificaram seu gênero nos documentos também precisam se alistar. Àquelas que alteram seus documentos antes dos 18 anos estão dispensadas do alistamento obrigatório.
Como muitos de nós só se entendem mais tarde da idade obrigatória para se alistar, 18 anos, é possível que o processo seja feito até os 45 anos. Eu nasci em 1991, então em abril do ano que vem faço 30. Precisei pagar uma taxa (destinada para o Fundo do Serviço Militar do Ministério da Fazenda) de quase 5 reais por fazer o procedimento fora do prazo, que é de 30 dias após a retificação, mas deu certo.
O primeiro passo foi entrar no site do alistamento do Exército brasileiro. Lá, chequei qual Juntar Militar mais próxima da minha residência, no centro da cidade de São Paulo, para continuar o procedimento. No caso, era uma unidade na rua da Consolação, que divide espaço com a Secretaria Municipal de Segurança Urbana.
Se eu ainda morasse na Vila Nova Cachoeirinha, bairro na zona norte da cidade, onde morei até os 28 anos, eu seria destinado para as unidades da região: na praça Heróis da Força Expedicionária Brasileira, em Santana, ou na avenida João Marcelino Branco, número 95, na Vila dos Andrades, na Freguesia do Ó. Para checar o local mais próximo, é só digitar o seu município nessa página. Lá tem os endereços, telefones e e-mails para tirar dúvida.
Precisei levar apenas três documentos para fazer o alistamento: RG retificado, certidão de nascimento retificada e um comprovante de endereço. Como eu estava ansioso e inseguro do procedimento, liguei na segunda-feira (14/12) para a unidade da Consolação para confirmar como deveria fazer. A conversa foi mais ou menos assim:
— Boa tarde, vocês ainda estão fazendo o alistamento militar?
— Estamos. Me confirma seu bairro e o ano de nascimento?
— Consolação. 1991.
— E você nunca fez o alistamento?
— Não, porque sou um homem trans recém-retificado.
— Ah, certo. Só vir aqui de segunda a sexta das 8h às 15h com seus documentos.
Ufa, me identifiquei como homem trans e deu tudo certo. Na terça (15/12), por volta das 13h, saí de casa com os documentos necessários em uma mão e o coração na outra. “Como vão me receber? Vão me tratar no masculino ou vai ser mais uma daquelas interações que tenho meu gênero deslegitimado? Será que vou ser dispensado ou não?”. Todas essas perguntas e muitas outras ficavam indo e vindo na minha cabeça durante o caminho.
Chegando lá, errei a porta, óbvio, estava nervoso e não li direito. Um guarda municipal me atendeu. “É na outra porta, só sair por aqui e ir reto. Boa sorte”. Esperei mesmo ter sorte. Andei mais alguns metros por um caminho de pedras, uns vinte a trinta passos, e cheguei. Me apresentei, disse que precisava fazer o alistamento, mas que só estava fazendo agora porque tinha retificado meu gênero há pouco tempo.
— Sem problemas, me passa seus documentos que fazemos por aqui tranquilamente.
Fiquei em pé de tão nervoso que estava, até que o funcionário da junta militar disse para eu sentar. O local estava bem equipado pensando na pandemia do coronavírus que ainda estamos enfrentando. Vidro separando o funcionário do público e cadeiras distanciadas. Enquanto eu esperava, chegaram mais dois homens, ambos cisgêneros.
Enquanto esperava, fiquei olhando ao meu redor para conter o nervosismo. Haviam pôsteres de “entre para o exército” e “aliste-se” nas paredes. Também havia uma foto do poeta e jornalista Olavo Bilac, com a frase “patrono do serviço militar”.
— Me fala sua escolaridade, CEP, número e telefone?
Já faziam dez minutos que eu estava ali aguardando, quando o funcionário levantou para tirar uma cópia dos meus documentos. Voltou e sentou novamente na frente do computador. Aí finalizou o atendimento:
— Prontinho. Aqui tá o comprovante, que você já pode apresentar como certificado do alistamento. Aí você precisa ficar acompanhando pelo site oficial o passo a passo daqui para frente.
— Então não estou dispensado? Quando pego a carteirinha de reservista?
— Precisa aguardar. A data limite é 1 de março de 2021. Se até lá não aparecer nada, você volta aqui e te orientamos.
Saí de lá aflito. O que significava não ser dispensado de cara? Terei que servir ao Exército em caso de uma guerra? E agora? Com essas aflições, procurei Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Antra e oficial da Marinha. Bruna me tranquilizou:
— 1991??? Pensei que tu era dos anos 2000. Mas não se preocupe. Vai servir não. Eles dispensam. Mas tem que cumprir as etapas. Isso depende de cada junta militar. Umas dispensam na hora, outras cumprem um cronograma e depois dispensam. Não conheço nenhum caso de que algum homem trans teve que servir. Ainda mais com idade avançada em comparação com os 18 [anos]. Acaba mais sendo uma formalidade mesmo. ?Existem pessoas trans que querem servir, mas que tem enfrentado transfobias institucionais que impedem o acesso. E por isso não vimos ainda ninguém sendo admitido. As coisas estão mudando a partir da luta das travestis e mulheres trans militares que tem lutado nesse sentido.
ATUALIZAÇÃO: Reportagem atualizada às 22h do dia 18/1