Oitava economia do mundo e detentor de cerca de 20% da água doce do planeta, o Brasil ocupa uma das últimas posições emsaneamento básico.
Perto de 5 milhões de habitantes ainda não têm banheiro em casa. Só metade da população tem acesso à rede de coleta de esgoto, enquanto 61% dos resíduos, sem tratamento, são despejados diariamente em rios, lagos e outras áreas.
Um quinto dos brasileiros não recebe água tratada e 13% das casas dependem de açudes, caminhões-pipa ou mananciais nas proximidades. Para piorar, a escassez é um drama cada vez mais frequente no cotidiano das grandes cidades.
Para universalizar os serviços de água e esgoto seriam necessários investimentos de cerca de 300 bilhões de reais em 20 anos, ou 15 bilhões anuais até 2033, como estabelece o Plano Nacional de Saneamento, meta considerada difícil de ser atingida até pela própria União, pois o investimento público e privado não passa de cerca de 10 bilhões de reais por ano.
Reverter o quadro exigirá a união de esforços entre governos e empresários, além da conscientização dos consumidores.
A crise hídrica expôs os gargalos de abastecimento no País. A oferta é abundante na Região Norte, distante dos grandes centros consumidores do Sul e Sudeste, lembra o secretário nacional de Saneamento do Ministério das Cidades, Paulo Ferreira.
A racionalização do uso, equipamentos mais eficientes e a melhora da oferta ganham importância, assim como o planejamento urbano e a política de uso e ocupação do solo, segundo ele. Há outro problema: a população não enxerga a água como um bem escasso e que tende a se tornar vez mais caro. “É preciso que as concessionárias capturem esse sentimento da população”, destaca Ferreira.
Além da conscientização, será preciso ampliar os recursos destinados ao segmento. Depois de duas décadas de paralisia, os gastos com saneamento básico mudaram de patamar nos últimos dez anos. Em 2003, o volume de recursos aplicados chegou a 5,3 bilhões de reais, segundo estimativa da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base, enquanto nos últimos dois anos chegou perto de 10 bilhões de reais, ainda aquém do necessário.
O desafio de universalizar os serviços em 20 anos é difícil de ser atingido, admite Ferreira. Mudar o cenário atual levará tempo. Mais de 105 milhões de brasileiros não são servidos por redes de esgoto.
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), diz Ferreira, injetou cerca de 80 bilhões de reais a mais no setor. Há um saldo de 40 bilhões de reais, metade por meio do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e metade do Orçamento da União.
O ajuste fiscal impede, porém, a liberação rápida da quantia reservada no Orçamento. O contingenciamento provocou um alongamento dos prazos das obras financiadas.
Para buscar maior eficiência no setor, o governo federal quer envolver os municípios no planejamento das ações. Até 31 de dezembro, as prefeituras devem enviar seus planos de saneamento, requisito essencial ao acesso a recursos de bancos estatais.
Das 750 cidades com mais de 50 mil habitantes, perto de 600 entregaram seus relatórios. “Esse é um insumo importante para que os gestores saibam onde e quando investir”, afirma o secretário.
Um entrave é a incapacidade de boa parte das 25 companhias estaduais de tomar empréstimos de bancos públicos como o BNDES e a Caixa Econômica Federal.
“Cerca de apenas dez dessas empresas têm capacidade de obter financiamento”, afirma Roberto Muniz, presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Água e Esgoto. O governo federal estuda formas de apoiar as companhias na melhora da gestão.
Um exemplo está em Alagoas: a Casal, empresa local, convive com um passivo de cerca de 1 bilhão de reais e patrimônio líquido negativo, o que a impede de tomar empréstimos de bancos públicos. Para ampliar a cobertura de esgoto na zona urbana de Maceió dos atuais 35% para 70% em quatro anos, a companhia aposta em Parcerias Público-Privadas.
Até o momento, duas foram firmadas e outras estão em fase de estudo. “A ideia é atender 100% da área urbana de Maceió em oito anos”, projeta Clecio Falcão, presidente da Casal.
Quem tem dificuldade de obter contrapartida para PPPs recorre à alternativa de fechar acordos de desempenho com a iniciativa privada, que seria remunerada por projetos que contemplem melhoras operacionais com aumento de receita.
O pagamento sairia de parte dos ganhos obtidos com as medidas adotadas pelas contratadas. O caixa da concessionária alagoana sofre ainda os efeitos de dois fatos: a inadimplência atinge 10% das contas de água e muitos clientes atrasam o pagamento.
E há 20 anos a tarifa não remunera a parcela de investimentos, apenas cobre a operação e a manutenção dos serviços. “Há uma cultura de que a água é um bem abundante e barato”, afirma Falcão.
O caixa do setor recebeu um aperto maior neste ano, com a alta da energia elétrica, um dos dois maiores custos operacionais das empresas, responsável por até 15% das despesas de uma concessionária. Segundo Robson Salazar, diretor de gestão corporativa da Saneago, concessionária em Goiás, a alta das tarifas quase dobrou o gasto com o insumo.
Em dezembro de 2014, a despesa mensal com luz era de cerca de 10 milhões de reais. Em outubro, pulou para 18 milhões. Em 12 meses, a elevação da tarifa de energia deve consumir quase 100 milhões de reais.
“A alternativa é reestruturar nossas dívidas, reduzir o número de diretorias, extinguir cargos gratificados, revisar contratos e tarifas, mas o esforço não foi suficiente até agora para cobrir a alta da energia”, observa.
O caixa da empresa também tem sido prejudicado pela desaceleração econômica. A inadimplência saltou de 3% para 5% dos consumidores, enquanto o porcentual de quem paga a conta com atraso passou de 15% para 40%, o que tem impacto sobre o fluxo de caixa de curto prazo.
De olho em formas para ampliar a capitalização, a Saneago acaba de se tornar a primeira empresa do segmento a lançar debêntures incentivadas de infraestrutura. A operação será liquidada em 2016.
Ter acesso a capital será essencial. De acordo com Roberto Lima, sócio das áreas deproject finance e infraestrutura e relações governamentais do Souza Cescon, as debêntures de infraestrutura, que têm isenção de Imposto de Renda para os investidores, podem ser uma opção interessante em um momento em que as fontes oficiais de recursos estão perto do limite. “Pode ser que esse seja um papel utilizado em complemento a outros.”
O capital não estatal começa a ganhar espaço no setor, seja pelas concessões, seja pelas PPPs. O setor privado participa de negócios em cerca de 300 cidades e atende, direta ou indiretamente, 30 milhões de brasileiros. Ao menos mais 10 bilhões de reais em PPPs poderão sair do papel nos próximos anos.
Em Pernambuco, a Compesa, concessionária que atua em mais de 150 municípios do estado, assinou, em 2013, o início das obras da maior PPP do setor. São 4,5 bilhões de reais em investimentos e contratos com duração de 35 anos. O projeto pretende elevar o índice de cobertura de esgoto de 30% para 90%, em 12 anos, em 15 municípios da região metropolitana do Recife.
Serão beneficiados 3,7 milhões de habitantes. Dos recursos a serem aplicados no sistema de esgoto, 24% virão dos cofres públicos e 76%, pouco mais de 3,1 bilhões de reais, serão do consórcio vencedor. A taxa de retorno estipulada no projeto foi estimada em 8,41%.
“O setor tem uma particularidade: são milhares de contas de água e esgoto que podem ser usadas como recebíveis, o que pode financiar uma PPP, então esse é um mecanismo que pode ganhar apelo no contexto atual”, afirma Bruno Werneck, sócio do Mattos Filho Advogados.
Para Hamilton Amadeo, presidente da Aegea, concessionária que detém mais de 40 contratos no setor, o contexto atual combina crise hídrica, caixas esvaziados nos estados e municípios e a exigência de as prefeituras executarem planos de saneamento locais para terem acessos a recursos de bancos públicos. “Os gargalos só serão reduzidos com a participação do capital privado.”
O governo do Rio de Janeiro montou um grupo de trabalho para analisar uma alternativa para elevar a cobertura de esgoto na Baixada Fluminense e na porção leste da região metropolitana.
A Estruturadora Brasileira de Projetos foi contratada para preparar o estudo de viabilidade econômica do projeto, que poderia ser feito por PPP, concessão ou uma parceria entre os diversos municípios da região. Estima-se que o projeto, que deve ser apresentado no primeiro semestre do próximo ano, alcançará 3 bilhões de reais em investimentos.
“As concessões são outra saída para o setor, mas esse cenário deve ganhar fôlego a partir de 2017, porque no próximo ano teremos eleições municipais e esse é um tema delicado”, afirma Paulo Dantas, sócio da área de infraestrutura do Demarest Advogados.
Estimativas de mercado apontam que, dos pouco mais de 5,5 mil municípios brasileiros, cerca de um quinto, ou 1,2 mil, não possui companhias próprias de saneamento, o que mostra o potencial na área.
Atualmente, o setor privado tem perto 10% de participação na área. Em dez anos, pode chegar a 30%. Segundo um analista que acompanha o setor, empresas da Europa, de Israel e da Ásia, com destaque para as companhias japonesas Mitsubishi e Sumitomo, observam oportunidades de negócios no Brasil. A desvalorização do real torna os projetos mais atraentes para o capital externo.
A gestão privada tem buscado reduzir as perdas do sistema, que superam um terço da água que circula pelos milhares de quilômetros de tubulações nas cinco regiões. Um exemplo está em Niterói, segunda maior cidade da região metropolitana fluminense.
O município, cujo nome em tupi significa água oculta, não tem fornecimento próprio do insumo. Em 1999, a empresa usava perto de 1,8 mil litros por segundo para atender 50 mil ligações de clientes.
Hoje a quantidade comprada é a mesma, mas a concessionária do Grupo Águas do Brasil atende 90 mil clientes. “A perda era de mais de 40%, hoje é de 16%, com redução de ligações clandestinas, melhor gestão da rede, tecnologia de medicação e análise.
Conseguimos expandir a rede sem elevar em nada nosso consumo”, diz Carlos Henrique da Cruz, diretor de engenharia e planejamento.
A Aegea criou um núcleo direcionado à área de inovação. Uma das principais soluções foi implementada em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, pela Águas Guariroba, que integra a empresa. Em 2006, o índice de perdas na rede era de 60%.
Hoje gira em torno de 25%. “Instalamos um software que controla o sistema de bombeamento e tubulação a cada hora e, por meio de inteligência artificial, detecta rapidamente problemas quando eles ocorrem”, descreve Amadeo. O sistema será estendido a outras concessionárias que integram o grupo. A medida tende a reduzir perdas e diminuir as despesas com energia elétrica.
O setor movimenta-se rumo à consolidação, reflexo dos desdobramentos da Operação Lava Jato, que abriu novas oportunidades. Hoje, as cinco maiores empresas do segmento, OAS, Odebrecht, Águas do Brasil, Aegea e CAB Ambiental, concentram cerca de 95% dos negócios privados.
Os restantes 5% estão nas mãos de outras operadoras e pequenas empreiteiras locais. Dois desses cinco principais ativos, da OAS Soluções Ambientais e da CAB Ambiental, tendem a ser vendidos por seus controladores, que estão em recuperação judicial, reflexo da apuração do escândalo da Petrobras.
A concessão dos serviços de água e esgoto de Araçatuba da OAS Soluções Ambientais estaria em vias de ser comprada pela GS Inima, controladora da Ambient, responsável pelo tratamento de esgoto em Ribeirão Preto, e do serviço de saneamento de Mogi-Mirim, no interior paulista. Já a CAB Ambiental deverá ser vendida em leilão inicialmente marcado para 10 de dezembro.
A ideia inicial era leiloar a empresa neste mês, mas os interessados (Aegea, Suez e GP Investimentos) consideraram o preço mínimo de 600 milhões de reais muito elevado e não efetuaram o depósito de 60 milhões de reais de garantia. Os novos donos terão de investir 150 milhões de reais para manter a operação de pé e herdarão uma dívida de curto prazo (vencimento em um ano) de 300 milhões de reais.
Atrair capital privado exige superação de alguns entraves jurídicos, principalmente nas regiões metropolitanas, onde são mais comuns conflitos de interesse entre municípios, poder concedente dos serviços e os estados, donos das concessionárias. Recentemente, o governo paulista ingressou com uma ação no Tribunal de Justiça de São Paulo, na qual contesta a decisão da cidade de Guarulhos, segunda maior, de realizar uma PPP para elevar a cobertura de esgoto no município.
A principal alegação: pelo fato de Guarulhos se localizar na região metropolitana, o governo estadual deveria ter participado dos estudos. No fundo, a titularidade dos serviços nas regiões metropolitanas continua um foco de discórdia entre prefeituras e estados.
Sancionada em 2007, a lei nacional de saneamento não tratou do tema, à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. A decisão saiu em 2013 e confirmou a prevalência das prefeituras como poder concedente dos serviços, embora não tenha eliminado todas as dúvidas em relação às regiões metropolitanas.
“O Supremo aponta que nas regiões metropolitanas é preciso um acerto compartilhado, mas não se refere a como isso deve ser operacionalizado, o que cria uma dúvida para os agentes”, diz Rosane Menezes Lohbauer, sócia do Madrona Advogados.
No caso da Compesa, de Pernambuco, a saída foi negociar e assinar contratos com cada um dos 150 municípios pelos quais as obras passariam.
Fonte: Carta Capital