Por Douglas F. Kovaleski para Desacato. info.
No texto dessa semana, abordo um aspecto que pode auxiliar muito na compreensão de certas atitudes de pessoas da sociedade política e da sociedade civil com relação à pandemia na América Latina bem como do contexto do Brasil no enfrentamento da covid-19. Com base nas discussões aqui já publicadas sobre a determinação social do processo saúde-doença e as desigualdades sociais com seus impactos sobre a pandemia, incluo o tema da colonialidade do poder e da morte para ajustar nosso foco sobre o fenômeno em curso.
A colonialidade do poder foi proposta por Aníbal Quijano, sociólogo peruano, nascido em 1930, faleceu em 2018 e deixou uma contribuição ímpar à compreensão da realidade latino-americana. Em conjunto com outros autores cunhou a teoria da dependência latino-americana e produziu e discutiu amplamente a teoria da colonialidade do poder, a classificação social, bem como suas consequências para o subcontinente. Seu corpo de trabalho é vinculado ao marxismo, porém atualizado e adequado à realidade latino-americana e tem sido influente nos campos dos estudos decoloniais e da teoria crítica.
Segundo Quijano, a colonialidade é um constituinte do padrão mundial do poder capitalista e seu fundamento baseia-se na imposição e posterior normalização de uma classificação racial/étnica da população do mundo como orientadora do padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos do cotidiano e da escala societal. Essa colonialidade do poder tem seu berço na América Latina.
Quijano evidencia algumas constatações, como: maioria “branca” no Cone Sul em função do genocídio indígena do século XIX; aparência de “democracia racial” no Brasil, Venezuela e Colômbia e a consequente invisibilidade dos afro-descendentes; a impossibilidade de criar uma nação, um suposto Estado-nação homogêneo sem modificar profundamente a interpretação histórica; o conflito permanente do Estado independente convivendo com uma sociedade colonial (colonizada, portanto, pós-colonial). Em seu clássico, Quijano faz a crítica – acertada – das correntes evolucionistas do pensamento à esquerda, herdeiras dos marxismos dos países alinhados em algum momento com a extinta União Soviética e, ao mesmo tempo, a urgente crítica ao mimetismo eurocêntrico.
Com base na teoria da colonialidade do poder, pode-se afirmar que mesmo na saída dos regimes autoritários latino-americanos, houve um reforço no sistema de crenças como se a possibilidade do socialismo fosse trocada pela social-democracia possível, sem o apoio das elites tradicionais. Configura-se assim uma resignação das elites que vem à tona das mais diversas formas, conduzindo vários países a uma virada à direita. Mas, de comum entre todos está o peso do Brasil na geopolítica do Continente e a consequente reviravolta conservadora pelo uso da lawfare como projeção de poder ampliada da superpotência (EUA). Nesse contexto, a ousadia na política externa do ciclo petista, não foi acompanhada da coerência interna necessária para confrontar o intento restaurador e garantir avanços estruturais na sociedade brasileira.
Na base da sociedade brasileira não alterou-se o emprego da violência estatal, extermínio, ausência de direitos civis e genocídio de fato da maioria afro-brasileira. Este padrão se reproduz nos países sob os governos de centro-esquerda e com ausência de protagonismo da sociedade organizada de baixo para cima. Avançou-se nada em termos da necessária descolonização de nossas sociedades latino-americanas. Tomando Quijano como base, observamos que é na ampliação de espaços públicos e com democracia interna no aparelho de Estado, na reinterpretação de nós mesmos através da história social da América Latina e na construção de espaços de poder através das entidades de base e movimentos sociais enraizados é que moram as possibilidades de emancipação. O jogo formal, dentro dos parâmetros das instituições pós-coloniais, tem um limite muito estreito.
A coesão da nacionalidade, típica dos Estados-nacionais europeus, não se realiza na América Latina em função do abismo social estruturante do racismo pós-colonial, estrutural e constitutivo do horror cotidiano das maiorias. O debate estratégico é de profundidade e enraizado em nós mesmos. E aí entram as possibilidades de enfrentamento da covid-19, com solidariedade, preocupação com o outro e com a nação, tudo o que falta de maneira marcante no Brasil.
Justifica-se o descaso dos governantes, das pessoas e dos setores industriais, pois vidas negras, pobres, colonizadas não importam, nem pro capital, nem pra si próprias. Temos nossa formação social marcada pela colonialidade do poder que repercute na colonialidade da morte, onde algumas vidas não importam nem ao mesmo permanecerem vivas.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.
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