Colômbia: “O que incomoda a direita é que as FARC façam política em praça pública”

O escritor e jornalista Alfredo Molano(foto), autorizado observador dos processos de violência e paz no país [Colômbia], acaba de publicar parte de suas experiências de viagem pelos territórios profundos da guerra, no livro “A lomo de mula”.

Molano afirma que os paramilitares, galgados pelo extremismo opositor, se reagrupam e rearmam em várias regiões. E, com ousadia, explica a existência das FARC a partir de um ponto de vista que trará muita polêmica.

Fonte: http://goo.gl/jBlXnh

A entrevista é de Cecilia Orozco, publicada por El Espectador, 05-03-2016. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Seu livro “A lomo de mula” traça um percurso histórico e também intimista de como a guerrilha das FARC nasceu, desenvolveu e se “espalhou” pelo território e procurou chegar a acordos com vários governos. É publicado a propósito da data apontada como limite no processo de paz em Havana, no próximo dia 23 de março?

Não de minha parte. Sem desconhecer que, mesmo que o acordo não seja assinado no dia 23 de março, a data está muito próxima. Há muito tempo, sigo as pegadas das FARC, buscando suas origens, seus caminhos, suas relações com a população civil, desde quando escrevi ‘Selva adentro’, em 1982. Compreender seu sentido histórico para contribuir na aproximação com o país daqui foi quase uma obsessão. Desde minhas primeiras pesquisas, não vi o monstro que diziam que eram.

O que viu, então? A metade do país que é eleitor, caso nos fixemos nas mais recentes eleições presidenciais, odeia a guerrilha porque vê nela, exatamente, um “monstro”…

Vi um movimento armado camponês com alguns ideais políticos, perseguido, encurralado e com o objetivo de mudar o sistema político.

E… as bombas, os ataques mortais, os sequestros econômicos, políticos, etc.?

Essa é a guerra. O inimigo das FARC também foi formando-a, e a guerrilha não teria conseguido viver de negócios lícitos. Teve que se utilizar da força, da ilegalidade, da violência, assim como utilizaram contra ela.

Você está consciente de que sua posição é uma das mais “avançadas” que, abertamente, alguém possa ter expressado no país polarizado de hoje?

Estou plenamente consciente. Procuro explicar a existência da insurgência, não justificar suas ações.

Vejo que percorre a história das FARC, mas que só comenta os acontecimentos do presente de maneira tangencial. Por quê? Não teria sido lógico que escrevesse sobre a mesa de negociação da paz, sendo você um dos jornalistas mais inteirados a respeito do que ocorre nela?

Sempre acreditei que a história lança luz “tangencial” sobre o que ocorre hoje, por isso, a mesa é só um capítulo da vida das FARC e do país. A cada dia se verá mais claro que as guerrilhas são parte essencial de nossa história. Mas, desça dessa mula: não tenho informação privilegiada. Tenho uma veia colhida do processo de negociação, porque o vi há tempos.

(Riso) Justamente, o título de seu livro alude ao modo de transporte que era utilizado quando alguém ia entrar em regiões dominadas pelas FARC. Você acredita que, em razão dos avanços no processo de paz, o repórter Alfredo Molano é um dos últimos jornalistas a viajar “no lombo da mula”?

Ando a cavalo desde que tinha quatro anos. A partir daí, enxerga-se mais que dos aviões. Tomara que os acampamentos da guerrilha se tornem logo sedes do partido que as FARC estão procurando criar. O que tenho claro é que não descerei da mula, ainda que seja o último jornalista que a utiliza para saber o que ocorre no país.

Com o seu perdão, nesta época de comunicações digitais e drones, viajar na mula parece anacrônico. A guerra de guerrilhas que a Colômbia viveu, durante mais de 50 anos, também entrou em um período de anacronismo e este estimulou a negociação?

Acredito que a guerra que sofremos mudou todos nós. Fomos deixando para trás a ideia de que as guerrilhas eram quadrilhas de bandidos que era preciso matar, até compreender, pouco a pouco, que são um movimento que optou, obrigado, a pegar em armas e que, pela mesma razão política, pode deixá-las. Irá deixá-las. Os militares, esse poder solto, também compreendeu e talvez também deixe de utilizá-las, da forma como as utilizou desde a Guerra Fria.

Bom, sou menos otimista. Discordo de você quando afirma que “fomos deixando para trás a ideia de que as guerrilhas eram quadrilhas de bandidos…”. Apresente esse argumento a Álvaro Uribe, aos seus seguidores, aos militares ativos ou aposentados e a muitos outros que andam por aí, para ver o que respondem… Consegue imaginar o que diriam?

Sim, imagino e eles me dizem: que sou um colaborador das FARC, que sou seu defensor ideológico, que faço parte do corpo civil da guerrilha. A realidade é que quando faço essa afirmação me refiro, fundamentalmente, ao mundo acadêmico, ao mundo que estuda a história da violência. O que afirmo foi verificado nos estudos que nós, catorze acadêmicos, fizemos, em razão do acordo, a respeito do esclarecimento histórico do conflito armado que a mesa de negociações de Havana nos pediu para escrever.

Em seu livro, encontrei uma expressão pejorativa da metade do século passado, que reapareceu na linguagem do presente. Você conta que para o general Rojas Pinilla, Eduardo Santos (tio-avô de João Manuel Santos) e Alberto Lleras eram “guerrilheiros intelectuais”. Ao presidente apresentaram adjetivos semelhantes. Há uma linha ideológica contínua entre a situação de guerrilha de então e a de hoje?

A extrema-direita é a mesma desde o senhor Caro, em fins do século antepassado, até Álvaro Uribe. Foi Caro quem empurrou o liberalismo à guerra civil dos Mil Dias, como é Uribe o que deseja nos condenar a continuar em guerra. Para o hoje senador, Juan Manuel Santos é um guerrilheiro de gravata, ainda que às vezes tenha o bom gosto de não colocá-la.

Falando em sensatez, possui alguma dúvida de que liberais do capitalismo e “aristocratas” como Eduardo Santos, Alberto Lleras e Juan Manuel Santos sejam comparados com um guerrilheiro das FARC?

É absolutamente impossível que alguém confunda as botas de borracha de um guerrilheiro com os sapatos Florsheim dos Santos… Estes usam esses sapatos como eu uso tênis!

O livro aborda a participação dos Estados Unidos na guerra contra a guerrilha, desde os anos 1950 e 1960. A intervenção norte-americana aqui foi ativa ou se limitou a assessorar os governos?

Os Estados Unidos envolveram a Colômbia na Guerra Fria. Laureano enviou tropas colombianas a Coreia sob o comando de oficiais estadunidenses. Porém, a influência norte-americana começa antes do dia 9 de abril, com o pacto de ajuda mútua dos exércitos latino-americanos na luta contra a chamada penetração soviética. Em Villarrica foram utilizadas, pela primeira vez no mundo, as bombas de napalm ou de gasolina sólida. As estratégias da guerra contra as “repúblicas independentes” foram estadunidenses. Não é gratuito que Obama vá a Havana no mesmo período em que um acordo de paz seja firmado entre colombianos. Serão os atos com os quais se encerra a Guerra Fria. O próprio Exército da Colômbia está procurando deixar para trás a doutrina chamada de Segurança Nacional.

Quando você menciona as bombas de napalm, refere-se aos mesmos artefatos que mataram tantas pessoas na guerra do Vietnã e que foram rejeitados até pelos pacifistas estadunidenses dos anos 1960?

Sim, exatamente as mesmas. Mais ainda, o exército estadunidense deu a fórmula dessas bombas, os franceses puseram os materiais e o exército colombiano as fabricou.

Outra história muito atrativa que você traz é a seguinte: em uma das tentativas de negociação com a guerrilha, “Manuel Marulanda” aceitou o plano de paz de Lleras Camargo. “Marulanda” foi nomeado inspetor da estrada entre Planadas e Aleluya (Tolima e Huila). Quanto tempo durou esse experimento?

Durou entre meados de 1958 e inícios de 1960, quando foi assassinado Charronegro, Jacobo Prías Alape, o mais importante chefe guerrilheiro do sul de Tolima, por homens de um antigo companheiro, o general Mariachi, armado pelo Exército para combater os “comuns”, os comunistas. No mesmo dia do assassinato de Charronegro, Marulanda e o comandante Guaracas voltaram às armas. Marulanda (o funcionário) era um construtor de estradas: a que ligava La Uribe com San Juan de Sumapaz.

Existem registros fotográficos ou escritos do servidor público “Manuel Marulanda”?

Não conheço nenhuma fotografia de Marulanda daquela época, mas devem existir os arquivos do Programa Nacional de Reabilitação, criado por Lleras Camargo e dirigido por José Gómez Pinzón.

Por que os governos fracassaram em suas tentativas de paz, e a guerrilha, ainda que recolhida e confinada a certos territórios, cresceu e se fortaleceu?

Porque o problema da terra nunca foi resolvido, apesar das tentativas liberais: Lei 200 de 1936, Lei da Reforma Agrária de 1962, criação de Reservas Camponesas em 1994. E porque a perseguição contra os rebeldes nunca parou. Os governos buscaram uma derrota certificada e não um acordo. Queriam que eles fossem derrotados no militar e no político, ou seja, enterrados. Só agora, especialmente com o princípio do novo estatuto de justiça nacional, os insurgentes são tratados de igual para igual. Uma condição lógica para que as FARC entrem na vida política e disputem em condições similares com os partidos tradicionais o poder político.

Há um momento de quebra na evolução das FARC, de acordo com o que você diz: quando passam do combate quase corpo a corpo para o ocultamento, para se tornar uma guerrilha que ataca e desaparece. Quando e por qual motivo essa transformação?

Acredito que essa quebra começa com o assassinato de Charronegro, em 1960, e se aprofunda com a tomada de Marquetalia, em 1964. Aí, a briga adquire um caráter mais social. Já não se tratava de uma defesa da vida, mas de uma conquista do poder.

Em que etapa da história as FARC deixaram de ser alguns grupos de camponeses com reivindicações compreensíveis para ser uma multinacional cruel e com negócios de drogas, imóveis e bancos internacionais, como se afirmou? Ou você considera que esta descrição não é real?

Não, nem de longe. Essa foi uma imagem construída por especialistas, naquilo que desde a Alemanha nazista é chamado de propaganda política, guerra psicológica. E, hoje, Santos está pagando caro por essa imagem que foi criada para tirar apoio das guerrilhas: o plebiscito não é fácil de vencer, assim que se chegar a um acordo com as FARC sobre a forma de ratificar o acordado em Havana. Ouça Fernando Londoño e notará como se cria essa fábula.

Falando de boicote ao processo de paz por parte das FARC, com sua aparição armada em La Guajira, aparição torpe em minha opinião, desafiadora, acredita que um ou vários governos boicotaram as FARC nas negociações, ou seja, que também houve tapeações oficiais para perder a paz?

Concordo com María Jimena: o que incomoda a direita é que as FARC façam política em praça pública. Há antecedentes como, por exemplo, o massacre da UP ou, de maneira mais franca, o boicote que os militares, já rearmados com o Plano Colômbia, fizeram para a tentativa de Caguán, no governo de Pastrana.

Você intitulou sua coluna do domingo passado, em El Espectador, “A direita vem com tudo”. Afirma que Uribe “convida as pessoas para combater”. E diz que as comunidades rurais estão assustadas porque fizeram com que acreditassem que os guerrilheiros vãos lhes tirar tudo. Foi testemunha desta situação?

Em Tumaradó, Chocó, os paramilitares patrulham uniformizados e armados. Em Ataco, Tolima, movem-se para Planadas. Em Meta e Casanare se reforçam. E acredito no que as pessoas me contam, com detalhes, sobre a reorganização paramilitar em algumas regiões onde foram fortes. Escutam Uribe. Mais ainda, sob o mote de que os acordos de Havana são impunidade disfarçada, o que se transmite é que as FARC farão política armadas com fuzis. Diante do boicote, o Governo se assustou com as sindicâncias de Uribe e, sem se propor, fez o jogo do forte golpe da paz armada.

Em outra parte de sua coluna, justamente afirma que houve “uma campanha submersa, suja e calculada para que os paramilitares voltem a se uniformizar e a tirar suas armas de seus esconderijos…”. Em que baseia estas denúncias?

Em Chocó, em Magdalena Medio, no sul de Tolima, nos Llanos, as pessoas foram envenenadas com lemas de guerra, com a ideia de que Santos é Kerensky e entregará todo o poder às guerrilhas. A história se dá uma vez como tragédia e outra como farsa, escreveu Marx. Trata-se de uma campanha que coloca medo nas pessoas, que acabam acreditando que são verdades mentiras mil vezes repetidas. Existe tensão em algumas regiões onde há áreas guerrilheiras e áreas paramilitares que se enfrentam desde velha data. É perigoso aproximar um fósforo desses polvorinhos.

Estaremos à beira de uma grave sabotagem ao processo de paz por parte dos extremistas, inclusive com atentados? Já existirá um plano daqueles que Otto Morales Benítez descreveu tão graficamente como “os inimigos entocados da paz”?

Sim, e o triste é que esses inimigos entocados, hoje em dia, não somente crescem nas fendas da direita, como também estão sendo consentidos por setores da esquerda.

A época da “caça às bruxas” do macartismo

Em uma de suas narrativas, você diz que a Colômbia aprovou, nos anos 1950, a “lei anticomunista” copiada da do macartismo, nos Estados Unidos, que, entre muitas outros atropelos, impediu a entrada a esse país do prêmio nobel Pablo Neruda. Como é a história?

O “golpe de opinião” de Rojas Pinilla, em junho de 1953, foi acordado por um setor majoritário do Partido Conservador com o liberalismo para superar a violência partidária. Rojas foi um árbitro cuja função cessava no dia 7 de agosto de 1954. Porém, o chefe supremo quis ser eleito e para isso buscou o apoio dos Estados Unidos e de nossa elite. E decretou ilegal o comunismo. O decreto foi copiado da emenda do senador MacCarthy, em 1952, que buscou a morte do comunismo nos Estados Unidos e em toda a sua área de influência. E não só dos comunistas, mas de todo pensamento crítico. Contudo, nossa elite do poder foi vítima de seu próprio invento e acabou caindo no golpe de Rojas.

Os Estados Unidos se atreveram negar a Neruda o ingresso em seu território?

Sim. Não o permitiu participar de um congresso de intelectuais para o qual havia sido convidado pelo Pen Club, de Nova York.

“Campos de concentração” na Colômbia

Em seu livro, você afirma que um coronel, chefe civil e militar em Tolima nos anos de Rojas Pinilla, iniciou uma operação de “drástica limpeza” mal chamada de “social” e que construiu, para esse efeito, um campo de concentração em Cunday. São conhecidos os excessos do mesmo, mas existiram campos de extermínio como os alemães?

Para mim, a memória das pessoas é um documento suficientemente sólido para a história. Alguns velhos guerrilheiros do sul de Tolima estiveram em Cunday, sobretudo após a chamada “guerra de Villarrica”, em 1955. Ali, foi estabelecido o comando operativo para retomar Sumapaz e 6.000 homens foram concentrados para fazer trabalhos forçados. Jacques April também reuniu depoimentos no leste de Tolima. Não sei se fora de Cunday houve outros “centros” de subversivos. Sei, sim, que ali se aplicou a lei de fuga. Sem dúvida, não houve câmaras de gás.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

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