Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Hoje quero voltar a falar do grande, do imenso Fernando Pessoa e contar como cheguei a ele. Não me critique, leitor, por passar ao largo da crise que ameaça nos levar a uma Terceira Guerra Mundial. Já escrevi aqui, gravei vídeos, dei entrevistas sobre a guerra na Ucrânia. Fiz a minha pequena parte. E convenhamos que, tout compte fait, a arte e a beleza é que dão sentido à vida. A beleza natural e beleza elaborada pelo artista.
A maneira como conheci Pessoa, uma das minhas grandes paixões, foi um tanto estranha. Estranha, mas de alguma forma aparentada com ele mesmo – ele que, em verso célebre e já um pouco desgastado pelo excesso de citação, escreveu que “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”.
Antes de entrar na estória propriamente, faço um breve preâmbulo. Quando morava em Genebra, aos 16/17 anos, tive aulas particulares de português e literatura, em preparação para o vestibular brasileiro. Estamos em 1971/1972. A professora era a poeta Marly Oliveira, muito talentosa, que mereceria ser mais conhecida. Na época, esposa de um diplomata brasileiro, ela se casaria anos depois com João Cabral de Melo Neto. Não era linda, mas tinha traços bonitos e uma vasta cabeleira negra. E quando começava a falar, com voz aveludada e sedutora, produzia um impacto! Ela era amiga próxima de Clarice Lispector, por quem tinha veneração. “Clarice”, dizia, “não é como você ou eu, Paulinho. É um gênio!”. E gostava muito de falar de Fernando Pessoa – um trecho dele ficou na minha memória desde então: “Todo cais é uma saudade de pedra”, recitava ela com voz calculadamente grave e sonora. Mas a verdade é que, naquele tempo, a professora me impressionava muito mais do que os versos de Pessoa que ela recitava.
Passou. Num primeiro momento, Pessoa bateu e escorreu. Só vários anos depois é que o encontro com ele se deu. E, em circunstâncias, insólitas, que passo a relatar.
Tudo começou com uma namorada que tive dos 18 aos 22 anos. Não sei se devo dizer o nome dela, pois a estória talvez não a deixe tão bem. Acho que não devo. Ela morreu no final de 2020, de câncer, e uns seis meses antes da sua morte (ela nem sabia que estava ou ficaria doente), tivemos uma longa conversa por telefone, depois de décadas sem nos falarmos. Recapitulei com ela o episódio que vou contar, com cuidado, gentilmente, e ela, sabendo da minha propensão à narrativa, me fez prometer que se algum dia escrevesse a respeito, não daria o nome dela.
Vou rebatizá-la como Celina. Bem, confesso que ela sofria nas minhas mãos. Nelson Rodrigues dizia que aos 18 anos um homem não sabe nem como se diz bom-dia a uma mulher e que, por isso, todo homem deveria nascer com 30 anos feitos. (Ou mais, digo eu.) Em retrospecto, percebo que eu era pernóstico e pedante. Meus desafetos dirão que ainda sou. Mas posso garantir – aos 18 anos, era muito pior. Cheio de livros, leituras, filmes, citações, o efeito que eu produzia sobre ela era massacrante, intimidador. Celina era culta e lia muito. Inteligente, sabia se defender. Mas, insegura, não lidava bem com a avalanche cultural que eu desencadeava.
Estamos em Brasília por volta de 1973/1974. Um dia ela me disse, timidamente: “Sabe, eu escrevo”. Fiquei logo interessado, mas ela não queria mostrar de jeito nenhum. “Não está bom, preciso melhorar “etc., mas eu insistia e insistia, e não sosseguei enquanto ela não cedeu. Acabou me trazendo certo dia um texto dela sobre um marinheiro que naufragou e, perdido numa ilha, recriou a terra natal na imaginação. Texto curto, simplesmente maravilhoso. Fiquei impressionado, mas ela me fez prometer que não mostraria a ninguém porque “não estava pronto”, “não gostava tanto do texto” etc. Abriu uma exceção apenas para a namorada do meu irmão João, chamada Denise, uma gaúcha linda, de olhos verdes, inteligente e charmosa, que estudava literatura na UnB. Lembro-me tão bem do impacto que o texto causou sobre a Denise. A inveja brotou incontrolável no seu rosto. Refeita do susto, ela se pôs a fazer diversas correções e sugestões que Celina ouviu pacientemente. (Não estou gostando de usar um pseudônimo, mas paciência).
O tempo foi passando e eu pedia sempre que ela escrevesse mais textos ou me mostrasse outros que tivesse escrito. Com muita relutância, ela aparecia com mais alguns, mas nada chegava aos pés do texto sobre o marinheiro naufragado. E o assunto morreu.
Anos depois, remexendo gavetas, dei de cara com o texto dela sobre o marinheiro, esquecido lá no meio de papéis. Reli. Impressionante! Mas pensei, com convicção: “Ela não escreveu isso”. Aí dei uma tremenda prensa nela, tão forte que ela, embora com medo, acabou confessando que não era dela, e sim de Fernando Pessoa! Imaturo e inseguro, fiquei revoltado. Se ela me mentia assim, como confiar em qualquer coisa que me dissesse? Sofri. Não percebia que, pelos motivos antes mencionados, eu era corresponsável pelo elaborado fingimento. Elaborado porque ela fora desencavar de dentro de uma peça de teatro não muito conhecida de Pessoa o trecho fulgurante sobre o marinheiro.
Tudo passa. A mágoa passou. E depois de algum tempo nos divertíamos lembrando das várias correções da Denise a Fernando Pessoa!
Fui atrás da obra dele. E passei de um encantamento a outro – Mensagem, os heterónimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, O Livro do Desassossego e tantas outras obras, de poesia e prosa. Aprendi de cor, e ainda sei, vários dos seus poemas.
Alguns exemplos, entre centenas. Sobre Dom Sebastião: “Sem a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?”. E aquele poema “Aniversário”, de Álvaro de Campos, que começa: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ Eu era feliz e ninguém estava morto”, para fazer todo um percurso maravilhoso e terminar assim: “Hoje já não faço anos./Duro./Somam-se me dias./Serei velho quando o for./Mais nada./Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…/O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!”.
Ou ainda aquele pequeno poema cintilante sobre o amor, que vai aqui na íntegra:
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
Repare, leitor, na simplicidade genial. O poema começa com uma afirmação geral, uma espécie de tese: “O amor quando se revela…”. Mas de repente afunila rapidamente e desce como uma águia para ela, palavra que remete a uma mulher particular, que cada um de nós irá associar a uma certa mulher, única, inconfundível.
Quem sou eu para dizer isso, mas arrisco mesmo assim: Fernando Pessoa é um dos grandes gênios da literatura mundial de todos os tempos. Só não é mais conhecido porque escreveu em português, nossa belíssima língua, que não tem, entretanto, o impacto internacional do francês, do espanhol, do alemão e, sobretudo, do inglês.
Vale a pena saber português, repito pela enésima vez, só para ler Pessoa no original.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 18 de março de 2022.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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