Em 28 de novembro de 1953, Frank Olson, um cientista da área de pesquisas em guerra biológica do exército estadunidense, caiu do décimo andar do hotel Manhattan Statler, em Nova York. Ele pulou ou foi empurrado? Nove dias antes de sua morte, Olson – que falava sobre abandonar seu trabalho e contava à sua esposa sobre ter cometido “um erro terrível” – foi secretamente intoxicado com LSD por um agente da CIA.
Mais de vinte anos depois, o presidente dos EUA, Gerald Ford, se encontrou pessoalmente com a família de Olson, para oferecer um pedido de desculpas. Os filhos de Olson estão convencidos de que a morte de seu pai não foi resultado de um colapso mental, possivelmente engatilhado pela dosagem secreta de LSD; em vez disso, eles acreditam que ele foi assassinado para prevenir que revelasse segredos.
A história de Frank Olson inspirou uma série da Netflix dirigida por Errol Morris, mas sua morte segue permeada de mistérios. O trabalho de Olson o colocou em contato com o homem que lhe drogaria secretamente – Sidney Gottlieb, que coordenava um dos projetos mais infames da história da CIA, o MK-Ultra.
O livro Poisoner in Chief: Sidney Gottlieb and the CIA Search for Mind Control [Intoxicador no Comando: Sidney Gottlieb e a Busca da CIA por Controle da Mente], de Stephen Kinzer, conta a incrível história de um homem que se enxergava um nobre patriota e um explorador, destruindo pessoas nos EUA e no estrangeiro.
Um patriota desorientado?
Sidney Gottlieb, nasceu em 1918, filho de imigrantes húngaros-judeus. Químico por treinamento, Gottlieb foi recrutado para realizar pesquisas secretas para os EUA em guerras químicas. Conforme descreve Kinzer, os Estados Unidos começaram a pesquisar o uso de bactérias e agentes químicos para uso militar durante a Segunda Guerra Mundial.
Na história contada por Kinzer, Gottlieb estava ansioso para contribuir com suas habilidades nas pesquisas. Ele já queria participar dos esforços de guerra, mas foi rejeitado devido a uma deficiência de pé torto. De acordo com Kinzer, o agente Gottlieb se sentia em dívida com o país que forneceu um lugar seguro para sua família e possibilitou sua formação acadêmica.
Os Estados Unidos não eram o único país pesquisando novos métodos de guerra. Cientistas nazistas também trabalhavam com armas químicas, infames pelos experimentos em seus prisioneiros no desenvolvimento das pesquisas. Um total ainda desconhecido de cientistas – que, de acordo com os critérios de Nuremberg, deveriam ser condenados por crimes contra a humanidade após 1945 – ganharam uma nova vida nos Estados Unidos, em troca de informações sigilosas.
Sempre que cientistas apresentassem um passado “manchado”, como aponta Kinzer, oficiais dos EUA reescreviam suas biografias, expurgando sistematicamente “referências de associação à SS em colaboração com a Gestapo, abuso de trabalho escravo e experimentos em seres humanos”. Essa foi a Operação Paperclip [clipe de papel, em tradução literal] – batizada em referência ao uso de clipes de papel utilizados para marcar os arquivos de cientistas que eram levados aos Estados Unidos (mais de setecentos, no total).
Nazistas criminosos de guerra não eram a única fonte de conhecimento dos EUA. Cientistas japoneses que trabalharam com a Unit 731, a pesquisa secreta em guerra química e biológica do Exército Imperial Japonês, também se beneficiaram dos acordos secretos. A história da Unit 731 é ainda menos transparente em comparação com os equivalentes nazistas. Do que nós já temos conhecimento é matéria de pesadelos. A Unit 731 submetia prisioneiros à vivissecção e remoção de órgãos sem anestesia, para estudar os efeitos de doenças diversas em humanos.
Operação Sea Spray
Kinzer descreve como oficiais dos EUA concluíram que, no contexto da Guerra Fria, tais pesquisas produziriam conhecimentos que poderiam “se provar decisivos em futuras guerras.” Após a guerra, nos EUA, em vez de abrandados, projetos de pesquisas biológicas e químicas cresceram. Oficiais militares estavam obcecados com a ideia de que os soviéticos estavam à frente dos Estados Unidos no desenvolvimentos de novas formas de guerra.
Isso justificou até mesmo experimentos em cidadãos dos EUA. Em 1950, cientistas conduziram um grande teste, em que bactérias supostamente inofensivas, mas rastreáveis, seriam lançadas em uma cidade dos EUA. Escolheram São Francisco, compreendendo que sua neblina contínua disfarçaria as névoas de bactérias. Durante a Operação Sea Spray, um navio da Marinha fumegou bactérias na atmosfera durante seis dias na costa de São Francisco. Nos dias posteriores, onze pessoas deram entrada em hospitais e uma pessoa morreu.
Apesar de não ser tão inofensivo como previsto, os pesquisadores consideraram o experimento um sucesso. Para sua satisfação, se provou que “dosagens eficazes podem ser produzidas em áreas relativamente grandes.”
O interesse pessoal de Gottlieb, entretanto, era outro. Em vez de buscar métodos para o envenenamento em larga escala, o cientista era fascinado com a ideia de que substâncias químicas poderiam ser utilizadas para controlar a mente das pessoas. Em prisões secretas pela Europa e Ásia, prisioneiros eram submetidos a tentativas de “lavagem cerebral”. Kinzer cita um estudo:
Em 1951, uma equipe de cientistas da CIA liderada pelo Dr. Gottlieb foi até Tokyo… Quatro japoneses suspeitos de trabalhar para os russos foram secretamente enviados a um local em que médicos da CIA os injetaram com uma variedade de depressores e estimulantes… Sob interrogatórios incessantes, eles confessaram trabalhar para os russos. Eles foram levados até a Baía de Tokyo, executados e jogados ao mar.
Nos anos seguintes, uma droga específica se tornou central para o trabalho de Gottlieb: o LSD. Originalmente sintetizada em 1938, suas propriedades alucinógenas se tornaram aparentes para os cientistas da década de 1940. Gottlieb estava convencido de que LSD poderia ser usado para manipular indivíduos, para fazer com que espiões capturados confessassem seus segredos e até mesmo reprogramar suas personalidades.
Gottlieb não estava sozinho em sua convicção. Durante a guerra na Coréia, os círculos do establishment estadunidense ficaram chocados com casos de soldados do país aderindo ao lado da Coréia do Norte e denunciando crimes de guerra dos EUA. A única explicação possível, concluiu a inteligência dos EUA, era que comunistas teriam aperfeiçoado suas técnicas de lavagem cerebral. O filme O Candidato da Manchúria, de 1962, popularizou ainda mais esta ideia com sua história de uma conspiração comunista e um soldado dos EUA que sofreu lavagem cerebral.
Humanos para experimentos de laboratório
Em sua obsessão com os supostos avanços soviéticos nas guerras bacteriológicas e químicas, somado ao medo das “habilidades comunistas” em lavagem cerebral nos círculos da inteligência dos EUA levou a agência a quebrar suas próprias regras. A CIA precisava de humanos para realizar experimentos, mas prisioneiros de guerra coreanos e comunistas suspeitos de espionagem representavam um estoque limitado. Gottlieb se mostrou engenhoso ao encontrar novas vítimas.
Logo após lançar o infame programa que se tornaria conhecido como MK-Ultra, Gottlieb entrou em contato com Harris Isbell, diretor de pesquisa do Addiction Research Center [Centro de Pesquisas em Adicção] em Lexington, Kentucky. Oficialmente tratava-se de um hospital para pessoas com dependência química, o centro estava sob a autoridade conjunta da Bureau of Prisons and Public Health Service [Comitê público de prisões e serviços de saúde], e “funcionava mais como uma prisão.” A maioria dos detentos era de afro-americanos em situação de extrema vulnerabilidade. Isso os torna perfeitos para os testes. Conforme escreveu Kinzer:
A CIA precisava de um lugar para testar drogas nocivas e potencialmente viciantes: Isbell tinha um grande número de usuários de drogas que não estavam em posição de se defender. A partir do início dos anos 1950, a agência enviou LSD, com outros narcóticos potencialmente nocivos, para Kentucky, para testes em humanos usados como ratos de laboratório.
Isso foi apenas o começo. Insatisfeita com a pesquisa em Kentucky, a MK-Ultra ampliou sua abrangência. Nos início dos anos 1950, a CIA notou pela primeira vez o trabalho de Ewen Cameron, presidente da Associação Americana de Psicologia e da Associação Canadense de Psiquiatria.
O trabalho de Cameron lhes chamou atenção porque realizava experimentos em que confinava pacientes em pequenas celas, os colocava em coma induzido por drogas e os submetia à uma repetição interminável de frases gravadas. Cameron buscava métodos que o permitiriam, como ele afirmava, “reprogramar” indivíduos, alterar seus comportamentos e crenças. Pacientes que chegavam à Cameron em busca de ajuda, tornaram-se involuntariamente cobaias para esses experimentos.
A CIA financiou e protegeu o cientista, que conduziu testes em que – de acordo com uma avaliação feita décadas depois – “não tinham qualquer validade terapêutica”, sendo até mesmo “comparáveis às atrocidades médicas nazistas”. Para explicar as ações de Cameron, não há necessidade de considerar um certo patriotismo desorientado ou os medos da Guerra Fria como motivações. Ele era simplesmente um sádico que utilizava uma fachada científica para quebrar e traumatizar pessoas.
“Muito bom hein, irmão!”
Logo em seguida, a CIA começou a subsidiar pesquisas de renomados psicólogos e psicofarmacologistas. Muitos deles não sabiam de onde vinha o financiamento. Pesquisas eram conduzidas em hospitais e universidades de respeito, como MIT, Stanford e John Hopkins. Em geral, as pessoas em que eram realizados os testes não sabiam ao que seriam submetidas – uma nítida violação ética de pesquisas.
Alguns experimentos não eram coercitivos ou eram até mesmo atraentes. Uma série de experimentos envolveu uso de LSD para estudantes voluntários. Os voluntários ficaram tão fascinados por suas experiências psicodélicas que até médicos e enfermeiras chegaram a se inscrever eles mesmos para os testes. Em uma irônica reviravolta na história, a CIA ajudou a popularizar a droga que fora tão importante para a contracultura dos anos 1960.
Mas Gottlieb ainda não estava perto de realizar seu sonho de uma droga que pudesse controlar mentes. Em Nova York e São Francisco, ele conduzia operações em que civis recebiam drogas sem consentimento e eram observados para avaliar as reações. Na operação informalmente chamada de Operation Midnight Climax [Operação Clímax da Meia Noite, em tradução literal], Gottlieb trabalhou junto com agentes da Federal Bureau of Narcotics para montar um local seguro para atividades de inteligência em São Francisco.
“Sob a direção de Gottlieb”, escreve Kinzer, o agente George Hunter White “montou um grupo de prostitutas cujo trabalho seria levar seus clientes ao local e dosá-los com LSD, enquanto ele observava e gravava suas reações.” White lucrava com a natureza secreta da operação para satisfazer seus próprios desejos. Ao fim de sua vida, em 1975, White escreveu uma carta para Gottlieb, o agradecendo pelas oportunidades concedidas à ele pela CIA:
Eu era um pequeno missionário, na verdade, um herege, mas trabalhava de todo coração nas vinhas porque era divertido, divertido, divertido. Onde mais poderia um jovem garoto americano de sangue vermelho mentir, matar, enganar, roubar, estuprar e pilhar, com a sanção e a benção da Alta Santidade? Muito bom hein, irmão!”
Os homens que encaravam cabras
Apesar de tudo isso, a MK-Ultra nunca obteve os resultados que Gottlieb desejava. A CIA começou a abrandar o projeto no final dos anos 1960 e o encerrou completamente alguns anos depois. O fato é que sua existência se tornou pública durante a década de 1970, quando, em certa medida, operações da CIA foram colocadas sob escrutínio democrático.
Em 1974, o New York Times reportou atividades ilegais da CIA conduzidas em âmbito doméstico. O Congresso dos EUA formou diversas comissões para investigar as alegações, como o famoso inquérito conduzido por Frank Church. Kinzer descreve o cabo-de-guerra entre oficiais que desejavam usar tais investigações como um álibi e a pressão por investigar seriamente atividades ilegais.
No início dos anos 1970, Gottlieb aposentou-se da CIA. Quando ele foi revelado como o homem por trás do MK-Ultra, alguns anos depois, e foi convocado para uma Comissão do Senado, ele mediou um acordo que o salvou de ações judiciais. Gottlieb viveu seus últimos anos tranquilamente criando cabras em sua casa rural na Virgínia. Ele morreu em 1999.
Irracional e criminoso
Como o Envenenador-Chefe, indivíduos, e não grandes forças sociais, estão no centro das atenções. O resultado é uma crônica de criminosos bizarros e vigaristas como Gottlieb e George Hunter White, e todo dano que causaram.
Partes do livros são surreais. Anedotas variam de horripilantes – em um experimento, crianças com deficiências cognitivas foram alimentadas com cereais contendo urânio e cálcio radioativo – à algumas até cômicas, por exemplo quando agentes da CIA supostamente implantaram um dispositivo de escuta em um gato, mas esqueceram que gatos não obedecem instruções (o gato fugiu durante um teste em um parque).
Mas o que permitiu que pessoas como Gottlieb tenham feito tudo que fizeram? A explicação de Kinzer sobre a motivação de Gottlieb só consegue desvendar uma parte. O livro mostra que os anos de custosos experimentos nunca trouxeram nenhum resultado que ao menos apontasse para a possibilidade do estilo de lavagem cerebral visto em O Candidato da Manchúria. Mas em vez de concluir que a busca era infrutífera, os cientistas da CIA persistiram.
O status aparentemente intocável de Gottlieb é ainda mais estranho ao considerar seus supostos casos de sucesso. Para explicar sua influência na CIA, Kinzer descreve o envolvimento de Gottlieb em projetos que lhe deram prestígio. Mas as “histórias de sucesso” de Gottlieb foram quase todas de fracassos, como as tentativas de assassinato do ministro chinês de relações exteriores, Zhou Enlai, de Fidel Castro ou do líder independentista congolês, Patrice Lumumba (ele foi assassinado antes que o plano de Gottlieb pudesse ser colocado em prática). A carreira de Gottlieb em destruição de vidas é um surpreendente exemplo de irracionalidade burocrática, mostrando como sem supervisão democrática, projetos secretos podem tomar vida própria.
Kinzer concede um crédito particular ao diretor da CIA, William Colby (1973–76), na exposição desta loucura. Mas Colby atuou em um contexto mais amplo, moldado pelo Movimento Anti Guerra, por Watergate e revelações como o Pentagon Papers. Houve uma deslegitimação generalizada de instituições como a CIA e pressão popular por prestação de contas. Não é coincidência que com o declínio destes movimentos, ao final dos anos 1970, qualquer tipo de responsabilização foi novamente abreviada.
Com a “guerra ao terror”, a CIA e outras agências de inteligência ganharam uma liberdade sem precedentes para atuar. Mais recentemente, com a passagem de Trump, chegamos a testemunhar tentativas de reformulação da imagem da CIA como um braço racional, informado e benevolente do Estado dos EUA. O livro de Kinzer sobre Gottlieb e a MK-Ultra serve como um útil lembrete da natureza podre dos mestres imperiais da espionagem.