Por Carolina de Assis.
Nestas eleições presidenciais, as pesquisas de intenção de voto apontaram uma tendência que não havia aparecido nem em 2010 nem em 2014, conforme reportou a Gênero e Número: as acentuadas diferenças de gênero, raça e classe na preferência do eleitorado por Fernando Haddad, candidato do PT, e Jair Bolsonaro, que se candidatou pelo PSL e foi eleito no domingo 28/10.
Por que mais homens, pessoas brancas e de classe média e alta aderiram a Bolsonaro e por que a maior parte das mulheres, pessoas negras e de classes mais baixas rejeitou esta candidatura? A Gênero e Número fez estas e outras perguntas a Sandro Bellassai, historiador italiano, professor de História Contemporânea na Universidade de Bolonha e especialista no estudo das masculinidades.
Bellassai observa que “o mito de um patriarcado compatível com a igualdade finalmente foi desvelado” pela nova força de mulheres e pessoas LGBT+ que questionam cotidianamente o suposto pertencimento exclusivo dos homens brancos heterossexuais nos espaços de poder. Para se manterem neste lugar a que estão aferrados há tanto tempo, eles precisam impor sua própria linguagem, inclusive: também por isso há tanta oposição de homens brancos no poder (como os que acabam de ser eleitos para comandar o país) ao debate sobre gênero, avalia o historiador.
Mas há frestas, salienta Bellassai. “Se há uma oportunidade que um governo misógino, racista e homofóbico pode oferecer para quem pretende combatê-lo é a de potencialmente favorecer alianças” entre grupos distintos e até divergentes, “quando o perigo concreto de perder a liberdade, ou a própria vida, se torna muito mais importante do que as divergências pessoais”, afirma.
Também é importante construir pontes com quem venha a se arrepender de ter apoiado o presidente eleito, acrescenta o historiador, lembrando que “várias pessoas que na Itália apoiaram o fascismo nos anos 1930 morreram anos depois lutando na Resistência: não eram idiotas que finalmente tinham visto a luz da Verdade, mas pessoas imersas em um contexto complexo, em que nem tudo estava imediatamente fácil de ver, e em que nem sempre as escolhas pareciam tão simples e lineares”.
Leia abaixo a entrevista:
Gênero e Número: O Brasil acaba de eleger como presidente um ex-militar que se fez politicamente com declarações depreciativas sobre mulheres e pessoas LGBT, negras e indígenas e com apologia à tortura e à ditadura militar. Pesquisas dão conta de que ele teve mais votos entre homens e pessoas brancas do que entre mulheres e pessoas negras – similar ao que aconteceu nos Estados Unidos em 2016 e que levou à vitória de Donald Trump. Qual é a relação entre o crescente sucesso eleitoral deste tipo de discurso ao redor do mundo e o ideal contemporâneo de masculinidade?
Sandro Bellassai: Uma vez que o gênero masculino detém o poder em todos os níveis em praticamente todas as sociedades, passadas e presentes, há uma relação direta e bilateral entre a defesa de uma identidade masculina tradicional e a proteção da ordem social e política mais ampla. Há mais de um século, os homens perceberam uma hipotética “crise” da masculinidade como uma ameaça ao próprio futuro da civilização, e muitas vezes representaram os processos de liberação como um perigo para a estabilidade da supremacia masculina.
Ao longo do século 20, os homens consideraram preferível modernizar o patriarcado em vez de despatriarcalizar a modernidade: infelizmente, parece que esta solução continua tendo algum sucesso até hoje.
Ao colocar-se no ápice da evolução humana, os homens (brancos, heterossexuais, burgueses, mais frequentemente) construíram retóricas misóginas e homofóbicas que identificam mulheres e homossexuais como agentes de desordem, degeneração e decadência: e, portanto, os têm explorado como bodes expiatórios de incertezas generalizadas em relação ao futuro. Em períodos de grandes mudanças, e especialmente de ampla crise social e econômica, o chamado a perfis de identidade delimitados e rígidos é eficaz ideologicamente porque oferece segurança e intercepta uma necessidade generalizada de ordem e estabilidade.
A masculinidade tradicional continua, assim, a legitimar-se como um dos principais guardiões de toda a ordem social, porque ainda é bem sucedida em apresentar seus próprios objetivos como objetivos de toda a coletividade.
Essa mistificação ideológica também deriva do desinteresse de muitos homens em relação às questões de gênero, consideradas com demasiada frequência como coisa de feministas fanáticas; a camuflagem do gênero masculino como sujeito neutro e universal pode, assim, ser reproduzida no silêncio da maior parte do panorama político masculino. Mas este é um equívoco que se torna historicamente perigosíssimo para a democracia como um todo. Na verdade, a pauta de gênero não está por nada inserida em um horizonte parcial, ou seja, não diz respeito a algumas minorias submetidas a injustiça e discriminação: em vez disso, tem tudo a ver com a dimensão da liberdade de cada ser humano, que é encaixotado hierarquicamente em categorias arbitrárias da identidade de gênero, definidas pelos principais acionistas deste sistema de dominação (os homens heterossexuais), e nenhum homem minimamente progressista pode conscientemente se considerar alheio a esta ordem fundamental de questões.
No Brasil, desde o dia do primeiro turno das eleições, foram registradas dezenas de ataques verbais e físicos de apoiadores do presidente eleito a mulheres e pessoas LGBT+. Qual é o papel dos estereótipos do “macho”, do desprezo pelas mulheres e do ódio a pessoas LGBT+ na retórica eleitoral e na prática política da extrema-direita contemporânea?
Já há bastante tempo, cada vez mais mulheres e pessoas LGBT+ deixaram de se conformar com as sérias limitações de liberdade que uma ordem patriarcal implica. A rebelião, dissidência e heterodoxia delas parece particularmente perigosa do ponto de vista da virilidade; ao reivindicar seus direitos, elas ganham cada vez mais visibilidade nas sociedades contemporâneas. Além disso, a própria existência delas nega uma rígida ortodoxia hierárquica baseada na masculinidade tradicional, e abre a porta para uma espécie de livre arbítrio de identidades, de pluralismo dos gêneros baseado em uma tendência de paridade. A legitimidade social do “diferente”, no entanto, teoricamente baseada no princípio progressista da igualdade, entra em contradição com o caráter absoluto da lei patriarcal e virilista, que vê cada “relativismo” como um inimigo mortal de seu próprio absolutismo e inquestionabilidade. Portanto, não é por acaso que são justamente os defensores de valores tradicionais e transcendentes – que são precisamente aqueles códigos culturais que inevitavelmente entram em conflito com princípios racionais, igualitários e laicos em forte afirmação desde o Iluminismo – que atacam com mais violência qualquer transgressão aos mandamentos sagrados da norma da virilidade.
Uma das pautas do presidente eleito no Brasil e de seus aliados é o combate ao que chamam de “ideologia de gênero” e à diversidade sexual, assim como a oposição frontal ao ativismo feminista, traço comum a movimentos de extrema-direita em vários países. Por que a extrema-direita se opõe ao debate sobre gênero e sexualidade?
Frequentemente os sujeitos em posição de dominação, como mencionei acima, apresentam sua própria linguagem específica como a linguagem natural e universal da humanidade. Esta estrutura simbólica do poder é uma forma de violência enorme contra esses sujeitos “outros” além do macho branco, heterossexual e burguês, porque pretende apagar ou reestruturar brutalmente a existência, o pensamento, a identidade destes “outros” como um recurso autônomo e soberano.
Na lógica patriarcal, esta operação de subjugação violenta da identidade não é apenas um momento da luta contra um adversário com interesses concorrentes: é, mais do que outra coisa, uma necessidade sem a qual não se pode garantir a reprodução da supremacia masculina tradicional, que se baseia precisamente no pressuposto de seu caráter absoluto e sua incontestabilidade.
Em suma, a ordem deve prevalecer sobre a liberdade: caso contrário, segundo a concepção tradicionalista, o risco não é apenas perder as eleições, mas abrir literalmente as portas para o Apocalipse. Parece importante levar a sério esta dramatização do discurso virilista, que não é apenas instrumental ou propagandística, mas corresponde a um estado de ânimos capaz de incitar temor generalizado em todos os estratos da sociedade, com base no princípio de um famoso homem europeu, um verdadeiro soberano absoluto: “après moi, le déluge!” [“Depois de mim, o dilúvio!”, frase utilizada por Luís XV, rei da França no século 18.]
No Brasil, as mulheres foram a origem do movimento #EleNão, que levou milhares de pessoas às ruas de várias cidades do Brasil e do mundo em protestos contra o então candidato, agora presidente eleito. Pesquisas também apontaram a maior resistência delas e de homossexuais a votar em Jair Bolsonaro. As mulheres e as pessoas LGBT+ são mais refratárias à extrema-direita do que os homens e as pessoas heterossexuais? Por que as primeiras resistem mais do que os últimos a estes discursos?
No passado, a cruzada histórica em defesa da ordem patriarcal teve a colaboração parcial de alguns sujeitos que pagavam o preço mais alto por essa ordem: mulheres, homossexuais, homens “desviantes” em geral. É uma dinâmica típica de cenários de dominação: mesmo em nível de exploração de classe ou subjugação colonial brutal, não é historicamente incomum que a classe dominante consiga convencer a grande maioria da população que seu interesse específico coincide perfeitamente com o interesse de todos. Uma situação semelhante se transformou gradualmente a partir da segunda metade do século 19, e um século mais tarde a contestação à lógica patriarcal, imperialista, homofóbica, misógina atingiu sua amplitude máxima. Esquematicamente, a própria modernidade capitalista (como Marx já bem observava) gera as contradições estruturais que obrigam as sociedades modernas a exceder continuamente seu equilíbrio de poder. Sem uma inversão real das antigas e novas desigualdades e injustiças, no entanto, uma ordem de poder hierárquico está destinada – na época histórica da (teórica) democracia – a freneticamente ter que esconder suas próprias incoerências e aberrações sistêmicas.
A reprodução da dominação virilista se baseou por um tempo também na capacidade de manter invisível a profunda contradição entre a nova era de igualdade política e pluralismo, por um lado, e a reprodução axiomática de um “destino” masculino do comando e da supremacia. Hoje estamos em uma fase em que, graças à nova força das mulheres e das pessoas LGBT, isso não é mais possível. O mito de um patriarcado compatível com a igualdade finalmente foi desvelado. Como na fábula de Andersen, bastou alguém dizer em voz alta que o rei está nu para que essa ficção de poder se tornasse inutilizável.
Como “desarmar” o discurso da extrema-direita de ódio a mulheres e pessoas LGBT+? E quais são as formas de resistência possível para mulheres e pessoas LGBT+ diante do fortalecimento da extrema-direita e de sua chegada ao governo?
O filme britânico “Orgulho e Esperança” (“Pride”), de 2014, conta a história (verdadeira, ao que parece) do encontro entre um grupo de gays e lésbicas de Londres com mineiros de uma vila galesa na luta contra Thatcher em 1984. Algumas famílias proletárias da vila acabam superando seus próprios preconceitos porque entendem que estes foram fundados na ignorância e, portanto, aceitam que possa ser forjada uma aliança estratégica contra seu inimigo político comum. Talvez essa história seja um pouco otimista demais, e certamente essa não pode ser considerada uma estratégia boa para todas as situações.
Mas se há uma oportunidade que um governo misógino, racista e homofóbico pode oferecer para quem pretende combatê-lo é a de potencialmente favorecer alianças (também táticas e não forçadamente estratégicas) superando preconceitos e sectarismo, quando o perigo concreto de perder a liberdade, ou a própria vida, se torna muito mais importante do que as divergências pessoais.
As divisões entre os opositores sempre foram uma arma decisiva para todo poder reacionário (como é evidente na história do fascismo e do nazismo).
Além disso, não menos importante é o trabalho crítico de desconstrução e denúncia não só da propaganda e das mentiras do poder, mas também das dinâmicas simbólicas e identitárias que sustentam este poder no imaginário de seus simpatizantes. Representações e linguagens odiosas não são apenas ferramentas repugnantes de manipulação, mas têm uma importante função na economia simbólica da dominação; conhecer e compreender esta função pode servir para adquirir consciência sobre a capacidade de consenso das forças reacionárias, mas também para ver mais amplamente suas inconsistências, fraquezas, contradições. Com base nisso, torna-se possível intensificar o trabalho educacional fundamental nas escolas, em todos os níveis, e abrir debates em todas as ocasiões de confronto público.
Por fim, não acho que seja necessariamente justo estender o desprezo por aqueles que manipulam a propaganda, a exploração e o medo a todas as pessoas das classes desfavorecidas que os apoiam: pessoalmente, penso que seria um grave erro político tratar qualquer um deles como pessoas estúpidas e ignorantes, ou necessariamente maus e desonestos. Os circuitos do consenso político nem sempre têm a ver com “inteligência” (seja lá o que isso for) e idiotice ou, pior, com vício e virtude.
Mais do que uma abordagem moral, penso que é útil ter uma compreensão profunda das necessidades complexas das pessoas e das estratégias psicológicas e ideológicas que as enganaram e seduziram. Várias pessoas que na Itália apoiaram o fascismo nos anos 1930 morreram anos depois lutando na Resistência: não eram idiotas que finalmente tinham visto a luz da Verdade, mas pessoas imersas em um contexto complexo, no qual nem tudo estava imediatamente fácil de ver, e no qual nem sempre as escolhas pareciam tão simples e lineares.
*Carolina de Assis é editora da Gênero e Número.
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