Cláudia Falcone: da primavera dos martírios
Raul Fitipaldi, jornalista – 2008, para Revista Pobres & Nojentas.
Em 1999, na Praça XV do Centro de Florianópolis, quando os estudantes secundaristas corriam da polícia que regava iracúndia esvaziando tropegamente suas “armas de dissuasão”, lembrei-me de Claudia. Depois, mais intensamente, reapareceu-me a jovem platense na primeira grande mobilização do MPL – Movimento Passe Livre, nesta Desterro, desde a Novembrada sempre pacífica, sempre guerreira. Voltou-me quando Flora, Marcelo e o Poeta foram presos na maior mobilização que vivenciamos pelo direito de ir e vir, de estudar e trabalhar, de ser livres, queiram as empresas de transporte ou não.
Conheci Claudia em 1986, quando tinha a cara de Vita Escardó (atriz argentina que representou Claudia Falcone no filme A Noite dos Lápis). Nunca chorei, nunca gritei, nunca acordei tão desesperado; nunca dei tantas e tantas voltas em redor da cama como essa noite, após sair do cinema da Avenida Callao, no centro de Buenos Aires. Claudia não era mais, Claudia tinha desaparecido… O monstruoso assassino que fez a mágica foi preso em setembro de 2006, 30 anos depois. E voltei a lembrar-me de Claudia Falcone. A ela estas linhas e à rapaziada do Passe Livre em todo o Brasil.
Em 16 de setembro de 1976, foram seqüestrados sete estudantes secundaristas. Entre eles Claudia Falcone. Com ela María Clara Ciocchini e cinco meninos. As duas garotas estudavam Belas Artes na cidade de La Plata, capital da Província de Buenos Aires. Claudia e Maria Clara militavam na União de Estudantes Secundaristas e lutavam pelo passe de ônibus para estudantes. As forças armadas consideravam esse movimento “subversivo”. Claudia expressou numa reunião dos estudantes: “Embora não consigamos o passe para nós, ficará para futuros estudantes.”
As jovens foram seqüestradas da casa da avó de Claudia. Foram vistas pela última vez em 28 de dezembro de 1976. Passaram por diferentes centros clandestinos de detenção (10 ao todo) e foram torturadas, submetidas a todo tipo de abusos, violações sexuais e sanha. Segundo Pablo Díaz, único sobrevivente do seqüestro e que participou como ator (é sua profissão) no filme a Noite dos Lápis: “Um dia, Maria Clara pediu-lhe a um dos guardas que não a tocasse mais, que a matasse mas que não mais a tocasse, enquanto se batia a cabeça contra a parede”. Claudia tinha 16 anos, Maria Clara 17.
María Claudia Falcone.
A justiça chega, porque a memória não se detém, não esquece e não esquecerá jamais. O jornalista e escritor argentino Osvaldo Bayer referindo-se ao militar assassino mandante, Miguel Etchecolatz, preso em setembro de 2006, diz que “se trata do autor da ação mais aleivosa imaginável. A prisão, tortura, morte e desaparição dos adolescentes que lutavam pelo passe estudantil colocou os militares argentinos em avançada de crueldade se comparados aos criminosos nazistas”. Lembra que “em fevereiro de 1943, um núcleo de estudantes alemães da cidade de Munique editou panfletos contra a guerra. Foram submetidos a juízo, encontrados culpados e guilhotinados ao terceiro dia”. Apesar do horror do fato, tudo foi publicado, brutalmente transparente. Em La Plata, os heróis da resistência eram mais jovens, adolescentes, lutavam pelo preço popular da passagem de ônibus” e desapareceram. “Não estão nem vivos nem mortos” como proclamavam os ditadores da Argentina.
Os jovens alemães foram à guilhotina, mas não foram violados, torturados, desaparecidos. Claudia, repito, 16 anos, o foi. Mas hoje, com 46 anos de idade (fez aniversário em 16 de agosto, dentro da nossa alma) aparece junto com seus companheiros adolescentes na iconografia mais límpida, pura, da educação portenha e argentina. Os jovens do presente a reconhecem nos currículos escolares como exemplo e matéria de memória e estudo. Uma importante escola municipal de Buenos Aires se chama M. Claudia Falcone. As gerações presentes fizeram-na ressuscitar, reaparecer, para espanto e eterna perseguição dos seus carrascos. Claudia anda tão plena dentro do nosso peito, da nossa memória, do nosso dia-a-dia, que quando seus assassinos apodreçam no esquecimento mais recôndito da história, ela voltará em cada mobilização, em cada gesto dos estudantes, em cada lágrima de vitória, em cada tensão de medo. Em todos os atos e leis que tencionem até a vitória final, o direito de ir e vir, de estudar e trabalhar, de ocupar as ruas e cantar pela liberdade, Claudia voltará.
Claudia, da mão de Maria Clara, atravessa as fronteiras entre os suaves amores que a luta juvenil fez crescer nas árvores do martírio e da unidade. Acompanha aos estudantes do Chile, aos professores de Oaxaca, ao MPL do Brasil, a todos, e em cada um deles planta uma primavera.