O Conselho Indigenista Missionário – Cimi manifesta seu repúdio e indignação em relação às acusações falsas e difamatórias proferidas pelos deputados Coronel David (PL/MS) e Zeca do PT (PT/MS), em sessão realizada na manhã da última quinta-feira (4) na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (ALEMS), e posteriormente difundidas pela mídia.
Desde a tribuna, o Coronel David apresentou documentos fiscais que foram retirados de seu contexto com objetivo de responsabilizar o Cimi. Os documentos teriam sido entregues a ele pelo próprio Secretário de Segurança do Estado e seriam partes integrantes de um inquérito ainda sem desfecho e que tramita em caráter sigiloso. Sem apresentar mais detalhes, o Coronel cria um nexo entre estes documentos e o financiamento de transportes para realizar o que qualificou como ‘’invasão de fazenda’’ localizada no município de Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul.
A fazenda citada pelos deputados está localizada dentro do território indígena de Laranjeira Nhanderu, reivindicado pelos povos Guarani e Kaiowá há muitas décadas e que aguarda conclusão do procedimento administrativo de demarcação, iniciado em 2007 por força de TAC/CAC (Termo de Ajustamento de Conduta/Compromisso de Ajustamento de Conduta), proposto pelo Ministério Público Federal (MPF).
Pouco mais de um ano atrás, políticos do estado do MS e da cidade de Rio Brilhante anunciaram a criação de um assentamento localizado exatamente dentro da referida fazenda, que seria vendida, sobretudo, por valor bem acima do mercado. Cientes da estratégia, os indígenas se revoltaram com a ação ilegal, uma vez que o assentamento seria implementado dentro de território indígena em estudo, prejudicando o processo de demarcação.
No dia 3 de março de 2023, indígenas do povo Kaiowá de Laranjeira Nhanderu resolveram realizar uma retomada deste território que teve como protagonistas algumas crianças e cerca de 10 pessoas adultas, mais da metade anciões. Em 2022, numa primeira tentativa de retomada, a comunidade já tinha sido duramente reprimida por unidades da Polícia Militar (PM), que agiram por ordem do Secretário de Segurança do Estado, sem respaldo legal, na defesa explícita do privado. Esta praxe posteriormente se tornou uma constante e trouxe resultados catastróficos, como ficou explícito no Massacre de Guapoy em junho de 2022, onde o indígena Kaiowá Victor foi assassinado e dezenas de indígenas ficaram feridos. Agora, em março de 2023, novamente os indígenas sofreram uma ação ilegal de despejo por parte da PM. Anciões foram atingidos com balas de borracha e três indígenas foram presos. Por falta de materialidade nas acusações, os indígenas foram soltos no dia seguinte, após acompanhamento da Defensoria do Estado no caso.
É importante registrar que somente após a retomada, no dia 5 de março, ocorreram as referidas viagens utilizadas politicamente pelos parlamentares para criminalizar o Cimi. Pagas de forma transparente, o deslocamento foi na verdade a realização de uma Assembleia da Aty Guasu – a Grande Assembleia dos povos Guarani e Kaiowá -, que contou com a presença e participação de diversas entidades públicas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública do Estado e a Defensoria Pública da União. Qualquer uma das entidades pode atestar este fato. Na presença dos órgãos, a Aty Guasu encaminhou denúncias graves, como por exemplo o fato de a Funai ter sido proibida pelos policiais de acessar a comunidade indígena, onde justamente tentava intermediar um desfecho pacífico. Isso se deu antes do abrir fogo dos policiais contra idosos e crianças.
É extremamente constrangedor notar que no Mato Grosso do Sul interesses econômicos ligados ao agronegócio podem aproximar ideologicamente um deputado do PT, partido historicamente aliado da causa indígena, e um parlamentar do PL, inimigo declarado da mesma. Em ato contínuo à fala de David, o deputado Zeca do PT, à revelia do compromisso histórico do partido com a causa indígena, congratulou o Coronel e contribuiu, infelizmente, com a deslegitimação do povo Kaiowá e suas lutas legítimas e com a criminalização de apoiadores do movimento indígena, fazendo defesa ideológica do agro.
É doloroso e absolutamente inaceitável que por meio de argumentação extremamente racista – ideia da incapacidade dos indígenas em traçar suas próprias estratégias e de protagonizar a luta por seus direitos – o ruralismo esteja objetivando uma vez mais atingir o Cimi. Foi assim em 2015, quando agro-deputados, encabeçados por Mara Caseiro e Paulo Correia, causaram um grave dispêndio de recursos públicos mal gastos com um número excessivo de assessores e advogados, durante uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) arranjada contra o Cimi. Sem nenhuma materialidade, a CPI foi arquivada pelo MPF e MPE, além de ter sido sepultada pela Justiça Federal de primeira instância do estado e confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) quanto à nulidade, até mesmo de seu ato de instalação, explicitamente político. Consequentemente, todas as acusações viraram pó.
Este novo ataque contra os povos indígenas e seus aliados não é um fato isolado restrito ao estado de Mato Grosso do Sul. A mudança no contexto político do país e a leve retomada dos processos administrativos de demarcação e homologação das terras indígenas, além do retorno do julgamento sobre o marco temporal marcado para o mês de junho deste ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF), despertou no seio do ruralismo e em seus representantes no Congresso Nacional uma ofensiva violenta que pretende criminalizar a legítima luta dos povos indígenas por seus territórios e a histórica solidariedade de entidades indigenistas, bem como outras lutas populares. A anunciada “CPI do MST”, movimento amplamente reconhecido e fundamental na discussão pela democratização do acesso à terra, é também um dos sinais da evidente perseguição e criminalização das lutas populares por parte dos setores que sempre defenderam privilégios particulares.
O Cimi tem consciência que as tentativas de criminalização contra nossa entidade nunca cessarão. Esta não foi a primeira e não será a última. Ao longo de nossos 51 anos, sempre que o direito indígena avançou, junto aos povos, lado a lado fomos também atacados e criminalizados. É parte de nossa caminhada evangélica, a exemplo do Mestre Jesus de Nazaré, sofrer o que sofrem os povos. Mas não sofreremos calados! Denunciaremos cada açoite, buscaremos as medidas cabíveis para cada ato difamatório e seguiremos transformando os ataques em mais força e compromisso até que todos os territórios indígenas estejam demarcados e os povos vivam com a tão sonhada dignidade. Como diz o apóstolo Paulo, “Somos oprimidos, mas não imobilizados, perplexos, mas não desesperados, perseguidos, mas não abandonados, derrubados, mas não destruídos...” (2 Cor 4,8-9).