Dois filmes que gravitam em torno de um nominado “presente”: Babel e A Chegada, um círculo e um palíndromo. Um usa o formato como jeito de formatar o mundo, outro usa o formato como gimmick sem sentido, matemático e mecanicista. Um sofre preconceito por vir da câmera sensacionalista do Iñárritu, o outro é um xodozinho da cinefilia superficial que eu odeio menos que poucas coisas.
Arrival. Afinal, que promessas se espera de um filme que se inicia com aquela casa? Um cenário de vídeo de vlogger, o senso estético elitista de um comercial emotivo de colchão, com raízes bem fundas no Norman Rockwellismo moderno de quadro de respire, espire, inspire, e se segue pelas suas duas horas seguintes entoado por filtros estourados de VSCO como uma peça publicitária pra Facebook, com sua coloração emotiva sobre aquela cenografia classe-mediana de longos abajures que não existem na vida real.
Mas chega de formalidades. Ideologicamente o filme se trata de um monumento à mediocridade primeiro-mundista com a cabeça enfiada na própria bunda. Monumento ao imperialismo americano, que ao mesmo tempo que descarado do começo ao fim, engana cabeças acostumadas aos padrões inapologeticamente “apolíticos” do cinema estadunidense com a historinha tristinha de maternidade e luto, chuif chuif, boohoohoo. Ou então sobre a linguística rasa do filme, uma metáfora pro dom da comunicação do centrismo radical, da habilidade ao diálogo diplomático, dom carregado pelos helicópteros militaristas que sobrevoam o filme com o dever de abençoar os bárbaros iranianos conservadores e de cabeça fechada.
A estética do filme é puro tecnomilitarfetichismo. Baba pros uniformes cor de cáqui dos mocinhos. Não se confunda pela babação ao “diálogo”. A única forma de resolver esse conflito intergaláctico era dentro de um acampamento militar.
No complexo filme de Villeneuve o presente é o dom linguístico dos alienígenas, seres invariavelmente superiores que chegam à Terra com a missão de paz. E nós, humanos bobinhos, tentamos decifrar sua lógica esotérica, dialogar a um acordo mútuo. É o dom da diplomacia neoliberal e grandiosa do racionalismo ocidental. Um filme pra intelectuais, olha só: joga nomes técnicos aqui e ali, menciona Fibonacci, e claro, não confia na gente pra deduzir o porquê do nome da criança ser Hannah.
Pena que aí os chineses e os russos causam o caos. São seres que não conhecem a diplomacia, ansiando pela oportunidade de peitar os aliens. Coroas de espinhos na forma de nações. E aí chega a vez do império galáctico estadunidense intervir e salvar o mundo nessa história emocional sobre mães, filhos e morte. Claro que eles têm a piedade de dedicar um momento pra mostrar que no fim os chineses tinham sim humanidade. Claro, é cinema apolítico, imparcial.
O presente é o neoliberalismo americano e seu imperialismo.
Também é esse mesmo presente que guia Babel. O neoliberalismo imperialista, a arma dos irmãos, a incapacidade social de Chieko, o braço da srta. Jones e os filhos de sua empregada. A arma mata alguns, desumaniza outros, os reduz a americanos ou ilegais, tudo em troca da sociedade hiperavançada que produz a tragédia de Chieko. Esse é o presente. A liberdade (e imposição) econômica do Japão, país insular de onde vem Yoko, protagonista de O Fim da Viagem, O Começo de Tudo, que se passa no Uzbequistão. No filme de Kiyoshi Kurosawa, o desenvolvimento capitalista é o mar.
“O mar. Que legal. Eu invejo tanto, nós não temos mar aqui. O mar simboliza a liberdade?”
“Eu não sei, eu acho que é um lugar perigoso. Não tem nada de liberdade.”
O mar é a tragédia de Chieko, presa entre os prédios que assassinam a ela e a Yussef: o presente dos alienígenas à nossa ingênua humanidade. É a nossa realidade atual. O condomínio hiperfuturista que representa a utopia em Interstellar, de Nolan, a outra grande ficção científica fascista dos anos 2010.
A Chegada nao é só um filme cara de pau. É um filme imperialista. É um filme fascista. Supremacista. Neoliberal. O legado de Guga Chacra pra um mundinho azul. O mundo dos youtuberzinhos medíocres que migram pro Canadá.
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Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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Muito interessante essa leitura. Apesar de eu ter assistido apenas à Chegada, realmente fascinante ver desse ponto de vista, o único ponto destoante pra mim é a avaliação sobre a participação da China que no filme é retratada de forma bem mais “positiva” do que em outros tempos especialmente por causa da influência do mercado chinês nos retornos cinematográficos hoje em dia, mas com certeza os heroicos estadunidenses que salvam o dia.
Fora isso mais um dia sob o Império.