Se hoje as escolas não utilizam mais a palmatória, isso não significa, contudo, que os métodos de punição foram todos extintos do sistema educacional. Eles permeiam desde as avaliações com base em notas até o projeto Escola Sem Partido. É o que afirma Áurea Maria Guimarães, professora da Faculdade de Educação da Unicamp.
Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a autora do livro Vigilância, punição e depredação escolar (Editora Papirus) falou sobre como os mecanismos de punição estão presentes nas escolas atualmente. Confira os principais trechos:
Centro de Referências em Educação Integral: Para começar, como a senhora entende punição?
Áurea Maria Guimarães: A punição é muito mais uma forma de discriminar comportamentos do que castigar. Por meio das penalidades se estabelece um sistema de igualdade formal que leva à homogeneização entre os alunos, mas ao mesmo tempo introduz-se a gradação das diferenças individuais.
Ao discriminar os comportamentos dos indivíduos, a punição passa a diferenciá-los, a hierarquizá-los em termos de uma conformidade a ser seguida. A punição objetiva controlar, qualificar o indivíduo, não interessando o que ele fez, mas o que é, será ou possa vir a ser. Diante da “universalidade do normativo”, só resta aceitar e cumprir as normas, pois questionar ou tentar entender as regras significa colocar-se sob suspeita.
Um outro aspecto a ser analisado é que não se faz uma reflexão, juntamente com os alunos, a respeito dos seus atos. Por exemplo, é muito comum carros de professores serem danificados pelos próprios alunos, então, o que fazer? Descobrir os culpados, exigir que eles paguem os danos e que sejam suspensos por alguns dias? Podemos até concordar com essas punições, mas questões importantes ficam sem resposta: por que esses fatos se repetem, apesar das punições aplicadas? Por que esses carros estão sendo danificados pelos alunos? O que está acontecendo com os alunos, os professores, a escola, com o ambiente onde todos esses elementos estão interagindo?
Outra observação diz respeito à “regra dos efeitos colaterais”. Segundo Michel Foucault, na aplicação das penas o elemento menos importante é o culpado. A penalidade “deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta”.
Em entrevista realizada, em 1982, com alunos de quintas às oitavas séries do antigo Primeiro Grau (hoje dividido entre Fundamental I e Fundamental II) e alunos do Segundo Grau (hoje Ensino Médio), em 15 escolas da cidade de Campinas, pude coletar inúmeros depoimentos, nos quais essa estratégia de provocar “efeitos colaterais” era muito comum.
Por exemplo, “sumiu um tipo de equipamento químico da biblioteca e ‘fulano’ falou que se não aparecer até sexta feira à noite a escola inteira ia levar suspensão”. A punição incentiva a delação, produz a normalização e a ausência de crítica.
Centro de Referências em Educação Integral: E o que seria a noção de criança “bem educada” e como ela se opõe à noção de desordeiros?
AMG: A criança “bem educada” é a criança que não pergunta, não questiona, não se inquieta. O “bom aluno” é o aluno bem comportado e não necessariamente aquele que tira boas notas. Alunos que até podem tirar boas notas, mas que são questionadores das regras, das normas da instituição são considerados “desordeiros”, “vagabundos”. Dessa forma criam-se indivíduos sujeitos a hábitos, regras, ordens, a autoridades que se exercem continuamente sobre eles.
Centro de Referências em Educação Integral: Não tão antigamente, os castigos aos estudantes considerados indisciplinados eram físicos. Hoje, podemos dizer que são psicológicos?
AMG: Os castigos físicos, ainda que em pequena escala, costumam acontecer. Muitos pais até autorizam os professores a “baterem” em seus filhos, uma vez que se sentem impotentes diante da rebeldia deles. De modo geral, os castigos visam rebaixar e degradar, colocando em evidência, distinguindo alunos que possam caracterizar a “desordem”.
A punição faz diferenciações, separando, através de avaliações e de classificações, os “bons” dos “maus” alunos, também chamados de “bagunceiros”, “marginais”, “maconheiros”, “maloqueiros”, “selvagens”, “índios”, “bobos”, “animais” “favelados”.
Centro de Referências em Educação Integral: O sistema de provas e notas nas escolas faz parte da lógica de punição?
AMG: O que predomina nas escolas é o sistema de gratificação-sanção. “Tem festa junina em junho, então, se dá prenda você ganha ponto na nota, ganha letra, entende?”. A penalidade é quantificada de modo a associar notas a mais com bom comportamento e a menos com mau comportamento. Isso não significa que não deva existir um sistema de avaliação nas instituições educativas.
É uma escola que funciona como um “observatório social”, exercendo sobre os alunos e professores um controle regular, que toma como referência não tanto o que se faz, mas o potencial do perigo que se carrega e que pode se manifestar no comportamento observado cotidianamente. Mas, não nos enganemos, essa escola é potente, porque nem todos, felizmente, se transformam em seres passivos, incapazes de se comunicarem, de pensarem.
A reação de alunos e professores contrários à reorganização das escolas no estado de São Paulo, foi uma prova de que professores e alunos defendem a escola pública e querem transformá-la não conforme o apelo mercantilista que subjaz às “boas intenções” da burocracia estatal, mas de modo a garantir que o conhecimento produzido pela humanidade possa ser partilhado com os alunos.
Esse conhecimento não é neutro, ele é múltiplo, contraditório, exerce-se em meio a relações de poder. A Física, a Química, a Biologia, a Matemática são consideradas por alguns cientistas como sendo também ciências sociais pois não existem apartadas do nosso cotidiano, das nossas vidas.
Trabalhar esse conhecimento e lutar para que ele esteja ao alcance de todos é o papel do educador. Aí sim, vamos pensar juntos um sistema de avaliação que, ao invés de excluir alunos, os convidem a dialogar, produzir, inventar novas possibilidades de estar na escola, de estar no mundo.
Centro de Referências em Educação Integral: A senhora diz que a lógica liberal prevê que o tempo individual seja sempre empregado em atividades úteis. Como essa concepção está ligada à escola atual?
AMG: Muitos teóricos e pesquisadores da educação, entre eles, Tomaz Tadeu da Silva, Gaudêncio Frigotto, Mariano Enguita, Pablo Gentilli, Luiz Carlos de Freitas, nos alertavam, desde o início dos anos 1990, a respeito de conceitos que passaram a migrar do mundo do trabalho para o campo da educação. Termos como racionalidade, eficiência, produtividade, utilidade, neutralidade, imparcialidade, passaram a ser utilizados indiscriminadamente, como se a sala de aula e o ambiente de uma empresa fossem a mesma coisa.
É muito comum os alunos perguntarem para professores de diferentes áreas do conhecimento “para que serve estudar isso?”. Para uma empresa é fundamental esclarecer a utilidade de seus produtos e assim convencer o consumidor a comprar o que ela está vendendo, ainda que esse convencimento se revista de um golpe de marketing.
E na educação? Também é importante esclarecer ao aluno a utilidade daquele determinado conhecimento, mas, com uma diferença, na escola, não vendemos produtos que precisam se adaptar às demandas do mercado. O conhecimento com o qual trabalhamos não é único, ele se constrói e se transforma em diferentes tempos históricos e lugares.
Não é função do educador “otimizar o tempo”, calcular e maximizar a utilidade dos alunos com atividades que formatem um “eu” produtivo, ou uma identidade adaptada, subordinada à lógica mercantil.
Nosso papel, enquanto educadores, é mostrar aos alunos que os conhecimentos adquiridos na escola podem ser usados como ferramentas que os ajudem a se emancipar e a construir novas relações com o mundo que os cercam.
Que a escola não os transformem em meros executores de tarefas, disciplinados e obedientes aos princípios mercadológicos, mas que além de os preparar científica e tecnicamente para assumirem posições no mundo do mercado, desenvolva neles, como propala Frigotto, todas as dimensões do ser humano e a compreensão de que tudo o que se aprende deve servir em primeiro lugar às pessoas e não à produção.
Hoje tenta-se organizar as escolas como um campo competitivo de provas no qual vencem os “melhores”, ou seja, aqueles alunos que já chegaram com um repertório cultural, econômico e social adquirido muito antes de iniciarem a vida escolar. Para aqueles que chegam sem esse repertório resta-lhes uma educação qualquer e as ocupações de baixa qualificação no mercado.
Centro de Referências em Educação Integral: De que forma a lógica punitivista se manifesta no Escola Sem Partido?
AMG: Os ideólogos do Escola Sem Partido acreditam que a educação é neutra, mas não é. Quando seu fundador indignou-se com a crítica que um professor de sua filha fez à teoria criacionista ele tomou um partido, partido esse contrário àqueles que defendem o evolucionismo.
Não sabemos que atitude a escola tomou diante desse pai, mas imaginamos que, preocupada com a formação integral dos seus alunos, deva ter explicado a ele o quanto era importante para a educação dos alunos expor não somente essas duas teorias, como também a versão que outras culturas têm para explicar a origem e a evolução da vida.
Uma escola que faz pensar possibilita às crianças e aos jovens pensarem por eles mesmos, trocarem ideias com seus colegas, amigos e familiares, antes de decidirem qual posição deveriam ter diante de questões complexas que exigem aprofundamento, reflexão, atividade autônoma do pensamento.
Mas, por que o pensar aparece aqui de modo tão relevante? Hannah Arendt, no seu livro A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, apresenta duas de suas conferências e numa delas analisa o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém.
Para Arendt, a banalidade do mal não se deve à existência de pessoas perversas, sem coração, mas à incapacidade de reflexão. Mesmo pessoas muito inteligentes podem padecer da ausência de pensamento. Eichmann dizia não odiar os judeus. Rezou em hebraico frente ao júri e às pessoas que acompanhavam o seu julgamento. Insistia em ter sido um bom pai, um bom marido, um bom funcionário, um pessoa ordeira, que sempre seguia as normas e as regras às quais era submetido, por isso não entendia porque o consideravam um “monstro”.
Segundo a filósofa, não basta adquirir conhecimento. É preciso refletir sobre o meu lugar no mundo, a maneira como os sentidos desse mundo afetam a mim e àqueles que me cercam.
Fonte: Educação Integral.