Por Amauri Eugênio Jr.
O senso comum induz a pensar que o perfil médio de bandidos é formado por caras negros por, entre outros motivos, 64% da população carcerária ser negra segundo dados do último Infopen(Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias). Contudo, por mais que haja caras que, independentemente da etnia, têm tretas pesadas com a justiça, é inegável a existência de propensão a criminalizar pessoas negras: os casos deenquadros bizarros, assim como as diferenças como pessoas em bairros burgueses e na quebrada devem ser abordadas pela PM, são lembretes da cor da justiça.
Esta questão é, como se pode imaginar, refletida na esfera judicial. Segura esta: cerca de 15% dos servidores e magistrados no país são negros, enquanto há menos de 1% em escritórios de advocacia. É: menos de 1%. Isso já seria estranho em qualquer contexto, mas quão surreal isso seria em um país no qual quase 54% da população é composta por pessoas pretas e pardas? Pois bem, caso você ainda não tenha percebido, este país é o Brasil.
Como é de se imaginar, parte importante deste cenário, que retroalimenta a lógica de privilégios mil para uns e a lama para outros, está relacionada à transmissão do legado [risos] de pais para filhos.
De acordo com a pesquisa Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018 , do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), 20% dos magistrados brasileiros têm familiares na magistratura; 79% os têm na advocacia privada – ou seja, escritórios –; 16%, na advocacia pública; 6% têm grau de parentesco com algum profissional na defensoria pública; 20% no Ministério Público e 12% na Polícia. Sintomático, não?
E, como a questão aqui está relacionada ao poder – interpretação, criação e aplicação de leis, sabe como é –, além da relação com a área política, o mundo jurídico não é lá muito chegado em mudanças. “Não estou falando de vocação ou da natural influência dos pais na escolha profissional dos filhos, mas de heranças materiais e imateriais que blindam o poder branco e corroem o sentido de sociedade democrática”, pontua Felipe da Silva Freitas, mestre em direito pela Universidade de Brasília e doutorando na mesma instituição.
“É o filho que herda clientes do escritório do pai, o candidato ao mestrado que conhece todos os membros da banca, pois é filho de juiz que, por sua vez, é colega dos professores da faculdade, ou o advogado que tem acesso ao magistrado porque estudou na mesma escola dos seus filhos ou frequentou sempre o mesmo meio social.”
A carne mais barata do mercado…
Se caras brancos têm as benesses proporcionadas pela manutenção do status quo, inclusive na área judicial, o povo negro tem de passar por inúmeras tretas sociais – ou vê mil chances de morrer, parafraseando a letra de “Quanto vale o show”, do Racionais MC’s. Só nesta parte, sobre condições objetivas – leia-se infraestrutura socioeconômica –, tudo é problemático: morar e estudar num bairro onde as escolas estão fechadas boa parte do tempo por causa do confronto entre polícia contra gangues, onde faltam coisas como saneamento básico, acesso à produção cultural, saúde de qualidade, transporte e la nave va. A questão é que todas as adversidades possíveis podem estar presentes em sua vida como barreiras muitas vezes intransponíveis.
Já no campo subjetivo, a saúde mental é uma tópico importante, pois o racismo propriamente dito, presente desde a infância, assim como ser o único cara da família na faculdade e a pressão para se manter por lá – se for em uma instituição privada, o corre para trabalhar e se bancar lá, e se for em uma pública, ter acesso a auxílios à população de baixa renda – afetam pessoas negras de modo para lá de significativo. Isso sem contar a questão de ter “boa aparência” – sabemos o que isso quer dizer, não?
Para quem ainda acredita na lenda urbana e distorcida da meritocracia, a questão primordial é como a desigualdade e a injustiça social têm papel definitivo dentro desse cenário, assim como os privilégios. “São as vantagens da branquitude, que fazem pessoas exploradas procurarem se distanciar da negritude e permitir maior exploração e opressão de corpos negros, um processo de rebaixamento da humanidade de pessoas negras”, destaca Rhaysa Ruas, bacharel em direito pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mestranda em teoria e filosofia da mesma instituição e especialista em direito e processo penal.
Para ela, essa dinâmica esconde que tal rebaixamento, traduzido, entre outras coisas, no rebaixamento de salários, de condições de trabalho e de acesso à serviços, rebaixa também a condição de todas as pessoas exploradas, que com o tempo, empobrecem, se precarizam. “Dessa forma, o racismo não é um problema dos negros: é um problema sistêmico e global, e sobretudo um problema das pessoas brancas”, diz.
Segundo uma teoria de Isaac Newton, toda ação tem uma reação de mesma intensidade e força. Vejam comigo no replay: segundo a pesquisa A Aplicação de Penas e Medidas Alternativas no Brasil , feita pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 41,9% de acusados em varas criminais abrangiam pessoas brancas, enquanto 57,6% eram pretos ou pardos. Todavia, em juizados criminais, que dizem respeito a crimes menos hard core, 52,6% dos réus eram brancos, ao passo que 46,2% tinham pele negra. Ou seja: a propensão de um cara negro receber alguma pena mais pesada é bem maior.
Logo, premissas equivocadas como “pessoas negras não têm como morar em determinado bairro”, estar vestido de “maneira suspeita” ou estar em outra região da cidade configurar “atitude suspeita”, fazem parte do dia a dia do povo preto e pardo que se vê nas mãos da justiça. E, com isso, presunção de inocência é luxo dentro desse cenário.
Rhaysa afirma ter visto pessoas sendo criminalizadas com base em argumentos como “não é normal fazer churrasco ou frequentar a casa de vizinhos todos os finais de semana” ou “não é possível que alguém more em uma área da cidade onde só há prédios comerciais”. “Fora o racismo consolidado na lei, cujo artigo 28 da Lei de Drogas é um exemplo: fica ao critério do juiz definir, com base nas condições sociais e pessoais do agente, quem é usuário e quem é traficante. Não é coincidência que pessoas brancas sejam recorrentemente consideradas como usuárias e negras como traficantes, independente da quantidade da substância apreendida”, reforça a acadêmica.
Discriminação profissional
No início desta reportagem, você foi apresentado ao perfil de criminosos com base no senso comum – um doce para quem adivinhar a cor da pele. Agora, tente pensar em quem vem à mente quando se fala em pessoas ligadas à área judicial. A maioria é branca, correto? Talvez Joaquim Barbosa tenha sido a exceção à regra neste exercício de imaginação. Há ainda quem veja gente negra trabalhando na área judiciária como estagiário, se muito – como se nós, negros, fôssemos incapazes de ser bons profissionais. Ou, por mais contraditório que possa parecer, vira o exemplo da “piada” meritocrática carregada no “negros se vitimizam e quem quer consegue”.
Quando não vira o exemplo de que tudo é possível para negros (próxima piada, por favor), profissionais com esse perfil correm riscos de ser humilhados. O caso da advogada Valéria dos Santos, que foi algemada e arrastada por agentes públicos enquanto tentava defender o caso de um cliente, torna-se emblemático nessa história. Era como se ela fosse considerada inferior em comparação com os seus pares. Era como se o seu título, a sua formação e o seu trabalho não fossem nada por causa da cor da pele. Era, como disse Felipe da Silva Freitas, “como se a escravidão estivesse aqui e agora sendo reeditada com toda a força diante de nossos olhos, contando, inclusive, com a chancela e o estímulo da autoridade política e do discurso jurídico e social”.
O racismo estrutural, assim como o institucional, estavam envolvidos ali até o último fio de cabelo. Para completar, a juíza que autorizou a prisão de Valéria foi inocentadadias depois. Era o fomento ao quadro de descrédito resultante do estereótipo de pessoas negras.
“A ausência de mecanismos institucionais de promoção da diversidade no sistema de justiça dificulta o trabalho das pessoas negras que atuam nesta área”, reforça Felipe. “É como se pessoas negras vivessem na condição de permanentes estrangeiros nos espaços de poder.”
Afirmação para fazer valer a Constituição
Segundo o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Contudo, os próprios profissionais da área judicial parecem volta e meia se esquecer deste pequeno grande detalhe da nossa carta magna.
Por mais que brote algum cidadão de bem™ para berrar que a informação a seguir é mimimi, a real é que políticas afirmativas são, sim, superimportantes para mudar o status quo da área judicial e, como consequência, torná-la mais justa e igualitária. Achou que isso tem nada a ver com a entrada de mais profissionais negros – e, em igual proporção, de mulheres e de pessoas LGBT? Achou errado. É necessário ter o seguinte em mente: quanto mais plural e democrático for o acesso à justiça, mais próxima a dita-cuja será da realidade. Ou, então, aí é seguir o exemplo de Rogerinho do Ingá, personagem de Caito Mainier no programa Choque de Cultura.
Para Rhaysa Ruas, é a possibilidade de que as vozes e as perspectivas da população negra possam ser levadas em consideração, inclusive no processo de construção das regras que regem a nossa sociedade. “Veja a questão do STF: a ausência de ministros negros, em uma sociedade na qual as epistemologias negras estão ausentes da universidade e do sistema educacional, significa que a interpretação da Constituição Federal é feita, em última instância, a partir de lente branca”, pontua.
Além disso, é megadifícil pensar em composição majoritariamente negra no STF, e um dos efeitos desse panorama é a falta de representatividade. E isso importa demais por diversos motivos. Segundo Rhaysa, este imaginário afeta de forma negativa crianças e estudantes negros e reforça o racismo estrutural. “Além disso, um poder judiciário que destoa tanto da composição populacional é o símbolo de um país profundamente desigual e de democracia frágil. Políticas afirmativas são instrumentos de reparação histórica e medidas que tentam diminuir a desigualdade material existente, fruto de anos de injustiça e privações sofridas pela população negra”, pondera.
Por fim, medidas afirmativas podem ajudar a, inclusive, reduzir o preconceito contra pessoas negras dentro da própria justiça. “Em médio e longo prazos, estas medidas também podem contribuir para reverter as representações negativas que circulam na sociedade brasileira com relação às pessoas negras, além de dar oportunidade às novas gerações terem condições mais favoráveis para as escolhas profissionais e acadêmicas”, finaliza Felipe da Silva Freitas.