Por Paula Guimarães
“Dizem que nosso pau é grande, esperem até ver nosso ódio”. O clipe “Boa esperança”, do rapper Emicida, lançado recentemente, é considerado o mais corajoso do ano. Eu diria que é o mais corajoso dos últimos tempos. Uma ficção que escancara a luta de classes e a discriminação racial: sim, existe racismo no Brasil. Sim, os negros continuam a ocupar a ala dos empregados domésticos, sujeitados a toda forma de humilhação.
Funcionários numa mansão de luxo, cozinheiros, manobristas, mordomos, camareiras, se dividem para atender aos caprichos de uma família nobre da mais alta casta da sociedade brasileira. A beleza de uma das empregadas – assediada de todas as formas – provoca a ira da patroa que a persegue com perversidade.
A jovem negra de cabelos compridos, com tranças típicas do penteado afro, tira a touca que encoberta sua identidade e conta sua história para o grupo – esse já inflamado, prestes a explodir, rebela-se. É o estopim. A revolta não programada acontece como se tivesse sido tramada há alguns dias, meses ou anos. O que parecia pontual chega aos ouvidos de outros empregados e incita uma verdadeira revolução no país.
Como num filme do cineasta Tarantino, o direito legítimo à vingança tempera o clipe e, esse, mesmo sem nenhuma gota de sangue, provoca o choque, que, dependendo da classe social, pode ser de pânico e medo ou simplesmente justiça.
Na letra de “Boa esperança”, a viatura em que a polícia transporta presos é identificada como o atual navio negreiro, assim como na música “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, do O Rappa. “E os camburão o que são? Negreiros a retraficar. Favela ainda é senzala jaó. Bomba relógio prestes a estourar”.
O cenário social do Brasil de hoje não deixa margem para dúvidas em relação às senzalas e navios negreiros, que continuam a “retraficar”. Os negros – trazidos em 1500 para o Brasil – formam a maior parte da população marginalizada, que vive em comunidades abandonadas pelo Estado. Os cárceres, criados inicialmente para prender escravos continuam a cumprir sua função discriminatória, com quase 70% dos negros. E não se trata de índole.
O crime tem cor e endereço e as vítimas dele também. Mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano no país, 70% são negros. Não por acaso, a Anistia Internacional iniciou a campanha “jovem negro vivo” que alerta para ‘homicídios invisíveis’ de jovens negros. A chance de um adolescente negro ser assassinado é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos. Além disso, os negros são maiores vítimas de agressão por parte da polícia. A Pesquisa Nacional de Vitimização, lançada em 2013 pelo Ipea, mostra que em 2009, 6,5% dos negros que sofreram uma agressão tiveram como agressores policiais ou seguranças privados (que muitas vezes são policiais trabalhando nos horários de folga), contra 3,7% dos brancos.
Com uma leitura contemporânea, Emicida oferece a lupa para que possamos enxergar os batuques da senzala e o medo na casa grande, cercada de muros e câmeras de segurança. Trata ainda da negação do racismo no Brasil, como resultado da obscura tentativa de apagar da memória a história de opressão cultural de uma população subjugada e largada a própria sorte. Negação que formou e ainda domina mesmo os discursos mais letrados. “Cura baixa escolaridade com auto de resistência. Pois na era Cyber, cêis vai ler/Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver”.
“Só desafeto, vida de inseto, imundo. Indenização? Fama de vagabundo”. Para compor a letra, Emicida se inspirou em uma viagem que fez à África. Esse é primeiro single do próximo álbum ainda sem nome. Com direção do fotógrafo João Wainer e de Kátia Lund, o roteiro nasceu de um processo coletivo entre Emicida, os diretores e empregadas domésticas que moram na Ocupação Mauá, no centro de São Paulo.
O clipe traz no elenco o próprio rapper, que interpreta o porteiro do prédio onde o motim acontece, dona Jacira, mãe de Emicida, Domenica e Jorge Dias, filhos de Mano Brown, a modelo Michelli Provensi, Divina Cunha e Raquel Dutra, ambas moradoras da Ocupação Mauá.
Boa esperança é uma narrativa de protesto que encoraja e faz o chamado à consciência.
Foto: Kélen Oliveira