Por Marcelo Gomes.
“Disseram que eu formei. Na verdade, ano passado todo eu só recebi algumas atividades da escola. Acabou o ensino médio para nós. Agora, a gente fica à espera de um emprego como babá ou faxineira”.
O relato é de Laisa Soares, de 18 anos. Nessa idade, enquanto muitos se preparam para entrar em universidades, a realidade dela e dos demais jovens de Moinho Velho, quilombo localizado no município de Senhora do Porto, no Sudeste de Minas Gerais, é oposta.
Essa comunidade foi uma das três visitadas pela Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais (N’Golo) e pelo Brasil de Fato no último sábado (6).
A N’Golo visitou o quilombo para finalizar um projeto de gestão territorial e ambiental, executado em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA) e a organização Dedicated Grant Mechanism for Indigenous Peoples and Local Communities (Mecanismo de Doação Dedicado aos Povos Indígenas e Comunidades Locais, na tradução em português). A parceria resultou em uma cartilha sobre os direitos quilombolas.
Educação
“Como vou me preparar para o Enem? O terceiro ano eu praticamente não fiz. Simplesmente me mandaram algumas atividades e me aprovaram”, explica Laisa Soares.
Em razão da pandemia do novo coronavírus, as escolas optaram por aulas online, inacessíveis em Moinho Velho e em tantas outras comunidades quilombolas do estado em razão da falta de internet adequada. “A gente acessa a internet aqui pelo celular. Às vezes dá para ver alguns vídeos no YouTube e também dá para mexer no WhatsApp. Só”, conta a estudante.
A pandemia acentuou um velho problema na comunidade: a não continuidade nos estudos. Na região, as escolas não preparam alunas como Laisa para ingressar na graduação: a estudante desconhecia seu direito à política de cotas e aos auxílios financeiros concedidos pelas universidades para estudantes de baixa renda.
Um dos objetivos da cartilha da N’Golo é suprir desconhecimentos como esse. “Eu gostaria de tentar engenharia agronômica, mas acho que vai ser impossível para mim”, avalia a quilombola. Dos 70 integrantes no quilombo Moinho Velho, nenhum possui ensino superior e pouquíssimos concluíram o ensino médio.
Pandemia
Moinho Velho fica a cerca de 20 quilômetros do centro de Senhora do Porto. A comunidade não recebeu visitas periódicas de agentes de saúde para divulgar informações sobre a covid-19, que já matou mais de 266,3 mil brasileiros. A pandemia não impediu a continuidade dos trabalhos realizados no quilombo, a sua maioria agricultura de subsistência e prestação de serviços para fazendeiros da região.
Por parte das autoridades, não há um mapeamento de como estão os quilombolas nesta pandemia. “Tem um apagão de dados oficiais. Isso é um dos efeitos do racismo”, observa Agda Marina Moreira, assessora da Federação N’Golo e pesquisadora em saúde pública.
A plataforma online Quilombo Sem Covid-19, mantida pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e Instituto Sócio Ambiental (Isa), mostra que, até a última segunda-feira (8), 5.013 quilombolas foram infectados e 212 morreram em decorrenção da covid-19.
O Rio de Janeiro lidera o total de óbitos dessa população, com um total de 30 registros. Em Minas Gerais são duas mortes confirmadas, ambas em Contagem, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Também em decorrência da escassez de informações precisas sobre a população quilombola no país, não há como dimensionar o que significam esses números em relação a todos os quilombolas.
Perda de renda
Além dos danos à saúde, a pandemia impôs ao país consequências econômicas. Nesse aspecto, o quilombo Jorges de Água Branca, a 15 km de Peçanha, também na região do Vale do Rio Doce, foi um dos que mais sofreu.
Os cerca de 100 quilombolas têm uma diversificada produção na agricultura, que é sua maior fonte de renda. Arroz, inhame, cenoura, mandioca e milho são os principais itens produzidos. Toda a produção é vendida em feiras de cidades próximas, que estão paralisadas mediante as políticas de isolamento social.
Parte dos moradores de Jorges de Água Branca requisitaram o auxílio de R$ 600,00 concedido pelo governo federal em 2020. Aposentados, a maioria dos integrantes do quilombo, não puderam receber o benefício. Os quilombolas mais velhos complementam a aposentadoria com a agricultura.
“Todos tiveram uma grande perda de renda aqui, e a gente não sabe como vão ser os próximos meses”, explica a quilombola Laudicéia Oliveira Carvalho, de 42 anos, que acredita na omissão de parte das autoridades.
“A gente praticamente não recebeu a visita de agentes de saúde. O que algumas famílias receberam foram cestas básicas e máscaras. Não fomos informados também sobre o processo de vacinação. Nós que corremos atrás”, completa.
Propriedade definitiva das terras
Cada quilombo possui distintos desafios e características culturais. A principal reivindicação de todos é a propriedade definitiva das terras. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Minas Gerais possui 1.027 localidades que abrigam quilombolas. No país, são 6.023 espalhadas por 1.672 municípios.
De todos os quilombos, menos de 8% deles são territórios oficialmente regularizados. Em Minas, esse percentual não chega a 3%. Apenas 22 comunidades quilombolas são regularizadas no estado.
Depois da Bahia, Minas Gerais concentra o maior número de quilombos do país. Januária, município do Norte mineiro, abriga o maior número de localidades quilombolas no Brasil, com um total de 29. Os quilombos visitados pela reportagem do Brasil de Fato não estão entre os regularizados.
Os quilombolas descendem direta ou indiretamente dos agrupamentos de negros fugidos da escravidão durante o Brasil Colônia e Império. O reconhecimento das localidades quilombolas somente ocorreu por parte do Estado brasileiro há 32 anos, com a Constituição Federal. Em razão da propriedade não regularizada, abundam conflitos entre quilombos, empresas e fazendeiros.
A Constituição de 1988 prevê que o poder público tome o terreno quilombola sob domínio de um terceiro, mediante desapropriação feita por intermédio de indenização. Embora não seja competência exclusiva, o governo federal por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o grande responsável por essa regularização.
Conflitos
A posse não definitiva abre brecha a uma série de violações de direitos, conforme o Brasil de Fato relatou em reportagem sobre a primeira viagem da N’Golo. O quilombo São Félix enfrenta uma situação exemplar.
Uma plantação de eucaliptos circunda toda a comunidade, pertencente ao município Cantagalo, no Vale do Rio Doce. Para facilitar o deslocamento da produção, um fazendeiro vizinho construiu uma estrada no território da comunidade, segundo os moradores, sem ao menos consultá-los, passando por cima de uma sepultura, o que viola seu direito ancestral.
“Essa estrada passa aqui por dentro, e a gente não pode falar nada com medo de retaliação e também com receio deles falarem: ‘ah, mostra que a terra é de vocês’”, conta Joseane Pascoal, de 36 anos.
Durante a reunião com a associação de moradores do quilombo São Félix, integrantes do N’Golo explicaram que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garante o direito dos quilombolas de serem consultados sobre projetos de infraestrutura em suas terras.
“Agora eu entendo que meu direito foi violado”, completa a quilombola Joseane Pascoal.
Em Moinho Velho, os moradores também convivem com um conflito semelhante, pois a plantação de eucaliptos rodeia a localidade. “Isso é um grande problema aqui. A gente precisa instalar uma caixa de água próxima de um poço artesiano para aumentar o abastecimento no quilombo, mas o caminhão tem que passar por dentro das fazendas. O dono não deixou. Até hoje estamos sem resolver isso”, expôs Ramão Silva, de 64 anos.
Os quilombolas alegam que, com o passar do tempo, fazendeiros foram alongando as cercas de suas propriedades, e o terreno do quilombo se reduziu. “A gente sabe que poderíamos plantar não apenas para subsistência, mas para vender e ganhar renda, mas como fazer isso se não temos terra?”, completa Silva.
O certificado de reconhecimento de quilombos, documento que algumas comunidades quilombolas em Minas possuem, é o primeiro passo à titulação definitiva. Logo, uma área não regularizada, mas de posse desse certificado, não é sinônimo de terra sem dono. Em razão disso, a intromissão nos quilombos, sem consentimento, é ilegal.
Na região Centro-Oeste e Rio Doce, ao longo da viagem, a paisagem é preenchida por empreendimentos de eucalipto. Geralmente, os primeiros a sofrerem com o avanço de tais atividades são os povos tradicionais, como os quilombolas.
Terras devolutas
Em Minas Gerais, a maior parte das áreas em que há conflitos fundiários estão em terras devolutas do governo mineiro, segundo a Federação N’Golo. Tratam-se de imóveis pertencentes a União, mas sem destinação específica.
Segundo o movimento quilombola, o Estado permite a grandes fazendeiros o usufruto da terra ao invés de amparar os quilombos. À reportagem, o governo de Minas não soube informar precisamente a situação das terras devolutas. Não informou a quantidade delas e seu uso.
Cálculos da ONG Terra de Direitos atestam que, no atual ritmo de titulações, seriam necessários 1.170 anos para que todos os 1.716 processos de propriedade definitiva dos quilombolas abertos no Incra sejam concluídos.
Trabalho da N’Golo
Além da entrega das cartilhas, a federação realizou uma roda de conversa nos quilombos em que esteve, com o objetivo de discutir o rol de direitos dos quilombolas: 26 ao todo, desde artigos constitucionais até normativas.
A Federação N’Golo irá também disponibilizar R$ 2,5 mil para as comunidades visitadas atuarem na prevenção e combate à pandemia. O recurso é oriundo de doações que foram realizadas por meio de “vaquinhas” online e por um auxílio emergencial disponibilizado pelo CAA/DGM Brasil às entidades com as quais possuem projetos em andamento.
As viagens da entidade não terminaram. A conclusão será no próximo fim de semana, com idas em quilombos e um encontro presencial com líderes quilombolas para a finalização das atividades.