Com bênção de Bolsonaro, afiliadas de SBT, Record e RedeTV terão agência em Brasília

Rede Regional de Notícias é questionada por “falta de distância crítica” em relação ao governo federal

“Os empresários não esconderam a pretensão de servir de linha auxiliar dos meios estatais de comunicação”, critica pesquisador do Observatório da Ética Jornalística – Divulgação

Por Daniel Giovanaz.

Empresários da comunicação do Sul do país apresentaram ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no último dia 7 a Rede Regional de Notícias (RRN), agência que terá a tarefa de “produzir e distribuir conteúdo a partir de Brasília para emissoras regionais de rádio e TV de todo o Brasil”.

A Rede não foi lançada oficialmente, mas já desperta críticas de representantes da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), do coletivo Intervozes e do Observatório da Ética Jornalística (ObjETHOS). Eles questionam o “aparente alinhamento” dos veículos com um governo responsável por ataques à liberdade de imprensa e declarações agressivas contra profissionais da comunicação.

A RRN, que deve começar a funcionar no fim de outubro, é uma iniciativa da Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e TV (Acaert) com apoio do Sindicato das Empresas de Rádio e TV de Santa Catarina (Sert-SC).

Os membros fundadores são o Grupo ND e o Grupo RIC, que reúnem emissoras afiliadas da Record em Santa Catarina e no Paraná, a Rede Pampa, que possui 17 rádios e a TV afiliada da RedeTV no Rio Grande do Sul, e a Rede Massa, fundada pelo apresentador Ratinho, que possui 53 rádios e a TV afiliada do SBT no Paraná.

Também participou da reunião da última semana, em Brasília, o ministro das Comunicações Fábio Faria – genro de Sílvio Santos, proprietário do SBT. Segundo o colunista Moacir Pereira, do Grupo ND, “a audiência, prevista para 30 minutos, teve duração de uma hora e meia num encontro descontraído entre os participantes”.

O projeto não se restringe a afiliadas das três emissoras, mas as condições para integrar e distribuir conteúdo da Rede não foram divulgadas.

Repercussões

“O fato de essas empresas irem ao ministro das Comunicações, irem ao presidente da República, que abre sua agenda para esse tipo de compromisso, dá entender que há intenção de fazer um alinhamento com o governo federal”, analisa Maria José Braga, presidenta da Fenaj.

“Isso, do ponto de vista da democracia, é bastante grave. Porque o jornalismo tem a função de levar informação crítica à sociedade, e não aplaudir este ou aquele governo”.

Para a dirigente, “essa articulação empresarial significa menos diversidade e menos pluralidade na informação.”

Rogério Christofoletti, professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do ObjETHOS, lembra que a formação de consórcios de empresas de comunicação é cada vez mais comum. O pesquisador cita, por exemplo, veículos que se associam para produção de jornalismo investigativo ou, no caso brasileiro, para atualizar os números de mortes por covid-19.

No caso da RRN, “o que chama atenção é a falta de distanciamento crítico, de compromisso com uma informação que não seja desinteressada”, analisa o pesquisador. “Os empresários do setor não esconderam essa pretensão de servir de linha auxiliar, servir de extensão dos meios estatais de comunicação”, completa.

“Papel imparcial”

Diante das críticas, empresários e diretores de veículos que integram a RRN têm ressaltado seu compromisso “com a imparcialidade e a independência”.

Diretora da Rede Pampa, Christina Gadret informou ao Brasil de Fato que “o foco é disponibilizar conteúdos jornalísticos especialmente às emissoras de rádio e TV e portais de notícias regionais, facilitando o acesso destes veículos ao que acontece no dia a dia de Brasília”.

Ela ressalta que o projeto vai gerar empregos para jornalistas e fará “chegar as informações de projetos, propostas, ações e decisões geradas pelos poderes e autoridades de forma direta, através da imprensa local, com visão jornalística regional.”

Gadret define a RRN como uma “nova estrutura jornalística independente”, que “deve ser valorizada pelo seu papel imparcial – sem ligação a governos ou partidos políticos”.

Produtor executivo do Grupo RIC no Paraná, Leonardo Petrelli disse após a reunião com Bolsonaro que a RRN visa corrigir uma “defasagem de informações pertinentes à nação entregues de forma regional.”

“Você ter o seu locutor de confiança, com notícias em primeira mão, com a confirmação de se é verdade ou fake news [notícia falsa], é um diferencial”, exemplificou Gabriel Massa, presidente da Rede Massa, filho do apresentador Ratinho e irmão do governador do Paraná, Ratinho Jr. (PSD).

Marcelo Petrelli, presidente do Grupo ND, ressaltou após o encontro em Brasília que Bolsonaro compreendeu e enalteceu os objetivos do projeto.

“O presidente percebe claramente o perfil da mídia regional, o perfil do jornalista, do empresário, desse círculo virtuoso que é essa mídia, que lá na ponta tem a influência, a audiência, a credibilidade, e principalmente a relação com a sociedade”.

A reportagem procurou Petrelli para obter mais detalhes sobre a proposta. O empresário não concedeu entrevista e recomendou que o Brasil de Fato ouvisse a direção de conteúdo da Acaert, que poderia falar em nome da Rede.

A direção de conteúdo da Acaert informou à reportagem que “o projeto ainda está em fase de estruturação” e que responderá aos questionamentos após o lançamento oficial da RRN.

Histórico

Para Mariana Martins, jornalista e integrante do coletivo Intervozes, “um projeto que precisa da bênção do presidente e do ministro já começa errado”.

“Os porta-vozes da reunião chegam a falar em produzir notícias ‘sem filtro’. Só que já existe a comunicação governamental e institucional para fazer isso. O papel da mídia comercial deveria ser outro”, analisa.

Ela lembra que um ecossistema midiático plural depende do equilíbrio entre os sistemas público, comunitário e privado, como previsto na Constituição.

“O governo já atacou a comunicação pública a ponto de descaracterizá-la. E, agora, eles avançam a ponto de descaracterizar o sistema comercial de comunicação”, ressalta.

Maria José Braga afirma que o alinhamento entre poder político e mídia é grave em qualquer contexto. Porém, a trajetória de Bolsonaro e o histórico de seu governo tornam o cenário mais preocupante.

Dados organizados pela Fenaj mostram que o presidente fez 299 ataques ao trabalho jornalístico entre janeiro e outubro de 2020. A maioria das ocorrências, 259, foram categorizadas como descredibilização da imprensa. Também houve 38 ataques pessoais a jornalistas e 2 ataques contra a própria Federação.

“Há uma preocupação maior em relação ao governo Bolsonaro pelo seu perfil, que extrapola o conservadorismo. É um governo reacionário, de ultradireita, que busca enfraquecer a organização social, sindical e a oposição, e trabalha fortemente contra as instituições democráticas”, lembra Braga.

“Por isso, uma ação de alinhamento de um grupo ou vários grupos de mídia realmente comprometem a já ameaçada liberdade de expressão no Brasil”.

Para o professor da UFSC, não há razões que justifiquem um projeto como a RRN, porque o governo federal já dispõe de meios de comunicação estatais.

“O governo Bolsonaro, desde que tomou posse, vem tentando asfixiar o jornalismo profissional, independente, do ponto de vista econômico e político, vem aparelhando a EBC [Empresa Brasil de Comunicação]”, analisa Christofoletti.

“Agora, temos um grupo de empresários que são servis, submissos ao governo federal, se prestando a fazer assessoria para os poderes, quando deveriam fiscalizá-los, investigá-los, buscar uma distância crítica para, aí sim, levar informação à população”.

Os idealizadores da RRN pretendem agendar uma nova reunião ainda em outubro, desta vez com empresários de grupos de comunicação de outras regiões do país, além dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, antes de inaugurar o projeto oficialmente.

Edição: Leandro Melito.

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