Por Micha Kurz.*
Sendo israelense, nascido e criado em Jerusalém, quando visito comunidades judaicas diaspóricas – de Nova York a Melbourne, passando pelo Rio de Janeiro – ouço discussões sobre a realidade atual em Israel e sobre a “questão da Palestina” que soam totalmente desatualizadas.
Há uma desconexão entre as noções ideológicas da narrativa sionista diaspórica e as circunstâncias e fatores da realpolitik atual em Jerusalém.
Suponho que vocês, leitores, estejam familiarizados com a narrativa histórica clássica: as raízes bíblicas que ligam o povo judeu à terra de Eretz Yisrael, a necessidade de um refúgio seguro para os judeus como consequência do holocausto e da segunda guerra mundial e, finalmente, o retorno para casa depois de 2000 anos de exílio e perseguição. Vocês estão familiarizados com a nossa história de esperança e de promessa ao povo judeu, o qual tem enfrentado adversidades desde seu despertar há setenta anos: O milagroso triunfo contra sete exércitos árabes inimigos, que nos fez ganhar a independência em 1948 e, em seguida, a vitoriosa guerra de 1967, a qual triplicou o tamanho do país em seis dias. Estrangeiros sempre se lembram das oportunidades para voluntários num kibbutz dos anos 70, pegando carona na romântica paisagem do Oriente Médio para comer um bom homus em Nablus, ou tomar um bom café em Jerusalém.
Eu me lembro das esperanças do Acampamento da Paz por uma Solução de Dois Estados e da troca de terra por paz durante os Acordos de Oslo no início dos anos 90. Crescendo em Jerusalém na época, não há como me esquecer das bombas nos ônibus e cafés, e dos amigos e familiares que perdemos. Eu me lembro da generosa oferta de Israel em Camp David e do desapontamento posterior quando verificamos que “não havia um parceiro para a paz”. Eu com certeza me lembro do Segundo Levante Palestino e dos muros de concreto que foram erguidos em volta da cidade, separando as economias e as comunidades, para sempre, aparentemente. Parecia haver uma constante ameaça de violência, fossem nos ataques no sul do Líbano, na guerra química do Iraque, nos foguetes vindos de Gaza ou na ameaça de guerra nuclear por parte do Irã. As notícias no rádio eram sempre retumbantes, anunciando algo horrível acontecendo. E agora, em 2016, de acordo com o Primeiro Ministro Netanyahu, a segunda maior ameaça à existência de Israel é o movimento BDS (a primeira ainda é o Irã com sua energia nuclear).
Como fui criado para ser um patriota israelense, Conselheiro da Juventude dos Escoteiros Israelenses e, depois, um soldado veterano de combate, eu repeti essas narrativas pela maior parte da minha vida. No mundo todo e durante décadas, essa narrativa foi compartilhada em salas de aulas, sinagogas e Centros da Comunidade Judaica, igrejas, parlamentos e empresas como se representasse fatos históricos. As histórias estão entrelaçadas numa verdade impenetrável que, tristemente, muitos de nós, no mundo inteiro, ainda se recusam a questionar.
Eu comecei a questionar essa narrativa durante a segunda Intifada, em 2001. Como soldado, me deram ordens de não apenas proteger uma comunidade de colonos judeus em Hebron como também de permitir e apoiar a expansão do assentamento em cima do antigo mercado palestino e em detrimento dos moradores da cidade. Após dezoito anos sendo criado em Jerusalém, esses foram os primeiros colonos e os primeiros palestinos que eu vi. A máscara começou a cair, a narrativa não fazia sentido. Onde estava a fronteira que eu deveria guardar? Esses colonos eram as mesmas pessoas que festejaram quando Rabin foi assassinado, por que são eles que dão as cartas? Até mesmo os soldados de combate israelenses veteranos que questionam o controle militarizado dos civis palestinos são atacados e chamados de traidores pelos políticos e pela mídia israelense.
De qualquer forma, questionar a narrativa israelense resulta em ser rapidamente rotulado de terrorista, se você for palestino, ou acusado de odiar a si próprio e de traição, se você for israelense como eu, ou de antissemita, se vier de qualquer outra pessoa.
Todas as críticas são silenciadas. Até Rubi Rivlin, presidente israelense do partido linha-dura Likud, é acusado de ser um desertor esquerdista nos altos escalões. Se isso tudo não é questionável, então por que a histeria? Como foi que a política nacional chegou a essas narrativas absolutas, e do que temos tanto medo? Claro, as ruas de Jerusalém podem fazer com que você se sinta inseguro, mas estamos longe dos níveis de violência da Segunda Intifada. Por que o governo de Netanyahu está reescrevendo os livros escolares e o protocolo do Supremo Tribunal? E por que o Ministro do Exterior israelense está gastando milhões em um sistema internacional de mensagens eletrônicas para combater um movimento de base que pede ação econômica sem violência? E do que realmente se trata essa última ameaça, o movimento BDS?
Em 9 de julho de 2005, 171 organizações não-governamentais palestinas iniciaram uma campanha pedindo boicote, desinvestimento e sanções internacionais para pressionar Israel a apoiar as leis internacionais e os direitos humanos. A campanha do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) pede urgentemente por diversas formas de “medidas punitivas não violentas” contra Israel, até que “Israel cumpra os preceitos das leis internacionais”:
“Fim da ocupação e da colonização de todas as terras árabes e derrubada do Muro; Reconhecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos árabe-palestinos de Israel até a igualdade total; e Respeito, proteção e promoção dos direitos dos refugiados palestinos para que retornem aos seus lares e propriedades como estipula a Resolução 194 da ONU.”
A campanha é organizada e coordenada pelo Comitê Nacional do Movimento BDS Palestino. O comitê cita um conjunto de resoluções da ONU e ecoa especificamente as campanhas contra o governo da minoria branca da África do Sul na era do apartheid. Eu duvido que a maioria das pessoas que fazem objeções ao movimento BDS realmente tenham lido a estratégia ou o apelo. (Se você ainda não tiver lido, reserve um tempinho para ler).
Então, por que esse grupo de ativistas que pratica a não-violência é uma ameaça tão grande? Talvez porque questione os fundamentos da narrativa sionista, a vitimização do povo judeu aliada à ideia de que a Palestina e os palestinos não existem, ou ainda, que os palestinos são terroristas violentos.
A história deve ficar dentro da narrativa da heróica luta israelense pela sobrevivência; assim, é preciso que haja um inimigo violento, um terrorista, do contrário, a história não se sustenta.
Portanto, a única coisa que mete mais medo do que palestinos violentos são, de fato, palestinos não-violentos. O movimento BDS tira a máscara da narrativa israelense. Com isso, esse movimento mundial expõe uma histórica experiência palestina que tem sido negada ou deslegitimada por Israel durante décadas: Mais de seiscentas aldeias destruídas ou despovoadas durante a Nakba (ou catástrofe) palestina, os massacres perpetrados pelas milícias israelenses em 1948. Controle militar de Israel sobre aldeias e cidades árabes até 1966. Sistemas bancários israelenses impostos às cidades e aldeias ocupadas nos anos 70 e 80. A primeira Intifada Palestina, um movimento de protesto desarmado e bem organizado que finalmente colocou a Palestina no mapa do mundo no final dos anos 80, foi rapidamente rotulado de “terrorismo” quando o Ministro da Defesa Rabin ordenou que os militares israelenses “quebrassem os ossos dos palestinos” e dezenas de milhares acabaram em hospitais e prisões israelenses. Mais tarde, no governo do Partido Trabalhista do Primeiro Ministro Rabin, Israel dobrou o número de colonos, que passou de 200.000 para 400.000 durante as conversações de paz. O resultado dos Acordos de Oslo foi a escravização da força de trabalho palestina. A “Solução com Dois Estados” baseou-se, na verdade, em uma ‘economia de Estado único israelense ’.
A equipe de mídia do Primeiro Ministro Barak acabou por mostrar como a “generosa oferta” de Camp David em 1999 não incluía direito a água, a fronteiras internacionais, a continuidade territorial, a uma economia independente e, nem mesmo, a uma capital para o Estado palestino negociado. Mas todos os israelenses ouviram o seguinte mantra entoado pelos políticos e pela mídia israelenses: “Não há um parceiro para a paz”, repetido indefinidamente. A maioria dos israelenses nunca saberá que os residentes palestinos de Jerusalém têm status legal diferente e não têm Direito Universal de voto em eleições nacionais. Não é o BDS que causa o desemprego; o Muro da Separação foi construído em volta dos maiores distritos comerciais, fazendo com que milhares de negócios fossem fechados e levando a um enorme desemprego, debilitando permanentemente a economia palestina.
O atual status quo permitiu que os negócios israelenses crescessem e que nós, israelenses, seguíssemos com nossas vidas sem nos lembrarmos da opressão sobre os palestinos. Em 2004, os líderes políticos palestinos tomaram a decisão estratégica de interromper a resistência violenta e os atentados suicidas. Se o apelo global não violento do BDS não tivesse sido lançado um ano depois, haveria hoje alguém se preocupando com a ocupação da Palestina por Israel, a causa da liberdade palestina teria feito algum progresso desde então?
Com um conjunto claro de demandas definido para garantir igualdade em Israel/Palestina, o movimento global BDS está ancorado em padrões progressistas de justiça e o mundo está ouvindo. A economia dos assentamentos israelenses é mal vista e tem sido discriminada por instituições europeias, que agora exigem que mercadorias provenientes de assentamentos e que são vendidas como “fabricadas em Israel” sejam identificadas por sua verdadeira origem. Importantes Igrejas cristãs, como a Presbiteriana, decidiram desinvestir em empresas que tiram lucros das ocupações. Empresas como a francesa Orange, provedora de cobertura de celular, se retiraram. A maior empresa de segurança privada do mundo, a G4S, anunciou recentemente sua intenção de abandonar seus contratos em Israel. Até a SodaStream e a Ahava cosméticos declararam recentemente que serão realocadas para o outro lado da Linha Verde. Esse não é mais um protesto simbólico.
Às vezes, críticos do BDS perguntam por que há um foco desproporcional em Israel em relação a outros países com casos de violação de direitos humanos. A) Isso não é verdade. Colocamos o foco sobre muitas outras campanhas por justiça, vocês talvez não estejam prestando atenção. B) Colocamos o foco sobre Israel porque Israel recebe mais ajuda financeira que a África. Finalmente, C) Israel alega ser uma sociedade progressista e democrática, então, nós, apoiadores de Israel, não devemos esperar e exigir que o país atue de acordo com os padrões que definiu para si próprio?
O que o BDS está pedindo não deixa israelenses e judeus da diáspora menos seguros, de forma alguma. Mas o movimento de base que luta por justiça pede para reconhecermos a natureza racista de nossa democracia israelense. Como já mencionamos, o BDS nos convida a discutir a natureza desigual da realidade econômica do Estado único. Para muitas pessoas no mundo todo, esta é uma verdade desagradável demais para ser aceita. Na verdade, Israel não é a democracia judaica que nós pensávamos que fosse. Sejamos honestos, amigos,Israel é uma democracia para os judeus e para ninguém mais. Os palestinos apenas “aconteceram de estar lá”.
Qualquer um que acompanhe a política israelense sabe que a sociedade israelense não está aceitando bem essa novidade e que tem trilhado um caminho sinistro e escuro. Grupos racistas que praticam linchamentos dominam as ruas do centro de Jerusalém sem medo de enfrentarem um tribunal. Mais do que nunca, políticas governamentais e militares estão sendo criadas para pressionar violentamente as comunidades palestinas a abandonarem o país. Muitos palestinos, por sua vez, cedem à pressão e reagem com ações de violência aleatória, apunhalando civis israelenses.
Não consigo me lembrar de uma época em que a tensão estivesse tão alta como no momento em que escrevo este artigo.
Mas os altos níveis de retórica, violência e racismo em Jerusalém não são causados por esses palestinos ou pelo movimento BDS. Essa triste realidade política tem como líderes os políticos israelenses, os quais se aproveitam do silêncio e da anuência de judeus e cristãos do mundo todo. O apoio cego à narrativa de Israel causou uma psicose nacional da qual nenhum líder israelense atual consegue nos tirar. É por isso que eu coloco minhas esperanças no apelo da sociedade civil palestina pelo BDS.
Movimentos sociais e políticos brasileiros têm agora a oportunidade de se envolver neste movimento por justiça que só tem crescido. Organizações brasileiras estão investigando importantes conexões entre militares brasileiros e israelenses. E há uma campanha em andamento pedindo que as Olimpíadas, sediadas pelo Brasil, recusem fechar contrato com uma empresa israelense de segurança. Há alguns meses, aceitei com bastante interesse o convite para uma reunião com o excelente parlamentar Jean Wyllys, mas saí da reunião decepcionado, pois ele se recusou a ouvir os líderes palestinos que estavam implorando por seu apoio ao BDS. Ele insistiu que o diálogo e os projetos de coexistência eram o caminho a seguir. Embora esses projetos tenham a capacidade de construir pontes, a não inclusão de uma narrativa anti-opressão e a falta de reconhecimento de que há uma violência estrutural, pode fazer com que esses projetos sirvam para ”normalizar” as relações e, assim, prejudicar os esforços em busca de uma paz duradoura com justiça. Após a participação do parlamentar Wyllys em uma conferência na Hebrew University of Jerusalem (a qual tem ligações profundas com abusos de direitos humanos contra palestinos), mais de duas centenas de acadêmicos brasileiros assinaram uma carta de apoio ao BDS, inclusive com boicote acadêmico e cultural.
Como israelense, eu agora trabalho em solidariedade com meus vizinhos palestinos, pois fui criado em Jerusalém, uma cidade que compartilhamos, e minha família me ensinou que “nunca mais”. Também trabalho com uma crescente rede de judeus pelo mundo, na diáspora, que, atentos às injustiças do meu país, estão aderindo ao BDS e organizando suas comunidades. Usando os fundamentos da ética judaica, esses grupos estão pedindo que instituições judaicas convencionais se posicionem sobre essa mesma ética e se manifestem contra a violência corrente e a ocupação.
Mas, acima de tudo, eu apoio o movimento BDS porque este é apenas o começo. O BDS proporciona o fundamento justo para a construção da sociedade verdadeiramente democrática em que eu gostaria de viver e conviver durante décadas, a partir de agora. O BDS oferece uma lista de táticas. A estratégia mais abrangente é apoiar uma sociedade palestina vibrante, que exista lado a lado com a israelense, de modo que ninguém tenha que abandonar o país. O BDS demanda que separação, desigualdade, racismo e nacionalismo cego se tornem coisas do passado.
Do contrário, me diga, qual é a sua alternativa?
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* Micha Kurz nasceu e cresceu em Jerusalém, sendo um dos fundadores do movimento Breaking the Silence, através do qual denuncia a ocupação. Também é fundador do Grassroots AlQuds, plataforma palestina de apoio e mobilização de comunidades.
Micha fornece análises sobre questões atuais em Jerusalém para visitantes diplomatas, políticos e representantes de movimentos sociais.
Fonte: Revista Diáspora.