Sinto fortes emoções assistindo ao infame filme de choque Guinea Pig (Satoru Ogura – 1985), festival monossilábico de tortura e violência. Pouca coisa nessa descrição configura de qualquer forma “meu tipo de filme”, pelo contrário, sou romântico, existem poucas coisas na vida que eu valorizo mais que a beleza na arte, apreço pelo qual não vejo refletido em qualquer momento nessa obra. Mas Guinea Pig mexe comigo. Vejo nele uma expressão primal das emoções primais que são a dor e o sofrimento. Como alguém que sente dor e sofrimento, sou tocado de várias formas pelas várias dores e nojos exibidos no filme e a impotência da vítima diante de seu destino cruel. Pra mim é nada menos que um retrato universal afiado da condição humana inerente de vulnerabilidade.
Sou forçado a encarar a possibilidade de, em algum momento da minha vida, sentir tudo aquilo representado ali. Sou forçado a lembrar que uma casca muito fina me separa da dor extrema e que, se um dia enxergar através dela, jamais serei o mesmo. Sou forçado a sentir empatia mórbida pela garota que sofre na mão dos sádicos. Pra mim não é um filme de choque. Como alguém formado pela internet não passei os primeiros 10 anos de vida sem ver pelo menos uma foto de cadáver. Ainda tenho hipersensibilidades sensoriais e até frutas esmagadas e seus cheiros e visões têm em mim o mesmo efeito que um corpo carcomido por larvas, de tal forma que pouco resta a mim no filme que não a imagem desoladora da dor, ao mesmo tempo tão distante e tão próxima de mim, tão essencial ao ser humano, inescapável, inevitável. Assim como é com o freudismo: sou atraído pela descrição quase ontológica da humanidade. É um filme real demais.
Filmes de choque não andam com bom nome pela crítica internética nos últimos anos, acusados de “não significarem nada”, de apelarem pra violência de forma quase pornográfica e hedonista, erótica. Críticas válidas, das quais muitas já partilhei, mas das quais não tomo mais parte. Não sou exatamente um fã de filmes de choque, como já dito, a série de Ogura é um caso muito específico e raro. Mas sou obrigado a defender a sua consistência intelectual e artística da ignorância da rede mundial de computadores.
Primeiramente gostaria de esclarecer que pra mim existem dois tipos de choque como movimentos no cinema, o político, que almeja criar debates e controvérsias midiáticas, provocar o público que ele considera opressivo ou conservador, e claro, o choque do terror, que tenta projetar pouco mais que uma empatia individualista. Jamais vi um filme da primeira categoria que se justificasse. Considero “expor as hipocrisias da sociedade” com filmes do Gaspar Noe e sua sexualidade desregrada na era da pornografia no mínimo ingênuo. É um filme que existe pouco além do debate no máximo midiático que existe em sua volta, é um filme de ato, mas um ato impotente.
O segundo tipo, porém, que se utiliza da geração de emoções empáticas pra produzir alguma reação artística, às vezes nada além das próprias emoções empáticas, é “mais arte” se isso é possível. Penso no famoso quadro de Goya, Saturno Devorando Um Filho, ou até trabalhos menos chocantes, como Ivan o Terrível e seu Filho Ivan, pinturas que notadamente ainda despertam fortes emoções mesmo ao dessensibilizado público moderno a quem a pintura clássica não é necessariamente atraente. O grande mote dos quadros está na forma bruta com que passam emoções humanas como medo e pena por volta da pura imagem instantânea. Vejo muito disso em filmes como Guinea Pig. Uma pintura feroz sobre o medo da dor.
Penso que esses trabalhos não existem apenas pela provocação-pela-provocação, mas almejam atiçar a nossa humanidade primal e interior com a imagem. E isso sempre vai ter um significado maior. São filmes com afirmações, não atos microtransgressivos. Sou da escola de que não existe arte sem significado, até o mais inconsciente dos filmes snuff atende a alguma necessidade cultural. Se algo produz uma pulsão pela morbidez do choque, merece ser retratado, suprido. Mas a profundidade da piscina depende do seu olho. Não espero que Ogura tenha tido tantos objetivos filosóficos quanto aos seus filminhos violentos, mas a arte fala por si.
Por isso, também sou contra a acusação de que eles só existem pelo sadismo. Pois o sadismo é algo que MERECE ser retratado e suprido artisticamente. Não reconhecer isso é cair numa visão de arte extremamente limitada, como a constante crítica a Guinea Pig de que o filme não consegue seu “objetivo” de “criticar” o sadismo, como se a crítica fosse a única forma possível de fenomenologizar a vida pela arte. Em um fenômeno parecido vejo Peter Sotos sendo constantemente representado como uma “crítica” à resposta e tratativa da mídia quanto à pedofilia. Não. Ele é só a fenomenologização de uma realidade que é a pedofilia. Um puro retrato sadista dela. Até mesmo Lolita cai num conto parecido quando você vê o quanto explicam a obra como “crítica” a Humbert Humbert. É uma análise a qual está sujeita toda obra com comportamentos e fenômenos moralmente questionáveis, de Scott Pilgrim Contra o Mundo a Dom Casmurro.
Tudo é consequência da forma pictórica pela qual a internet consome a arte. Acostumada com obras de profundidade Netflix onde a moral de um filme é abertamente discutida e esmiuçada pelos diálogos de um próprio filme, a internet não sabe abrir as vísceras de um trabalho e explorar suas pulsões e instintos. Gosto de usar como exemplo do fenômeno o jogo Papers, Please. Um videogame que poderia com facilidade ser considerado anticomunista pela sua retratação negativa pictórica do socialismo europeu decadente oitentista, mas que na prática coloca o jogador em um exercício de empatia por um burocrata que tem de decidir entre si e o coletivo, a ordem e a liberdade, temas centrais pra discussão elevada das experiências marxista-leninistas falidas do passado e seus erros.
É a incapacidade de se analisar não apenas nada da forma, mas também parte do conteúdo. É bem mais preguiçoso assistir um filme em que os diálogos expõem as lógicas ideológicas da obra.
E é por isso que eu sou A FAVOR de Guinea Pig. Retrato da doença social, da dor e da vulnerabilidade de todos nós.
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Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.
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