Por Michele de Mello e Zoe PC.
Nas últimas semanas a Colômbia voltou a ser notícia pela violência desatada no país. No dia 9 de setembro, uma manifestação contra a repressão policial, nas cidades de Bogotá e Soacha, terminou com um saldo de 14 mortos e cerca de 400 feridos.
Na noite do último domingo, (20), um novo massacre aconteceu no município de Charco, departamento Nariño, deixando quatro mortos. Segundo levantamentos do Instituto para Desenvolvimento da Paz (Indepaz) somente em 2020 foram registrados 61 massacres em todo o território nacional, com mais de 200 vítimas mortais.
Esse cenário levou a Comissão de Paz e Pós-conflito do Senado a enviar um pedido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para visitar o país e verificar as denúncias de violações.
Também, ainda na semana passada, senadores da bancada de oposição exigiram a renúncia do Ministro de Justiça, Carlos Holmes Trujillo, depois que o funcionário assumiu que a Polícia Nacional foi responsável pela morte de Javier Ordoñez durante as manifestações na capital.
O laudo médico apontou que o colombiano, de 44 anos, faleceu depois de sofrer “múltiplos golpes contundentes em várias partes do corpo e com pistolas elétricas”.
O Ministério Público e a Procuradoria Geral da República continuam investigando o caso. Já a prefeita da capital, Cláudia López, do partido Aliança Verde, acusou os policiais de realizar “disparos indiscriminados”. A Polícia abriu 43 processos disciplinares internos por abuso de poder.
Para protestar contra a situação, movimentos estudantis e sociais, partidos de esquerda e sindicatos convocaram uma nova manifestação para o dia 21 de setembro.
“Apostamos que esse rechaço que expressam os colombianos sobre a situação atual de violência se configurem em condições políticas para que em um novo governo possamos implementar integralmente os Acordos de Paz”, declarou o senador do partido Farc, Carlos Lozada.
Desde 2019, a Colômbia é cenário de manifestações contra abusos policiais. A cidadania exige o fim do Esquadrão Móvil Antidistúrbios (Esmad), criado em 1999, durante a gestão do ex-presidente Andrés Pastrana. De acordo com a ONG Liga contra o Silêncio, em 20 anos de existência do Esmad, 43 pessoas foram assassinadas de forma sumária.
Enquanto na cidade, a Polícia Nacional atua na repressão, no campo, a tarefa fica à cargo do Exército Nacional e de grupos paramilitares.
Para Clemencia Carabalí Rodallega, vencedora do Prêmio Nacional de Defesa de Direitos Humanos na Colômbia de 2019, os eventos violentos seguem acontecendo pela impunidade dos agentes de segurança do Estado e grupos irregulares que atuam nos territórios.
“Justamente esta violência se agudiza no país porque o sistema de justiça não funciona. Realmente não existem investigações sérias que levem à captura tanto dos autores materiais como intelectuais, que seguem promovendo a violência apesar dos Acordos de Paz de 2016”, assegura.
Organizações sociais denunciam que a impunidade se expressa em novas ameaças. Jovens e estudantes receberam mensagens do grupo paramilitar Águilas Negras [Águias Negras] prometendo a “morte da esquerda”.
Os paramilitares também são acusados pelos movimentos populares como responsáveis por crimes que vitimaram 267 líderes sociais e ex-combatentes em 2020, segundo levantamento do Indepaz. Outro informe sinaliza que entre novembro de 2016 e 14 de julho, 2020, 973 líderes sociais, defensores de direitos humanos e ex-combatentes foram assassinados.
Já o governo de Iván Duque sinaliza o narcotráfico como principal gerador de violência no país.
O senador Carlos Lozada, do partido Farc, afirma que tanto paramilitares, como narcotraficantes estão relacionados aos crimes cometidos contra jovens nas zonas rurais e urbanas colombianas, no entanto, o Estado utiliza a narrativa como argumento negacionista.
“Sem dúvidas há uma intenção de ocultar sua responsabilidade, determinada pela Constituição, de que o Estado deve garantir a vida de todos colombianos. Nessa afirmação, o que existe é uma tentativa de reduzir a complexidade desse fenômeno”, opina o parlamentar.
Duque chegou ao poder através de uma forte campanha contra as guerrilhas colombianas e os Acordos de Havana. Durante seu governo, estima-se que foram mortos 52% dos 349 ex-combatentes assassinados nos últimos quatro anos.
“Eles tentam utilizar o argumento do narcotráfico como justificativa para esse banho de sangue, quando realmente eles estão vinculados ao narcotráfico. É o que evidencia o financiamento da campanha de Iván Duque, que recebeu dinheiro a máfia, e esse é o Centro Democrático, isso é o que se conheceu também com Alvaro Uribe e outros personagens que se vinculam a esse partido”, aponta o senador Lozada.
O processo de paz entre o governo nacional e o Exército da Liberação Nacional, que entrou na fase pública em março de 2016, também sofreu muito com a entrada do governo de Duque. Duque nunca delegou pessoas para assistir os diálogos na Havana e finalmente suspendeu o processo depois de um atentado em Bogotá em Janeiro do 2019 realizado por esse grupo.
Violência de Estado
A Colômbia vive um conflito armado há mais de 60 anos que tem como centro a disputa pela terra, como base para viver, produzir alimento e gerar riquezas.
Por um lado as guerrilhas lutam pelo direito à terra aos camponeses e à classe trabalhadora; por outro o narcotráfico precisa do terreno fértil para manter a produção de ilícitos – a Colômbia é o maior produtor de cocaína do mundo, segundo a ONU; enquanto os grupos armados irregulares fazem sua riqueza com todo tipo de atividade ilegal, incluindo o contrabando de cultivos.
Os Acordos de Paz firmados pelo governo nacional sob o comando de Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP) no ano 2016, abordavam uma série de temas, entre eles o uso da terra e a necessidade de uma Reforma Agrária que pudesse equiparar a distribuição do território entre os distintos setores sociais.
A Unidade de Planificação Rural Agropecuária da Colômbia, organismo vinculado às Nações Unidas, sinaliza que 82% das terras produtivas do país estão nas mãos de 10% da população.
O partido governante, Centro Democrático é composto por representantes da oligarquia agrícola e extrativista colombiana. Criado pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, o partido também sempre deixou claro sua proximidade com setores do paramilitarismo e seu rechaço absoluto às mesas de diálogo.
E esse grupo se mantém no comando da Casa Nariño durante boa parte das duas últimas décadas, com exceção dos dois mandatos de Juan Manuel Santos (2010 – 2018) que tinha uma perspectiva aberta aos processos de paz com objetivo de pacificar os territórios para que Colômbia pudesse ser um lugar seguro pelo investimento estrangeiro.
Em 2018, a vitória de Duque contra Gustavo Petro concretizou a volta do uribismo à Casa Nariño. Justamente por representar agentes econômicos que se beneficiam com a concentração de terras, o partido FARC explica que a violência se tornou uma ferramenta de poder.
“O terrorismo de Estado é um meio adotado na Colômbia, para que possam impor através do terror os interesses das companhias transnacionais de atividades extrativistas intensivas das nossas riquezas.Também é uma forma e manter esse modelo político”, afirma Carlos Lozada.
“Com um Estado centralizado decidiu garantir a manutenção das máfias nas regiões que não somente têm o controle territorial, como também lucram com atividades ilegais e para isso requerem a existência de grupos paramilitares. O objetivo é claro: impedir que as forças que estão lutando pela paz consigam consolidar-se, porque eles necessitam da guerra, do terror e do medo para dar continuidade ao seu regime político”, completa o senador.
Depois dos dias de repressão violenta em Bogotá e outras cidades do país na semana passada, as principais forças políticas, sociais da esquerda na Colômbia emitiram uma declaração “Pelo direito à vida e contra a impunidade: resistência popular e mobilização social.”
Eles declaram que os massacres e assassinatos nos últimos meses acontecem “num processo de alta militarização dos territórios e da vida que se acentua com a pandemia e se constituiu através de um governo autoritário, fascista, genocida, repressivo e criminoso”.
Afirmam que estão “ante um genocídio contra o movimento social como expressão do terrorismo de Estado, o qual se expressa com o aumento dos assassinatos, o deslocamento forçado, as judicializações, o paramilitarismo, a militarização, o narcotráfico, e outras formas que aumentam a guerra e perseguição, sob o olhar cúmplice do governo e autoridades”.