Cerca de 87,7% dos agrotóxicos que foram liberados durante o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) são produzidos fora do Brasil.
O cálculo considera a fabricação primária do produto técnico, que, segundo o Decreto 4.074/2002, é aquele “obtido diretamente de matérias-primas por processo químico, físico ou biológico, (…) cuja composição contenha teor definido de ingrediente ativo e impurezas, podendo conter estabilizantes e produtos relacionados.”
Desde o início do governo, em 1º de janeiro de 2019, foram liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) 945 novos produtos agrotóxicos – um recorde, na comparação com os governos anteriores. Destes, 580 produtos técnicos são fabricados na China, 116 no Brasil, 79 na Índia e 55 nos Estados Unidos.
Advogado, pesquisador e membro do Fórum Paulista de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, Marcelo Novaes ressalta que a liberação recorde de agroquímicos e as isenções ao setor “esvaziam a renda nacional” e transferem riquezas para fora do país.
“Essa indústria está no orçamento da União e dos estados. Não de forma positiva, contribuindo com tributação, mas no sentido de incentivos fiscais que chegam a US$ 3 bilhões ao ano [mais de R$ 15 bilhões], deixando um vazio que precisa ser suportado por toda a sociedade”, analisa.
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Nos anos 1960, lembra o pesquisador, o Brasil gastava aproximadamente US$ 40 milhões por ano com a importação de agrotóxicos. Em 2020, o gasto estimado é superior a US$ 7,2 bilhões.
As isenções representam cerca de 30% desse mercado. Ou seja, o país deixa de arrecadar impostos para estimular a compra de insumos estrangeiros usados em grãos que serão destinados, em grande medida, à exportação – 80% do agrotóxico é aplicado em cultivos de soja, cana de açúcar, milho e algodão.
Uma vez que o agronegócio também paga impostos ínfimos sobre a venda da produção, os únicos beneficiados por esse modelo são latifundiários, empresas exportadoras de commodities e fabricantes de insumos agrícolas.
O déficit da balança comercial da indústria química brasileira saltou de US$ 1,5 bilhão em 1991 para US$ 29,3 bilhões em 2020, segundo estimativa da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). O valor gasto com importações é quase quatro vezes maior que o obtido com as exportações do setor.
Em outras palavras, o Brasil entra com as terras e com o dinheiro, por meio de isenções tributárias, e fica com o ônus da relação: concentração fundiária, danos à saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente, balança comercial desfavorável.
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“Modernização”
Novas interpreta que a ministra da Agricultura de Bolsonaro, Tereza Cristina, incentiva o processo de financeirização e estrangeirização do modelo agrícola em vigor no país.
“Não que os [ministros] anteriores não tivessem essa característica, porque ela está no DNA da nossa burguesia agrária. Mas a Tereza Cristina ‘moderniza’ isso e incentiva a estrangeirização e a financeirização sem pudor, com muito mais competência, na linha do [ex-ministro Blairo] Maggi”, acrescenta.
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A empresa que lidera a lista de fabricação de produtos técnicos liberados durante o governo Bolsonaro, com 72 produtos, é a chinesa Shandong Weifang Rainbow Chemical Co. Em segundo lugar, aparece a estadunidense Dow, com 31 produtos– quatro deles, fabricados em uma subsidiária na África do Sul.
Entre os agrotóxicos cujo produto técnico é fabricado no Brasil, a Ballagro Agro Tecnologia Ltda. (11) e a Simbiose Indústria e Comércio de Fertilizantes e Insumos Microbiológicos Ltda. (10) ocupam o topo da lista. A primeira tem sede em Bom Jesus dos Perdões (SP) e a segunda, em Cruz Alta (RS).
Dos 645 produtos liberados pelo governo Bolsonaro, 311 possuem componentes banidos na União Europeia em função de sua toxicidade.
“Não é só uma questão de proteção à saúde e ao meio ambiente: o modelo agroexportador esvazia a renda nacional. Ele gera, sim, uma grande riqueza, mas que é sugada ao exterior pelas grandes exportadoras e pelas empresas estrangeiras de fornecimento de insumos”, enfatiza Novaes.
Bolsonaro e a China
Esta reportagem utilizou parte do banco de dados sistematizado pelo geógrafo Marcos Antonio Pedlowski, professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Em entrevista recente ao Brasil de Fato, o pesquisador chamou atenção para contradições na relação entre Bolsonaro e China.
Em discursos oficiais e, principalmente, nas redes sociais, o presidente tem se posicionado contra a CoronaVac — vacina em fase avançada de testes contra o coronavírus –, devido à origem chinesa. Por outro lado, não mantém o mesmo “rigor ideológico” em outros setores da economia.
“Esse debate todo é uma cortina de fumaça”, analisou Pedlowski. “Os chineses são muito eficientes e têm produtos em quantidade avassaladora. O Brasil não tem como ‘se livrar’ da China, porque a dependência é muito grande. E o neoliberalismo do Guedes, que não coloca nenhum limite, habilita a China a fazer o que bem entende.”
Mais de 80% dos agrotóxicos chineses autorizados no Brasil entre 2019 e 2020 têm a fabricação do produto técnico concentrada em apenas dois estados: Shandong e Jiangsu.
Outros dados
A análise dos fabricantes de agrotóxicos liberados por Bolsonaro reforça a preponderância do gigante asiático no setor. Das 10 empresas que estão no topo do ranking de fabricação de produtos técnicos, quatro são da China e duas pertencem a empresas de outros países compradas por chineses – Adama (Israel), com 14 produtos, e Syngenta (Suíça), com 16.
Ainda sobre o “top 10”, apenas a nona e a décima colocadas fabricam todos os seus produtos técnicos no Brasil – Ballagro e Simbiose.
“O modelo agroexportador é químico-dependente, e praticamente não existe indústria nacional”, resume Novaes.
Nos últimos 20 anos, foram registradas cerca de 17 mil patentes de herbicidas. Destas, apenas 170 são de empresas de capital nacional.
Entre os 945 produtos autorizados pelo governo Bolsonaro, 704 são fabricados na Ásia, 59 na Europa e apenas seis em outros países da América Latina – dois na Argentina, dois no México, um no Peru e um no Paraguai.
“Não se trata de lutar contra o desenvolvimento das forças produtivas. Precisa haver tecnologia, mas existem espaços para se buscar uma tecnologia que não seja predatória ao meio ambiente e à saúde”, finaliza o pesquisador e membro do Fórum Paulista de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos.