Após ataques do grupo somali, comunidade passou a ser tratada como terrorista; ‘não importa se você é queniano ou não, se você tem documentos de identidade ou não. Isto é o Quênia para nós’, diz jovem somali moradora de Nairóbi
Por: Ngwatilo Mawiyoo do Creative Time Reports.
Anab estava em casa com sua irmã mais nova e a empregada quando a polícia bateu na porta por volta das cinco e meia da manhã. Sua mãe e seus irmãos haviam dado as instruções de não abrir caso eles não estivessem por perto. “Mas eu precisava abrir”, conta ela, “estavam batendo na porta como se fossem quebrá-la”. Três policiais pediram para ver seu documento de identidade. Os três se deram por satisfeitos, no entanto, dois outros policiais voltaram mais tarde. Eles também pediram para ver seus documentos e decidiram revistar a casa.
“Eu estava assustada, já que há rumores em toda parte de que há policiais estuprando mulheres”, lembra-se Anab. Ela, sua irmã e a empregada permaneceram no corredor, do lado de fora do apartamento, enquanto a polícia fazia buscas.
A empregada disse em voz alta: “E se eles roubarem?”.
“E se nos estuprarem?”, respondeu Anab. Quando a busca não resultou em nada, a polícia tentou uma velha estratégia: “Eles pediram chá”.
“Sim. Eu me fingi de boba”, ri Anab. “Eu disse: chá? O chá das quatro horas já acabou. Se vocês esperarem, podemos preparar mais para vocês”.
Três outros policiais voltaram naquela noite, e este grupo ameaçou prender a irmã de Anab, menor de idade, a menos que a família estivesse disposta a suborná-los. Anab conseguiu contorná-los com uma conversa rápida e se sentiu aliviada quando finalmente pôde fechar a porta. Mas uma confusão no corredor a levou a sair novamente.
Uma vizinha de Anab, refugiada somali, tinha permissão para estar no Quênia e estava casada com um queniano. Apesar de seus papéis e status oficial, a polícia a prendeu. Os oficiais gritaram com a mulher: “são vocês que estão destruindo nosso país”.
“O que eu destruí?”, perguntou a mulher.
European Commission DG ECHO/Flickr
Refugiada somali Ahmed Farah, de 27 anos, na vizinhança de Eastleigh, em Nairobi; foto de 2012
A batida na casa de Anab faz parte da Operação de Vigilância Usalama, ou, como é conhecida oficialmente nos círculos do governo, “Operação de Sanitização de Eastleigh”, um ataque preventivo na vizinhança predominantemente somali de Nairóbi onde a família de Anab passou a residir em abril de 2014. O governo do Quênia classificou a operação como um programa anti-terrorismo iniciado após vários ataques do grupo al-Shabaab, incluindo o grande ataque no shopping center Westgate Mall, de Nairóbi. Mas a operação não visa especificamente terroristas; na verdade, toda a comunidade somali foi transformada em bode-expiatório.
A polícia, levando consigo a jovem detida, passou pelos dois próximos apartamentos. Ambos abrigavam refugiados somalis com documentos de identificação da ONU. Os oficiais ameaçaram prender duas das mulheres que ocupavam o local, liberando-as apenas quando ofereceram propina.
Eu me encontrei com Anab pela primeira vez oito meses após a Operação de Vigilância Usalama ter sido iniciada, em dezembro de 2014. Minha amiga Sally nos introduziu quando eu visitei a loja da família de Anab no bairro de Eastleigh, em Nairóbi, também conhecido como Pequena Mogadishu. Sally vive em minha antiga vizinhança, na extremidade de Eastleigh. Na caminhada em direção à loja, passamos por um extenso depósito de lixo e por um lava-rápido repleto de caminhões e ônibus que ocupavam ambos os lados da rua. Na esquina, do lado de fora do Hospital Maternidade Pumwani, surgiu um mercado informal onde se comercializa a carga de khat do dia, vinda do interior do país. O khat éonipresente nas tradições e vida social de algumas comunidades do Quênia, incluindo os quenianos de origem somali, mas o estimulante de potência moderada, embora legalizado, popular e comercialmente importante, é normalmente desaprovado por grupos religiosos e pela classe média. À medida que nos aproximamos de Eastleigh, tornou-se evidente que pessoas da etnia somali predominam na região.
As áreas comerciais de Eastleigh não se parecem nem um pouco com as áreas comerciais dos subúrbios de Nairóbi, e menos ainda com suas contrapartes americanas. Não há nenhuma dança sedutora, nenhuma manequim belamente adornada em vitrines pitorescas que convidam você a adquirir a vida fantasiosa que representam. Aqui, todo tipo de mercadoria barata está simplesmente empilhada, sem qualquer tipo de mostruário. O dinheiro troca de mãos rapidamente, à medida que os passantes compram sapatos, bolsas, roupas de baixo, fórmulas infantis, fraldas, cosméticos, cortinas, ferramentas, ternos — qualquer coisa.
Os olhos de Sally se voltam para um par de sapatilhas azul-marinho na parte da frente da loja, enquanto isso, eu trato de conhecer Anab. Sally tem comprado bolsas e sapatos na loja da família de Anab pelos últimos dois anos. Anab tem vinte e poucos anos, é bonita, sorri facilmente e tem a típica aptidão linguística da juventude de Nairóbi, alternando facilmente entre o inglês e o swahili. Enquanto gaguejo, tentando manobrar meu discurso entre o tom sério e o amigável, explicando que estou escrevendo um artigo sobre Eastleigh, Anab me interrompe para dizer que cursa jornalismo na faculdade. Posso então relaxar e botar para fora o que tenho a dizer. Eu digo a ela que estou tentando entender o que significa ser somali no Quênia neste momento, assim como o que está por trás das estatísticas fornecidas por ONGs, das hashtags do Twitter e do noticiário.
Flickr/CC/Oxfam International
Imagem aérea do campo de refugiados de Dadaab
Uma cliente indecisa entre as versões azul Tiffany ou preta de uma bolsa nos interrompe. Anab a atende enquanto Sally negocia alguns preços com a mãe da jovem, uma mulher séria, com pouco tempo para conversa fiada. O irmão de Anab, um adolescente alto e magro de camisa xadrez, percebe a oportunidade para chamar minha atenção para um par de sapatos. Aponto para uma bolsa de couro sintético azul pendurada na parede dos fundos e, assim, aproveito para entrar na pequena loja e dar uma olhada. Com um discreto sorriso, ele espera até que eu pergunte o inevitável: “Quanto custa?”
Em outubro de 2011, o Quênia invadiu a Somália, supostamente para conter o avanço do al-Shabaab. Na ocasião, o governo queniano parecia empenhado em mesclar as imagens dos refugiados no Quênia com a dos terroristas: à medida que os ataques do al-Shabaab no Quênia se tornavam mais frequentes, o governo parou de registrar requerentes de asilo, iniciando então um plano para realocar a população de refugiados urbanos de 55 mil pessoas das cidades para o campo. Organizações de direitos humanos processaram o governo, a fim de conter a realocação,vencendo nos tribunais em julho de 2013. Quando o al-Shabaab assumiu a responsabilidade pelo ataque no shopping Westgate Mall, em setembro daquele ano, que tirou a vida de 67 pessoas, as suspeitas do governo se voltaram mais uma vez para as pessoas de origem somali, embora a própria comunidade de refugiados não tenha sido poupada de alguns dos ataques a granada que continuaram a abalar o país após o incidente.
Usalama (segurança)
A Operação de Vigilância Usalama foi iniciada no começo de abril de 2014, com o objetivo expresso de “prender indivíduos estrangeiros que estejam no país ilegalmente e qualquer pessoa suspeita de ligações com o terrorismo”. Usalama é a palavra em swahili para segurança, com origem no radical que significa paz.
A operação definitivamente não foi pacífica. Pelo menos 4000 pessoas de etnia somali, bem como estrangeiros de países vizinhos, foram presas. Quando o número de presos superou o de vagas disponíveis nas delegacias de polícia, muitos foram mantidos em um estádio esportivo emKasarani, no subúrbio de Nairóbi. Quando começaram a circular imagens do tumulto e das condições inumanas em Kasarani, onde adultos e crianças foram mantidos presos por semanas sem que houvesse qualquer acusação formal, a hashtag #KasaraniConcentrationCamp surgiu no Twitter.
Mais duas mil pessoas foram levadas aos campos de refugiados já lotados, e mais de 300 foram deportadas para Mogadishu. Em toda parte, haviarelatos sobre a polícia receber propinas para liberar quenianos e não-quenianos, tanto os portadores de documentos oficiais quanto os não-portadores. Embora pessoas de etnia somali fossem historicamente vistas como bandidos, senhores de guerra e piratas, eles agora haviam se tornado caixas-eletrônicos ambulantes e militantes do al-Shabaab.
A “guerra ao terror” americana, posterior ao 11 de setembro, foi uma grande inspiração para o Quênia. Em uma declaração que se seguiu aorecente ataque na Universidade de Garissa, em que atiradores do al-Shabaab mataram 147 pessoas, o vice-presidente William Ruto disse que “A forma como os Estados Unidos mudaram após o 11 de setembro será a forma como o Quênia mudará após Garissa”. Mas o Quênia já é — e há um bom tempo — um país onde comunidades historicamente desprivilegiadas são vitimadas pelas agências de segurança do governo; o que é uma grande ironia, tendo em vista que tais comunidades, estrategicamente posicionadas, poderiam auxiliar nos esforços para a captura de suspeitos genuínos.
Histórico
Há uma dolorosa história representativa do processo de assimilação dos somalis no Estado queniano. Em 1962, os britânicos realizaram um referendo que oferecia aos somalis residentes no norte do Quênia as opções de se juntar ao Quênia ou à Somália, quando o Quênia se tornasse independente. A esmagadora maioria escolheu se unir à Somália, mas o resultado não foi honrado, o que deu origem ao conflito secessionista hoje conhecido como Guerra de Shifta (“Bandido”), de 1963 a 1967. A violência promovida pelo Estado contra pessoas de etnia somali não acabou aí. Em 1980 e 1984, tropas do governo torturaram e mataram um número ainda hoje desconhecido de residentes somalis do Quênia. Segundo o governo, o número de vítimas do Massacre de Wagalla de 1984 é de 57, mas testemunhas estimam algo em torno de 5 mil vítimas. (Uma dessas testemunhas, o jornalista queniano da Al Jazeera Mohammed Adow, era um garoto quando sua família foi deslocada, fugindo do Massacre de Garissa em 1980. Seu documentário Ainda Não Sou Queniano lista as respostas do Quênia aos recentes ataques terroristas, oferecendo um relato pessoal sobre as perdas e a resiliência dos quenianos-somalis desde a formação do país).
O colapso da Somália, em 1991, é uma parte crucial da história: quando a guerra civil tomou conta do país, um grande fluxo de refugiados chegou ao Quênia, muitos deles acampando em Dadaab, nas imediações de Garissa, a 128 quilômetros da fronteira entre Quênia e Somália. O acampamento de Dadaab, criado pela ONU, deveria abrigar no máximo 90 mil pessoas, mas em 2012, quando uma crise de alimentos particularmente grave afetou a região, meio milhão de refugiados viviam nele, tornando-o o maior acampamento de refugiados do mundo.
Os residentes da região, em sua maioria quenianos de origem somali, sofreram muito com os danos ambientais. Desde 2011, juntamente com a minoria não-somali, eles têm sido vítimas de vários ataques menores do al-Shabaab, frequentemente em mercados e igrejas, incluindo o mais recente deles, que matou 14 pessoas este mês na cidade de Mandera, no norte do país. De fato, não foi nenhuma surpresa que o alvo do ataque da semana de Páscoa em abril deste ano tenha sido uma universidade queniana em Garissa, levando-se em conta o número de atentados que esta cidade e a região adjacente já testemunharam, bem como a fronteira facilmente cruzada entre Quênia e Somália, mesmo durante a guerra.
Contudo, a relativa facilidade com a qual as ambições de tantos jovens foram destruídas neste ataque, o mais letal já perpetrado pelo al-Shabaab no Quênia, atingiu o âmago da nação.
Levando-se em conta este histórico nacional, abusos de poder durante a Operação de Vigilância Usalama, documentados por várias fontes, podem parecer pouco significativos. Em julho de 2014, três meses após o início da operação, a Autoridade Independente de Supervisão Policial (IPOA, na sigla em inglês) publicou evidências de que a polícia agiu de maneira inapropriada durante as investigações.
A IPOA deu ao inspetor geral 90 dias para responder às acusações e tomar providências, mas o período transcorreu antes que ele emitisse qualquer resposta. O caso ainda não foi encerrado.
A Operação de Vigilância Usalama não foi uma anormalidade, mas a perpetuação de práticas antigas que perduram no presente. Um relatório de maio de 2013 da Human Rights Watch, “Vocês são todos terroristas“, detalhou os atos de brutalidade, que “incluíram estupros, espancamentos, roubo, extorsão e detenção arbitrária em condições desumanas e degradantes”, durante a operação policial iniciada um dia após um ataque terrorista em Eastleigh, em novembro de 2012.
Mil pessoas foram presas e quase todas as 101 entrevistadas pela Human Rights Watch alegaram ter sofrido extorsão. Cinquenta relataram abuso sexual. Sem mudanças significativas na forma como as agências de segurança operaram durante os três meses entre as duas operações, não se trata de forçar a imaginação presumir que o relatório da Operação de Vigilância Usalama possa produzir resultados semelhantes.
Quase um ano após a Operação de Vigilância Usalama, vívidas histórias sobre o que aconteceu durante as investigações continuam a circular na comunidade de Eastleigh. Anab me contou duas delas: a primeira é sobre como uma mulher grávida entrou em pânico quando a polícia veio até sua residência e caiu da sacada do prédio enquanto tentava escapar, perdendo seu bebê.
Uma segunda mulher, mãe de um bebê de quatro meses de idade, foi presa do lado de fora de casa por não carregar seus documentos, com o filho dentro da residência. A polícia não permitiu que ela voltasse para casa ou solicitasse que um membro da família tomasse conta da criança e, durante a semana em que permaneceu sob custódia, o bebê morreu de fome.
Anab suspira enquanto conta estas histórias sobre o bairro: “Não importa se você é queniano ou não, se você tem documentos de identidade ou não. Isto é o Quênia para nós”.
Radicalização
A Operação de Vigilância Usalama monopolizou a atenção do país por dois meses. Muitos criticaram a forma como ela foi executada, especialmente depois que se tornou público que as forças de segurança estavam mais interessadas em extorquir a população do que encontrar terroristas. Embora o governo tenha declarado a operação um sucesso, nãoforam oferecidos detalhes sobre qualquer suspeito de terrorismo que a polícia tenha conseguido prender ou sobre qualquer tipo de armamento encontrado. De fato, todos os dados publicados diziam respeito à nacionalidade dos detidos, e não a suspeitas de ligação com o terrorismo. Um ano após a publicação do relatório da IPOA sobre a operação, as batidas policiais continuavam, longe da atenção do público.
No discurso surgido desde a violência posterior às eleições de 2007 e 2008, não é frequente a menção explícita a um grupo étnico no noticiário. A nova etiqueta surgiu a partir do reconhecimento de como a mídia incitou a violência das comunidades umas contra as outras naquela eleição. Aprendemos, ou fingimos aprender, que as palavras têm um poder letal, especialmente quando saídas das bocas de pessoas poderosas que dispõem de um público grande. Pessoas de etnia somali parecem ser a exceção a esta etiqueta e são frequentemente distinguidas de outros quenianos na imprensa e em conversas informais. Ao mesmo tempo, raramente se toma o cuidado de distinguir entre quenianos de origem somali, refugiados somalis e militantes do al-Shabaab. E à medida que as opções de recrutamento do al-Shabaab no Quênia são expandidas, incorporando somalis-quenianos insatisfeitos, torna-se cada vez mais claro que esta tendência a marginalizar parte da população planta as sementes da radicalização.
Temos também visto figuras públicas claramente xenófobas condenando toda a comunidade somali. Poucos dias antes do início da Operação de Vigilância Usalama, Mutuma Mathiu, diretor de gerenciamento do Daily Nation, um dos mais respeitados jornais do país, escreveu em um editorial: “Todo pequeno e insignificante somali tem um grande sonho: explodir a todos nós, destruir nossos edifícios e assassinar nossas crianças”. Mais de um ano mais tarde, o artigo de Mathiu ainda está disponível na Internet, e a publicação ainda não se desculpou. Se já não fosse ruim o suficiente que uma parcela significativa das agências de segurança e das autoridades do Quarto Poder estivessem se portando desta maneira, quem poderá culpar a gente comum por seus preconceitos?
Queniano pede fim da discriminação entre povos irmãos:
Xenofobia
Um dia, em 2014, Anab subiu em um matatu, ou micro-ônibus, no centro de Nairóbi, para visitar uma amiga do outro lado da cidade. O veículo estava quase cheio e pronto para partir. “Eu era a única somali”, diz. “Mas quando me sentei, as pessoas começaram a deixar o matatu”.
Ela quase não conseguiu acreditar no que presenciou, como conta em seu relato; apenas três homens e alguns estudantes permaneceram. Matatus não têm um horário certo para sair; os motoristas esperam até que o veículo esteja cheio. Sendo assim, quando um passageiro desembarca, isto significa que todos os que permaneceram precisarão esperar mais tempo, o que causa prejuízo ao proprietário. Anab ficou preocupada, pensando em qual seria a atitude do motorista. De fato, ele viu o que aconteceu e somou dois com dois ao notar a presença de uma somali, Anab.
“O que foi, bonita? As pessoas foram embora por sua causa?”, perguntou. “Deixe-as ir; outras pessoas virão”.
Anab disse que apenas adolescentes encheram o matatu.
“Um amigo meu vive na cidade de Thika, vizinha a Nairóbi”, conta Anab. “Este ano, ele entrou em um matatu para ir para a faculdade. Todo mundo saiu. Todos. Ninguém ficou, nem mesmo os adolescentes. O motorista disse a ele: ‘Volte para casa'”.
A história machuca Anab especialmente porque ela, assim como seu amigo, nasceu e cresceu em Thika, e sempre amou a cidade. Mas o preconceito enfrentado por ela e seus semelhantes está mudando seus sentimentos pelo lugar. “Este é o meu país, mas ainda assim sou tratada como uma estrangeira”, lamenta.
Pergunto a ela se é possível dizer que aspecto de sua identidade é responsável pelo aumento das suspeitas por parte da comunidade queniana: o fato de ser muçulmana ou de ser somali.
“Ambas as partes”, responde. “Mas o fato de eu ser somali está se tornando um agravante. Mesmo que eu tire o meu véu, ainda assim vou me parecer com uma somali. Isto é um fato”.
Em dezembro de 2014, o Quênia aprovou uma série de leis de segurança. As leis aumentaram o poder do governo, diminuíram os direitos do cidadão, impuseram limites drásticos ao número de refugiados permitidos no país e introduziram penas graves para vários delitos. O presidente Kenyatta se dirigiu aos críticos das novas leis em seu discurso do Dia da Independência, dizendo: “Nenhuma liberdade está sendo tirada, a menos que você seja um terrorista”. A nova lei permite que suspeitos sejam mantidos em cárcere sem acusações durante até 90 dias. Ela deu às agências do governo autoridade ilimitada para conduzir buscas em residências particulares e para interceptar comunicações; publicações e blogueiros podem ser processados por publicar conteúdo classificado como incitação ao terrorismo.
Mais perseguição
Em junho, o presidente Kenyatta ordenou que o toque de recolher seja suspenso durante o Ramadã, um grande alívio para a população muçulmana de cinco condados, incluindo Garissa, que tem vivido sob o toque de recolher há vários meses. A nova lei, contudo, aumentou em dez vezes o tempo de prisão para os que violarem o toque de recolher.
Embora muitas cláusulas da lei ainda estejam em efeito, em fevereiro, oito delas foram revogadas pela Suprema Corte do Quênia, incluindo as que limitam o número de refugiados no país, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão.
Contudo, os agentes do governo parecem sempre determinados a encontrar novas formas de atacar a comunidade somali. Nos dias que se seguiram ao ataque de Garissa, o vice-presidente do Quênia ordenou à ONU que o acampamento de Dadaab fosse fechado e cerca de 350.000 refugiados deportados, argumentando que o local havia se tornado um reduto do al-Shabaab. A comunidade internacional conseguiu, até o momento, convencer o governo a manter o acampamento.
O governo fechou 13 hawalas, empresas especializadas na transferência de fundos usadas por toda a diáspora somali, dizendo que terroristas estão usando o sistema para financiar suas atividades. Embora as hawalas tenham de fato sido investigadas internacionalmente nos últimos anos, é também verdade que famílias de toda a Somália literalmente dependem deste sistema, assim como pessoas de etnia somali no Quênia, sejam cidadãos ou refugiados. Até mesmo agências de auxílio humanitário as têm utilizado. As hawalas são a forma pela qual a mãe de Anab envia dinheiro à China quando precisa reabastecer seu estoque. O banimento foi suspenso no final de junho.
Tema não interessa à imprensa
No início de 2015, nove meses após a Operação de Vigilância Usalama e três meses antes do ataque de Garissa, eu e Anab nos encontramos mais uma vez. Ela me disse como, na noite anterior, a polícia havia estacionado um caminhão na rua de sua casa em Eastleigh e levado todos os homens somali que ali encontraram. Levaram garotos, jovens e idosos. “Nós estávamos aqui na varanda”, explica, gesticulando. “O caminhão ficou cheio, eles o conduziram não sei até onde e, em seguida, voltaram para buscar mais gente”.
Nos meses que se seguiram ao ataque em Garissa, as coisas pioraram em Eastleigh, diz Anab. A despeito do entusiasmo todo quanto à criação das novas leis de segurança, os policiais continuaram exigindo propinas enquanto atravessavam a vizinhança revistando as residências, desta vez em operações sem nome oficial ou hashtag. Para a mãe de Anab, a última gota foi quando tentaram prender seu irmão, menor de idade. Desde então, a família deixou Eastleigh e está finalmente residindo em um local mais próximo do centro. Estão a menos de três quilômetros de Eastleigh, mas a polícia ainda não chegou até a porta de casa.
Esses fatos não chegam ao noticiário. Nem mesmo minha amiga Sally, que vive a apenas alguns minutos de caminhada até Eastleigh, sabia das batidas policiais; o que se dirá de minha mãe, que vive do outro lado da cidade? Visitei o cerimonial cristão em homenagem às vítimas do ataque de Garissa, onde apenas uma única frase de todas as orações foi dirigida aos nossos compatriotas muçulmanos. Diante de nosso luto e de nossas tentativas de aliviar a dor, nós nos esquecemos do luto e da dor dos somalis e de outros muçulmanos. Este é o privilégio ao estilo queniano: muita energia é necessária para remover a proverbial trave em nossos olhos.
Ngwatilo Mawiyoo é poeta, escritora e atriz. Sua primeira coletânea de poemas, “Blue Mothertongue”, foi publicada em 2010, seguida pelo álbum “Introducing Ngwatilo”, de 2011.
Fonte: Ópera Mundi