Como as privatizações estão aumentando a inflação. Por Ladislau Dowbor.

Nos últimos anos, as estatais brasileiras sofreram uma série de privatizações, muitas vezes parcialmente, como é o caso da Petrobras. Agora a conta chegou: inflação generalizada dos custos, impulsionado pelo aumento irracional da energia, gás e gasolina, e o lucro bilionário de poucos acionistas - que são majoritariamente estrangeiros.

Não se trata aqui de mercado, se trata de monopólio, e privatizar um monopólio equivale a entregar a grupos privados a possibilidade de cobrar o que querem. Foto: Roberto Parizotti

Por Ladislau Dowbor.

Quando você paga um preço mais alto ao encher o tanque ou ao comprar gás, vale a pena pensar para onde vai o dinheiro a mais que você está pagando, com a chamada inflação.

No primeiro trimestre de 2022, a Petrobras apresentou um lucro de R$ 44 bilhões, equivalentes a uma vez e meia o que era o Bolsa Família, que melhorava a vida de 50 milhões de pessoas, durante um ano, quando aqui estamos falando em um trimestre apenas. A fatia maior desses lucros, 40,55%, vai para “investidores” estrangeiros. Outros 22,7% para “investidores” brasileiros, totalizando 63% para grupos privados. Colocamos investidores entre aspas, pois se trata de aplicações financeiras, não de investimento produtivo: compra e venda de ações, títulos que rendem, mas que não aumentam o capital instalado. Operações apenas com teclas do computador.

O The Economist distingue adequadamente “productive investment” e “speculative investment”. Em francês fica bem clara a diferença entre “investissement” e “placement financier”. Isso é importante, porque não estamos falando de pessoas ou grupos financeiros que lucram sobre o aumento do capital produtivo do país, que entendem de petróleo, ou que produzem algo. Aqui são lucros financeiros, pagos com dinheiro do nosso bolso.

“Por que razão estamos transferindo para grupos privados um bem que é de todos nós? Porque a Petrobras foi em grande parte privatizada.”

Uma fatia menor dos lucros da Petrobras, 36,75%, retorna para o Estado, ou seja, para o setor público, podendo ser transformada em estradas, escolas, mais financiamento para o Sistema Único de Saúde (SUS), bens e serviços públicos. Legitimamente, porque foi o setor público que desenvolveu a capacidade extrativa do petróleo, as infraestruturas, as tecnologias. E legítimo em particular porque o petróleo não é “produzido”, é extraído: se trata de uma riqueza existente no subsolo da nação, e que pertence à nação. Por que razão estamos transferindo para grupos privados um bem que é de todos nós? Porque a Petrobras foi em grande parte privatizada. E a maior fatia dos lucros da Petrobras vai para grupos financeiros estrangeiros porque privatização, na era moderna do mercado de ações, significa desnacionalização. Alguém imagina a China entregar para grupos corporativos multinacionais o controle dos bens do seu subsolo, e de um produto tão estratégico como a energia?

Privatizando e exportando o lucro

Ofato é que um bem herdado da natureza, e que é estratégico, no caso o petróleo, está em grande parte apropriado por grupos privados nacionais e internacionais. O sistema não funcionaria sem o apoio de grupos financeiros nacionais, daí que tenhamos esta composição de participação nos lucros de 40,55% para estrangeiros e 22,7% para grupos nacionais. Lucrar sobre a riqueza de outros países exige apoios internos, pois se trata de opções políticas, não de mecanismos de mercado. O governo optou por entregar os lucros sobre um bem público, para grupos privados que não produziram nada. Compraram ações da empresa, drenagem que lhes permitem tirar, no caso, 63% do lucro.

Havia alguma razão técnica para a privatização? Nenhuma, pois a empresa tem as tecnologias, as capacidades financeiras para os investimentos, e inclusive gerava lucros. O que interessou os grupos que se apropriaram em grande parte da Petrobras, é precisamente de se apropriar dos lucros. No caso, por meio da apropriação de um bem público, um produto da natureza, o petróleo. Apropriação privada de bens públicos se disfarça de diversas maneiras, com o argumento da eficiência, de redução da corrupção, de parcerias público-privadas, de rendimento legítimo de capital. Mas no caso de um monopólio, e de um bem da natureza, propriedade da nação, trata-se evidentemente de uma apropriação indébita.

Não é o caso de deslegitimar qualquer aplicação financeira. Tudo depende das condições e das proporções. No caso do crédito, por exemplo, se um banco ajuda um empresário a financiar um investimento, com uma taxa de juros compatível com o empreendimento, permitindo a expansão de capacidades produtivas, trata-se de uma atividade útil e até necessária. Neste caso o banco está fomentando a economia, obtendo lucros na mesma proporção em que gera mais produção. Mas o mesmo crédito com taxas de juros extorsivas constitui usura, e o banco se torna um agiota. Não à toa o artigo 192 da Constituição de 1988 estipulava que as taxas de juros reais “não poderão ser superiores a 12% ao ano: a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”.

“Corporações financeiras internacionais, aliadas com oportunistas nacionais, geraram um processo que em outros tempos foi enfrentado em nome do combate ao ‘entreguismo’.”

Como sabemos a lei não determinou nada, e os bancos conseguiram simplesmente tirar este artigo da Constituição, o que permite outro crime contra a nação, que é a agiotagem generalizada praticada no país. Lucros espantosos como vemos com a Petrobras, sobre bens públicos, beneficiando aplicadores financeiros que nada produzem, e que desde 1995 não pagam impostos (isenção de lucros e dividendos distribuídos), e ainda por cima se arvorando na narrativa de combatentes contra a corrupção, dão uma medida da deformação política profunda no país. Corporações financeiras internacionais, aliadas com oportunistas nacionais, geraram um processo que em outros tempos foi enfrentado em nome do combate ao “entreguismo”, qualificação bem mais correta do que chamar o que está sendo feito de “investimento”.

Com a privatização e consequente desnacionalização, o que interessa é maximizar os lucros. E que melhor forma, ou mais fácil, do que aumentar os preços? No mercado normal de bens e serviços, se uma empresa aumenta os preços de um produto ou de um serviço, poderão aparecer concorrentes e tomar uma parte do mercado, com preços mais acessíveis. No caso do petróleo, não é o caso. Não se trata aqui de mercado, se trata de monopólio. E privatizar um monopólio equivale a entregar a grupos privados a possibilidade de cobrar o que querem. As pessoas não podem deixar de comprar o botijão de gás ou de encher o tanque do carro. O que vale também para a empresa de ônibus ou o caminhão de entrega. Todos vão pagar, na medida das possibilidades. E a maneira mais simples de aumentar os lucros é aumentar os preços.

Essa compreensão é importante, porque nos jornais, o que aparece, é que os preços “subiram”, como se fosse possível os preços subirem sem que alguém os suba. No caso, com a privatização do acesso ao petróleo e seus derivados, e não havendo concorrência, os acionistas simplesmente aumentam os preços, sabendo que o consumidor não tem alternativa. O dinheiro pago a mais no posto ou para o entregador de gás vai diretamente para os donos de ações, a Faria Lima no Brasil, e grupos internacionais como BlackRock e outros. A narrativa utilizada pela mídia comercial – que vive de publicidade dos grupos financeiros, entre outros – é que temos de acompanhar os preços internacionais.

Isso é uma farsa. O Brasil domina o ciclo energético completo de combustíveis, tem o petróleo, as plataformas de extração, o sistema de refino, a rede de distribuição, inclusive a petroquímica, e sendo dono do próprio petróleo, sem precisar importar, portanto, é ridículo o argumento de ter de acompanhar preços internacionais. Países que não têm petróleo, e que são obrigados a comprá-lo dos grupos internacionais, podem sim ser forçados a repercutir os preços de aquisição mais altos no mercado interno. No nosso caso, deve-se aplicar preços que mantenham a capacidade de reinvestimento da Petrobras, e que assegurem a expansão da capacidade tecnológica, mas a partir desse nível deve-se assegurar preços estáveis e próximos dos custos, o que irá gerar vantagens comparadas para os produtos brasileiros, tornando mais viáveis inúmeras atividades econômicas no país. Trata-se de opções políticas, não de mecanismos econômicos.

Quando se fecha ou subutiliza refinarias brasileiras, resultado também de privatizações, passando o Brasil a exportar petróleo bruto para importar derivados, a preços internacionais, isso é realmente um crime contra a economia nacional. Falar em “mecanismos de mercado” é de um cinismo impressionante.

Como a elite ganha com a inflação

Em termos de inflação, no caso da energia, não se trata, portanto, de preços que “subiram”, mas de um imposto privado sobre toda a população e todo o processo produtivo, na medida em que a cadeia da energia toca a todos. Os que elevaram os preços têm nome e endereço, ainda que tentem empurrar a culpa para “os mercados”. Não há nenhuma razão econômica para o Brasil utilizar internamente os preços internacionais. E diga-se também que os preços internacionais não “sobem” magicamente, é um grupo muito limitado de traders, pouco mais de uma dezena, que escolhe os preços internacionais que serão praticados.

É importante que se entenda a cadeia de preços. Uma vez que na origem os novos donos do petróleo elevam os preços, o dono do caminhão não tem como não elevar os seus, e isso vai repercutir no preço dos alimentos transportados e assim por diante. De uma forma ou outra, todos pagamos, e para o grosso dos agentes econômicos, sejam empresas ou famílias ou ainda “empreendedores individuais”, a subida de preços aparece como uma dinâmica sem paternidade que atinge a todos. Mas há uma grande diferença entre empresários que ao verem os seus custos subirem elevam os seus preços, passando os custos adiante, e a massa da população que enfrenta um preço mais alto no supermercado, mas não tem como repassar para ninguém. Neste sentido, como já mostrava há décadas Celso Furtado, a inflação termina sendo um fator de concentração de renda e de empobrecimento da população em geral. Para a elite do país, a inflação é interessante.

Os governos liberais que estão entregando a Petrobras, pretendem entregar a Eletrobrás, e já entregaram nos anos 90 a Vale no setor de mineração, encontra outra oportunidade de transferir recursos para os mesmos grupos financeiros: elevando a taxa Selic. Em nome de combater a inflação, eleva-se a remuneração sobre títulos públicos, atualmente fixada em 12,75%. Isso é outra farsa. Quando se tem uma economia superaquecida, em que as pessoas e as empresas têm muito dinheiro, gera-se uma inflação de demanda: há mais dinheiro do que produtos. Neste caso, elevar a remuneração dos títulos públicos leva pessoas e empresas a aplicar dinheiro em vez de comprar produtos, esfriando a economia. Mas isso é para inflação de demanda, quando o Brasil enfrenta uma dinâmica inversa, que é uma inflação de custos, aliás, artificialmente gerada com as privatizações.

“O impacto conjugado da fragilização do apoio à agricultura familiar e do dólar alto levou o Brasil, terceiro produtor mundial de alimentos, a enfrentar em 2021 a tragédia de 19 milhões de pessoas passando fome e 116 milhões em situação de insegurança alimentar.”

Em termos econômicos, elevar a taxa Selic a pretexto de combate à inflação é uma aberração, mas em termos de interesses dos grandes grupos financeiros, que são os principais aplicadores em títulos da dívida pública, o lucro é imediato. Assim uma parte dos nossos impostos, em vez de servir para financiar infraestruturas e políticas sociais, se transforma em lucros financeiros da esfera especulativa da economia. Os bancos, nacionais ou estrangeiros, agradecem: passam a ganhar mais dinheiro sem precisar produzir, apenas digitando algumas teclas no computador. Esse desvio de mais dinheiro para grupos financeiros, em vez de canalizá-lo para investimentos produtivos, trava ainda mais a nossa economia.

Lembremos que o último ano em que a economia cresceu foi 2013, quando crescemos 3%. De lá para cá, estamos no nono ano de economia parada. O “crescimento” de 2021 foi apenas uma reação ao afundamento da nossa economia em 2020, e continuamos estagnados. Mas os bancos continuaram ganhando. Segundo a Carta Capital, “a soma dos lucros dos bancos Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Santander atingiu um recorde em 2021, chegando à faixa dos R$ 81,632 bilhões, uma diferença de 32,5% em relação ao ano anterior”.

“Exportar é o que importa”

Outro fator que contribui para a inflação é o apoio do governo à agricultura de exportação, em vez de estimular a produção de alimentos para o mercado interno. No gráfico abaixo, constatamos que a agricultura ligada à exportação, em particular a soja, representa o essencial da produção, sendo que arroz, feijão e outros alimentos essenciais para o mercado interno estão na categoria “outros”.

SOJA é a lavoura com maior valor de produção do Brasil, seguido de cana-de-açúcar, milho e café.

Desde a liquidação do Ministério de Desenvolvimento Agrário e dos mecanismos de apoio à agricultura familiar, a produção de alimentos ficou fragilizada. Mas se trata também de opções políticas mais antigas: em 1996, foi aprovada a lei Kandir, que isenta de tributação a produção destinada à exportação. Na época, a mídia comercial repercutia o slogan “Exportar é o que importa”. Toda bandidagem precisa de um verniz, de “narrativa”, para parecer positiva. Tornou-se muito mais lucrativo produzir soja para o mercado externo do que alimentar a população. A deformação foi reforçada mais recentemente com a desvalorização do real: no governo Lula, a exportação do equivalente de um dólar de produto rendia para o exportador 2,5 reais. Hoje rende o equivalente do dobro.

O impacto conjugado da fragilização do apoio à agricultura familiar, da Lei Kandir e do dólar alto levou o Brasil, terceiro produtor mundial de alimentos, e primeiro exportador de carne, a enfrentar em 2021 a tragédia de 19 milhões de pessoas passando fome e 116 milhões (55% da população) em situação de insegurança alimentar. Lembrando que cerca de um quarto dos que passam fome são crianças. Não tenhamos dúvida em afirmar que se trata de um crime, no mínimo de prevaricação por parte do governo, que abre a porteira para ganhos dos grandes traders que ganham com a exportação, e não toma nenhuma medida para que a população tenha acesso ao alimento.

Aqui se trata de uma tragédia nacional, lembrando que em 2014 o Brasil tinha sido tirado do mapa da fome da FAO, com medidas simples e eficientes. Em termos de inflação, trata-se de sub-abastecimento do mercado interno, que faz explodir os preços do arroz e outros alimentos, não porque a economia está “aquecida”, mas porque está fragilizada. Temos ao mesmo tempo estagnação econômica e inflação, coisa que em economia tem sido chamado de “estagflação”.

É uma engrenagem. Com os vários desmontes de instituições, qualificados nas narrativas do governo e da mídia comercial como “reformas”, em particular o “teto de gastos”, travamento do salário mínimo, precarização do trabalho e das políticas sociais, e em particular o endividamento gerado pelos juros impagáveis, a população perdeu a sua capacidade de compra, o que trava o principal motor da economia. As empresas produtivas reduziram o ritmo de produção: para funcionar, precisam de demanda, de população com dinheiro para ter para quem vender; e precisam de juros normais para poder financiar a produção. No Brasil, as empresas não têm nem uma coisa nem outra. E com a estagnação da economia – tanto do consumo das famílias como do investimento empresarial –  as empresas ficam sem opção.

O governo, que depende do consumo e da produção para aumentar as receitas, aumentou o déficit. Isso que os grupos que deram o golpe em 2016 diziam que era para restabelecer o equilíbrio fiscal. O equilíbrio fiscal se consegue dinamizando a economia e aumentando as receitas, não com austeridade que paralisa a economia.

O país está se desindustrializando. Apenas dois setores estão dinâmicos no Brasil: a exportação de bens primários e a intermediação financeira. O primeiro gera um desastre ambiental, poucos empregos e muita fome. O segundo gera uma massa de endividados que trabalham para pagar juros. É tempo de voltarmos ao bom senso e ao controle da nossa economia – antes que seja tarde demais e o quadro se torne irreversível.

LADISLAU DOWBOR é professor de economia da PUC-SP, consultor de diversas agências da ONU, autor de numerosos estudos disponíveis gratuitamente online em seu site www.dowbor.org. O seus últimos livros publicados foram “Pão nosso de cada dia: opções econômicas para sair da crise” e “A era do capital improdutivo”, ambos pela editora Autonomia Literária.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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