Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Por Daniel Giovanaz.
Terceirização irrestrita. Reformas trabalhista e da Previdência. Fim do Ministério do Trabalho. O impeachment de 2016, da então presidenta Dilma Rousseff (PT), abriu caminho para uma destruição em série dos direitos trabalhistas no Brasil.
Passados cinco anos, a promessa de geração de vagas de trabalho não se cumpriu, e as condições de vida dos trabalhadores brasileiros só pioram. Nesta semana, o Brasil de Fato publica uma série de reportagens acerca do impeachment, abordando o contexto da época e seus desdobramentos até os dias de hoje. Veja, na coluna à direita, as reportagens já publicadas.
A situação já era dramática antes da pandemia, que agregou contornos de crueldade. Os trabalhadores sem carteira assinada e “por conta própria”, que se tornaram maioria em 2017, foram os mais atingidos, e hoje dependem de um auxílio emergencial que não banca nem metade da cesta básica.
Relembre a lista de direitos perdidos
Histórico
A substituição de Dilma Rousseff pelo vice Michel Temer (PMDB) – “com o Supremo, com tudo” – deu condições para aplicação de uma agenda econômica que ficou latente por 20 anos.
“As questões que aparecem na reforma trabalhista [de 2017] começaram a ser introduzidas nos anos 1990, no governo Fernando Henrique [PSDB]”, recorda José Dari Krein, doutor em Economia Social e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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“Na época, não foi alterada a legislação pré-existente, mas houve mudanças em elementos centrais da relação de emprego, sobre as formas de remuneração, contratações atípicas, precárias, e também sobre flexibilização da jornada de trabalho”, completa.
No final daquela década, o setor empresarial já pressionava, por exemplo, pela prevalência do “negociado sobre o legislado”.
A ideia era que os patrões pudessem estabelecer condições diretamente com o empregado, sem a obrigatoriedade da participação ou mediação de entidades sindicais. O argumento – que nunca foi comprovado na prática – era que essas condições encareciam a mão de obra, impediam a geração de empregos e limitavam a produtividade.
O início dos governos PT, com um ciclo de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e dos níveis de emprego e renda, esfriou essa demanda empresarial por quase uma década.
Da mesma forma, quando a economia brasileira começou a sentir os primeiros efeitos da crise mundial, as pressões recomeçaram. Já no governo Dilma, ocorreram retrocessos trabalhistas, como cortes no valor do abono do PIS e do seguro-desemprego.
Além da desoneração das folhas salariais, a agenda empresarial forçou a desvalorização da moeda e a diminuição da taxa de juros com o pretexto de estimular investimentos no país.
A adoção de parte dessa cartilha por Dilma não surtiu efeitos positivos, e o PIB brasileiro encolheu 7,5% em dois anos. O mau desempenho econômico caiu como uma luva para setores da oposição, derrotados na eleição de 2014, que buscavam a todo custo um pretexto para substituir o governo.
Ponte para o futuro abismo
Segundo os entrevistados, o impeachment de 2016 foi resultado de insatisfações de parte da elite política – insatisfeita com o diálogo de Dilma com o Congresso – e econômica, que exigia cortes mais drásticos no gasto público e redução nos custos com mão de obra.
O documento “Ponte para o Futuro”, do PMDB, materializava já em outubro de 2015 o pacto de Temer com esses interesses. A primeira medida, em dezembro de 2016, foi a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95, que congelou os investimentos em áreas como saúde e educação por 20 anos.
“Essa aprovação marca uma mudança concreta de projeto de país, que abre caminho para todas as reformas que vêm a seguir”, afirma Patrícia Pelatieri, coordenadora de pesquisas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
“Boa parte da tragédia que a gente vive hoje tem a ver com as escolhas políticas feitas a partir de 2014, e muito aprofundadas a partir do impeachment de 2016”, acrescenta a pesquisadora.
Para Pelatieri, os retrocessos na legislação trabalhista devem ser lidos como parte de uma agenda que envolveu, além do “Teto de Gastos”, privatizações, mudanças na política de preços da Petrobras e desfinanciamento da agricultura familiar, elevando o preço dos alimentos e propiciando a volta da fome.
Rasgando a CLT
Se 2016 foi difícil para os trabalhadores brasileiros, as mudanças introduzidas no ano seguinte se mostraram ainda mais devastadoras.
Em março, o Congresso aprovou a “terceirização irrestrita”, mesmo quando se trata da atividade-fim das empresas em questão. Todos os entrevistados ouvidos pela reportagem enfatizaram o agravamento da precarização a partir dessa medida.
Era o prenúncio da reforma trabalhista, aprovada em julho.
“Ela tramitou em tempo recorde. Em seis meses, foram introduzidas mais de 200 modificações na legislação”, ressalta a economista Marilane Teixeira, assessora sindical na área de trabalho e gênero e integrante do Fórum Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.
Só na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), foram 130 alterações. Nenhuma delas ampliou direitos dos empregados, frente aos empregadores.
“A legislação deveria dar conta de proteger o elo mais frágil da relação capital-trabalho, que é o trabalhador. A reforma trabalhista faz uma inversão dessa lógica. Ela tem objetivo de cortar custos relacionados à contratação, remuneração, intervalos entre jornadas, deslocamento, saúde e segurança”, enfatiza Pelatieri.
Tic-tac
Para o professor José Dari Krein, um dos elementos mais importantes dessa reforma é a gestão do tempo. “O aspecto central da reforma é viabilizar o mercado de trabalho flexível, ampliar a liberdade do empregador de gerir a força de trabalho de acordo com o que é mais conveniente com o seu negócio, no tempo e no espaço”, analisa.
“Aumentar a liberdade da empresa significa diminuir a possibilidade de o trabalhador organizar sua vida pessoal. Porque ele passa a estar muito mais tempo em função do trabalho do que antes da reforma”, acrescenta o especialista.
O chamado “trabalho intermitente”, previsto na reforma, radicalizou essa situação. “Nessa modalidade, o trabalhador deve estar à disposição da empresa para o que ela precisar, do jeito que ela quiser. Chegando ao cúmulo de o trabalhador ter que pagar multa quando não atende essa solicitação”, explica a pesquisadora do Dieese.
Os contratos intermitentes, uma das principais apostas da equipe econômica de Temer para geração de empregos, representaram 19% das novas contratações com carteira assinada no Brasil em 2019, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Já do total de brasileiros com carteira assinada, apenas 1% possuem contratos intermitentes.
Entre os contratos existentes, cerca de 1/4 nunca se concretizaram. Ou seja, o trabalhar nunca foi chamado pela empresa. “Em 2019, 25% dos contratos intermitentes não tiveram uma hora de trabalho, nem rendimento. Não saiu da gaveta”, afirma Pelatieri.
O fracasso dessa modalidade não significa que a reforma não produziu efeitos negativos. Em paralelo à liberação dos contratos intermitentes, foi aberto um leque de outras opções flexibilizadoras.
Vínculos que antes feriam a CLT, como a contratação de empregados via Pessoa Jurídica (PJ) ou Microempreendedor Individual (MEI), foram legalizados imediatamente, empurrando milhões de pessoas para a situação de informalidade ou de “trabalhador por conta própria”.
Dos 6 milhões de empregos prometidos pela equipe de Temer, foram gerados menos de 1 milhão, até o início da pandemia.
Sindicatos e Justiça do Trabalho no alvo
Em outras palavras, Temer ofereceu opções “mais vantajosas” para os empregadores do que a carteira assinada, deixando milhões de trabalhadores vulneráveis.
“O que ele fez foi substituir o trabalho formal, o assalariamento, com direitos e proteção social, pelo trabalho por conta própria, informal, favorecido por outras duas grandes medidas adotadas na reforma trabalhista: o enfraquecimento dos sindicatos e da Justiça do Trabalho”, interpreta a economista Marilane Teixeira.
O fim do Ministério do Trabalho, o desinvestimento nos órgãos de fiscalização, e a extinção da contribuição sindical obrigatória mostraram que “a ideia era, de fato, desmontar e desestruturar a organização dos trabalhadores” – nas palavras de Pelatieri, do Dieese.
O “negociado sobre o legislado” também passou a vigorar, como queria parte do setor empresarial desde os anos 1990. Ou seja, o resultado da negociação entre patrão e empregado, em condições evidentemente desiguais, pode se sobrepor ao texto da lei.
Para completar, a partir da reforma, o empregado que entrar com ação trabalhista e perder, no tribunal, fica obrigado a pagar os custos processuais da empresa. O objetivo, segundo Krein, era “inibir as pessoas a reclamarem seus direitos”.
Dois anos após a reforma, o número de ações trabalhistas caiu 32%.
Reforma da Previdência
A cereja desse bolo, com gosto amargo para os trabalhadores, era a reforma da Previdência. Para Teixeira, o governo Temer só não conseguiu aprová-la porque 2018 era ano eleitoral.
“Parte dos parlamentares não quiseram se indispor com a sociedade diante de uma reforma absolutamente contrária aos interesses da classe trabalhadora, e cujos prejuízos eram ainda mais evidentes do que na trabalhista”, avalia.
A pesquisadora lembra que o argumento mais usado pelos setores favoráveis à reforma era falso. “A gente demonstrou, em vários estudos e publicações, que o sistema de Seguridade Social nunca foi deficitário. E, mesmo a Previdência em si, só registrou déficit no momento da crise, em que houve queda na capacidade de arrecadação do Estado”.
Coube a Jair Bolsonaro (sem partido), apoiador do impeachment, sancionar a reforma da Previdência em 2019 – com regras mais favoráveis para militares, que conformam sua base de apoio.
A idade mínima para aposentadoria de mulheres passou de 60 para 62 anos, com regras específicas para trabalhadores rurais, policiais e professores.
No setor privado, mesmo com a idade mínima, antes era possível escolher entre aposentar-se por idade ou por tempo de contribuição. Aposentando-se por idade, era necessária uma contribuição mínima de 15 anos. Quem quisesse se aposentar abaixo da idade mínima poderia fazê-lo, desde que somasse 30 anos de contribuição, no caso de mulheres, e 35 anos, no caso de homens.
Com a reforma, essa opção tornou-se impossível. Mesmo quem já contribuiu pelo tempo mínimo não pode aposentar-se antes da idade mínima.
Na prática
Para ilustrar como esse conjunto de mudanças é perceptível no chão de fábrica, o Brasil de Fato selecionou um setor específico, com alto índice de acidentes e adoecimentos: os frigoríficos.
Antes das reformas, os parâmetros de bancos de horas eram definidos em assembleias, com a participação dos sindicatos. Hoje, a negociação se dá diretamente entre patrão e empregado.
“O banco de horas é gerado quando a produção está em alta. Nesse período, com jornadas mais longas, a atividade é mais penosa e há mais adoecimentos”, explica José Modelski Júnior, secretário-geral da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac).
“Não adianta nada, depois, o trabalhador ter folgas acumuladas no banco de horas, porque os problemas já foram causados. Principalmente, lesões por atividade repetitiva, que é a maior causa de adoecimentos no setor de frigoríficos”, acrescenta.
Modelski cita ainda os impactos da terceirização da atividade-fim no setor.
“Tem empresas que fornecem trabalhadores para os frigoríficos, para a indústria metalúrgica ou têxtil, sem distinção. Eles recebem menos e não têm treinamento, portanto, têm maior índice de acidentes”, relata o sindicalista.
As pressões constantes da classe empresarial, pela redução do tempo de intervalo e pela flexibilização de normas de segurança, coincidem com o afastamento do sindicato das negociações.
“São todos itens que ajudam, para as empresas, a reduzir custos e aumentar o lucro, mas que impactam diretamente na saúde e nos salários”, lamenta Modelski. “Tem empresas que passaram, simplesmente, a se negar a dialogar com os sindicatos. E isso tudo é consequência desse processo que vem desde o impeachment, que a gente percebe que continua e se aprofunda.”
Pandemia e perspectivas
A explosão do trabalho informal e por conta própria não significa maior liberdade para os empregados, segundo Krein.
“É estratégia de sobrevivência. As pessoas precisam se virar, ter alguma renda. Por isso, vemos cada vez mais pessoas no semáforo vendendo pano de prato, vendendo bala. Não tem emprego, e a reforma só agravou esse problema”, analisa o professor da Unicamp.
Para Marilane Teixeira, a pandemia joga luz sobre uma realidade que os governos Temer e Bolsonaro tentavam invisibilizar. “O governo percebeu, de repente, que um número enorme de trabalhadores, diante da necessidade de isolamento, perdeu a renda imediatamente, porque não tinha nenhum tipo de proteção social”, lembra.
“Então, 100 milhões de pessoas tiveram que buscar o auxílio emergencial, que só foi concedido pelo governo após muita pressão, e ainda em valor inferior ao que pretendia a oposição”, enfatiza a pesquisadora.
Patrícia Pelatieri, do Dieese, acrescenta que a pandemia teria efeitos econômicos menos devastadores se o mercado de trabalho brasileiro não estivesse tão desestruturado.
“Com empregos mais protegidos, a crise pandêmica seria menos grave”, diz. “Os mais impactados são jovens, mulheres, negros, trabalhadores sem carteira e idosos acima de 60 anos, que foram empurrados de volta ao mercado de trabalho pela reforma da Previdência”.
Para José Dari Krein, o atropelo da legislação trabalhista não acabou. Propostas como a Carteira Verde e Amarela, em que o trabalhador abre mão de parte dos direitos em nome da preservação do emprego, segue no horizonte do ministro Paulo Guedes, da Economia.
“A lógica da reforma continua na agenda do governo Bolsonaro. Ele tem declarado com insistência que o mercado de trabalho ideal, em sua visão, é aquele próximo à informalidade, sem direito nenhum, em que o trabalhador individualmente negocia seu contrato com o empregador, em condições evidentemente desiguais”, finaliza.
Edição: Poliana Dallabrida