Por Juliane Guerreiro
“À época existia uma divisão entre brancos e negros e se quiséssemos entrar em um salão de baile não havia problema: podíamos apenas beber cerveja, dançar nem pensar. A discriminação racial era muito forte e nós, negros, tínhamos apenas uma saída, ter uma sociedade onde pudéssemos beber e dançar igual a todo mundo”.
Se engana quem pensa que a situação relatada por Luiz Paulo do Rosário a um jornal de Joinville se refere ao período da escravidão no Brasil. O depoimento retrata a cidade na década de 50, mais de 60 anos após a abolição, quando os negros ainda tinham a sua participação restrita nos tradicionais clubes de Joinville.
Neste contexto, a saída encontrada por Luiz Paulo, o Alegria, e outros sete amigos foi a criação da Sociedade Beneficente Kênia Clube Joinville, em 1960. “Ela surgiu da necessidade de nós, jovens da época, termos um ambiente de encontro. A segregação racial em Joinville era muito acentuada, nós não tínhamos acesso a outros clubes”, conta Alegria em depoimento disponível no Arquivo Histórico de Joinville. Luiz Fagundes de Oliveira, em entrevista à pesquisadora Maria da Consolação Osório, reafirma a segregação que fazia parte dos espaços naquela época. “Eu jogava no Floresta (time de futebol) e não podia dançar no Floresta (clube dançante) por causa da cor. Podia entrar no Floresta pra tomar uma cerveja porque eu jogava lá. Eles deixavam entrar para tomar uma cerveja, para ver os outros dançarem, mas enquanto a dançar, ao preto não era concedido”, destaca.
Alessandra Bernardino, professora e pesquisadora da história do Kênia, explica que o clube surgiu no bairro Floresta, próximo aos bairros da zona Sul, tipicamente mais frequentados e habitados por negros. “Ele surge de uma reunião de amigos que sempre iam jogar bola e que formaram um time de maioria negra, ao qual deram o nome de Senegal. A partir daí começaram a conversar sobre como poderiam fazer essa recreação além do futebol porque queriam bailes, música, atrações”, conta. A princípio, os eventos eram realizados em espaços alugados até que o clube conseguiu comprar um terreno e construir a sede que existe até hoje, na rua Botafogo.
Como os outros clubes de Joinville, o Kênia também tinha regras. “Não podia dançar muito agarrado nem entrar de bermuda e camiseta. Os bailes eram praticamente todos com traje social”, fala Alessandra. Entre os eventos realizados pelo clube estavam as domingueiras, bailes de debutantes e outras datas comemorativas. Mas além das atividades recreativas, o clube também prezava pela união e empoderamento dos seus membros, como revelam dois trechos do estatuto: “zelar pelos interesses dos associados socorrendo-os em casos de moléstias, mortes, perseguições ou outras circunstâncias acidentais” e “elevar o padrão social e intelectual da gente de raça negra”.
“Naquele momento, como no momento atual, existia o racismo. Talvez eles não tivessem a consciência do movimento negro, mas sabiam o que queriam, queriam não ficar à margem da sociedade e desfrutar dos mesmos direitos enquanto cidadãos brasileiros. Tinham essa consciência, não como hoje, mas fizeram algo dentro de um sistema racista para mudar o rumo da história”, destaca Alessandra. O clube abrigou aulas de alfabetização para adultos e eventos como o seminário “Discriminação do negro do trabalho”, realizado em 1987 pelo Grupo Unitivo do Negro Catarinense. “Muitos adultos foram alfabetizados nesse local, não aconteciam só bailes. Os jovens dentro do clube tinham um grêmio juvenil e o próprio carnaval, a escola de samba surge no Kênia”, explica Alessandra. A Escola de Samba Amigos do Kênia, fundada em 1968, foi a primeira a desfilar no carnaval de Joinville e, apesar de ter mudado de nome, resiste até hoje como Escola Príncipes do Samba.
Durante os mais de 50 anos de história, o clube enfrentou dificuldades financeiras e cedeu seu espaço para uma boate na década de 90. No entanto, para Alessandra, mesmo nestes momentos o Kênia continuou sendo ponto de referência para a população negra joinvilense. “Ficamos muito tempo com as portas fechadas, mas o prédio não veio a baixo, continua lá. Nossa referência enquanto cultura, etnia é o Kênia Clube. De qualquer negro de Joinville porque qualquer negro joinvilense teve seu avô, bisavô, avó, bisavó que frequentava o Kênia. Então é o nosso local de encontro até hoje”, ressalta.
Segregação é parte da cultura racista
Em alguns lugares, negros não podiam entrar. Em outros, uma corda no meio do salão limitava o espaço reservado a eles. A professora e militante do movimento negro Jeruse Romão explica que a cultura do racismo é segregacionista. “É uma cultura do período da escravidão, mas que a gente vai ver em outros lugares do mundo. Os direitos civis norte-americanos estão pautados no direito de os negros ocuparem os mesmos lugares que os brancos. A cultura do racismo no mundo inteiro foi segregacionista”, afirma.
“Há dois símbolos marcantes dessa cultura: uma de irmandade das igrejas, como a Nossa Senhora do Rosário, frequentada por negros enquanto os brancos iam para a catedral, e o caso dos clubes pelo mesmo motivo: os brancos entravam no salão, mas a mucama ficava do lado de fora”.
Jeruse Romão – pesquisadora
Jeruse está pesquisando a história dos clubes negros catarinenses para resgatar e preservar a memória destes espaços. Hoje, sete ainda estão ativos em Santa Catarina, um deles é o Kênia, de Joinville. “O que esses clubes revelam é que a cultura catarinense também adotou o modelo de segregação racial em que os negros não poderiam frequentar os mesmos clubes. Eles não são criados porque os negros queriam fazer um clube de negros, mas porque eles não podiam estar no clube dos brancos”, destaca. O primeiro clube negro catarinense foi o “Cruz e Souza”, criado em 1901, em Lages, e que resiste até hoje. “Esses clubes são produtos de uma postura de racismo existente no período da escravidão e sobretudo pós escravidão. É muito presente a figura dos negros acompanhando a sinhá, mas quando ela adentrava em território branco, a presença deles não era permitida”, afirma Jeruse.
O surgimento dos clubes, para a pesquisadora, demonstra a consciência étnico-racial de seus membros, mesmo que em um modelo diferente da militância desenvolvida hoje. “A militância com o conteúdo de hoje, político, crítico, acontece a partir dos anos 70. Nos anos anteriores era associação cultural, havia em alguns dos clubes a alfabetização de adultos, a maioria tinha associação de mulheres, mas obviamente todos tinham consciência étnico-racial, tanto que se denominavam clubes negros, alguns, inclusive, com patronos que evidenciam essa relação de pertencimento”, fala. “Depois dos anos 70, começam a ir politizando aos moldes desse discurso mais contemporâneo de discutir racismo ao invés de preconceito de cor, que são categorias bem diferentes. Aí tem alguns que publicam jornais, boletins, que são influenciados por organizações de outros estados, mas a preservação é difícil no Brasil inteiro”, explica Jeruse.
Hoje, segundo a pesquisadora, os clubes, não só os negros, têm sofrido com o desinteresse das novas gerações pela modalidade de associação, o que torna difícil e a manutenção e causa o fechamento ou terceirização de muitos clubes. Outro problema, para Jeruse, é a falta de investimento público destinado a esses espaços. “A cultura afro catarinense é muito invisibilizada, não há investimento público nenhum para a história dos clubes como há para outras agremiações”, reclama.
A primeira parte da pesquisa, em que Jeruse mapeou e fez entrevistas iniciais com pessoas envolvidas na história dos clubes negros de Santa Catarina, foi concluída e publicada no livro Africanidades Catarinenses. Agora, a pesquisadora busca recursos para continuar o estudo e visitar os municípios que abrigaram ou abrigam clubes negros catarinenses. “A segunda etapa é aprofundar a parte já iniciada e falar dos clubes que não existem mais. Em alguns municípios não existia um clube para cada etnia, existia um só com uma corda no meio. E aí a gente vai tentar entender o que levava as pessoas que estavam no mesmo lugar a estarem separadas por uma corda”, conta. A pesquisa está recebendo doações por meio de uma campanha de financiamento coletivo e é possível contribuir neste link.
Fonte: Paralelo Jornalismo