Por Cida de Oliveira.
São Paulo – De braços dados com o poder econômico, a ciência convencional virou as costas para os interesses da sociedade. E não é na América Latina, marcada por um histórico de colonialismo e exploração, que seria diferente. Os cientistas, que deveriam colocar a serviço do bem público todo o conhecimento construído principalmente nos laboratórios de universidades mantidas com dinheiro do contribuinte, são intransigentes na defesa dos interesses das grandes corporações.
A contrapartida, entre outros mimos, são financiamentos para pesquisas, viagens e indicações para postos importantes em espaços de decisão, como as comissões técnicas de biossegurança, como no caso brasileiro, onde vão aprovar, sem o menor constrangimento – e com a maior cara de pau – pedidos de aprovação de sementes e outros organismos geneticamente modificados desenvolvidos por essas mesmas empresas.
Muito comum, essa relação promíscua, que recebe o nome de ‘conflito de interesses’, permeia praticamente todos os processos na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que tem por tradição aprovar todos os pedidos que chegam ao órgão, inclusive aqueles que o próprio dono do projeto nem chega a implementar depois, porque conhecem os problemas que passaram pelo crivo dos cientistas. É o caso do feijão da Embrapa, que pelo jeito continua de molho.
Ainda no caso brasileiro, a ciência convencional tem sido pródiga em argumentos como a preocupação com a gravidade da situação, como quando os cientistas da CTNBio aprovaram um mosquito transgênico que supostamente reduziria a população do Aedes aegypti mas que está sendo questionado até no Reino Unido. Ou quando, convictos da segurança e efetividade dessas biotecnologias pouco estudadas, ignoram pareceres contrários, relevam pesquisas incompletas, com falhas metodológicas, e dão seu aval sem nem sequer levantar questionamentos. As dúvidas, diga-se, são responsáveis pelo desenvolvimento da ciência. E não as certezas e convicções, ainda mais quando se trata de um caráter perfeito, infalível e repleto de boas intenções de empresários capitalistas.
Omissão
Esse perfil de cientista totalmente alinhado com interesses privados até mesmo no expediente público tem feito estragos também na Bolívia. Assim como no Brasil, os transgênicos são aprovados com base em pesquisas insuficientes, conforme constatou a vice-presidenta da Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia (Socla), a agrônoma boliviana Georgina Catacora. Da análise de 1.200 artigos na literatura científica, ela chegou a conclusões no mínimo preocupantes.
Do total de estudos, 19% deles nem sequer se referem ao tipo de cultivo em que a tecnologia será utilizada; 21% não indicam a característica que foi modificada na planta em processo de aprovação; 31% não esclarecem em que país foram feitos os testes; e 10% não mencionam o grupo populacional que participou das pesquisas.
“Esses estudos, mesmo com falhas metodológicas, concluem que os transgênicos não causam impactos. E mesmo assim foram publicados em revistas científicas indexadas”, destaca Georgina. “Muitos deles não apresentam nem o método de comparação utilizado. Há uma manipulação metodológica, o que faz com que cheguem à conclusão que os transgênicos não causam problemas. Como afirmar se sequer são feitos estudos comparativos com sistemas de produção orgânica ou agroecológica?”
Com respaldo da ciência convencional, fabricantes lapidam seus discursos. “A propaganda dos transgênicos, segundo a qual essas biotecnologias preservam a natureza – quando isso não acontece –, substitui o antigo discurso da mesma indústria, que já fabricava agrotóxicos, de que esses produtos são ferramentas para produzir alimentos para todos e combater a fome, que não acabou por diversas razões”, destaca o assessor técnico da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia e integrante da Comissão Nacional de Política de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), o agrônomo Gabriel Fernandes.
Segundo ele, a expansão dos transgênicos a partir da década de 1990, marcou a mudança do contexto global e abriu caminho para novas tecnologias agrícolas. “O poder do estado foi reduzido pela globalização neoliberal e pelo poder das empresas. Esse modelo, que modificou as relações sociais e de poder por meio das técnicas, introduziu um regime global de proteção intelectual. Os genes se tornaram então uma mercadoria dentro do império das sementes”, diz.
Coordenadora do Centro Ecológico Assessoria e Formação em Agricultura Ecológica, do Rio Grande do Sul, a agrônoma Maria José Guazelli lembra que os riscos do conjunto de tecnologias existentes hoje, entre elas a nanotecnologia, nem sequer foram dimensionados.
“Na agricultura, essa tecnologia vem sendo utilizada nos chamados nano-agrotóxicos, como em películas para prolongar a vida das frutas. Essa espécie de embalagem, que pode ser comida, é pouco estudada e não é regulamentada no Brasil e em nenhuma outra parte do mundo”, diz Maria José Guazelli.
“Há tecnologias modernas também em produtos alimentícios feitos a partir de materiais transgênicos, incluídas no preparo de doces e queijos, por exemplo, e que as pessoas nem sabem que existem. Isso é preocupante porque sabemos que as nanopartículas são capazes de atravessar as barreiras do cérebro e da placenta.”
Ela adverte para o avanço desses produtos artificiais geneticamente manipulados em substituição de alimentos naturais, produzidos na agricultura. “São vendidos como saudáveis, mas o objetivo é substituir os agricultores. Isso é preocupante porque as modificações genéticas têm um impacto muito maior na saúde e no meio ambiente”, diz.
Legado ancestral
A impossível coexistência entre os organismos geneticamente modificados (OGM) e o chamado patrimônio biocultural – constituído pela diversificação genética do sistema alimentar em todo o mundo está no centro das reflexões do professor e pesquisador da Universidade Veracruzana, do México, Eckart Boege.
Quinto país com maior diversidade biocultural do mundo, o México deixou como legado para a humanidade a domesticação de mais de 200 espécies de milho. “Mesmo assim, isso tudo não tem muita importância para o Estado e nem pela ciência convencional, que está à mercê dos efeitos do totalitarismo tecnocientífico da agricultura industrial, onde se destacam os transgênicos, que oferecem riscos aos milhos crioulos”.
“Os transgênicos e outras biotecnologias são processos que modificam e transformam a vida. Mesmo assim são pouco estudados, em pesquisas cheias de falhas, conduzidas em condições otimizadas que não reproduzem a diversidade das situações em condições reais. E praticamente não são feitas pesquisas sobre impactos à saúde e ao meio ambiente, sendo liberadas para comercialização com facilidade, após cinco anos de avaliação, o que é um curto período”, destaca o agrônomo Leonardo Melgarejo, coordenador do grupo de trabalho de agrotóxicos e transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), integrante do Movimento Ciência Cidadã e ex-integrante da Comissão Técnica Nacional de Nacional de Biossegurança (CTNBio),
A cada ano, essas tecnologias causam novos problemas, segundo ele. “Levam à criação de outras com o intuito de resolver os problemas causados pelas tecnologias anteriores. Tudo isso dentro de uma produção científica em que 40% dos estudos mostram conflitos de interesses entre as empresas e instituições.”
“As promessas transgênicas se apresentam como uma proposta política ao pregar que é possível produzir mais e sem prejudicar o meio ambiente. O discurso é que a população cresce e é necessário produzir mais. Há nesta fala dos defensores da transgenia um apelo político ‘devido’ e aceito pela maioria da população, dentre outros aspectos. Em todo caso, vê-se os processos de biotecnologia fugindo do rumo previsto, a exemplo da soja transgênica que já apresenta resistência ao glifosato.”, diz o bioquímico e bioquímico e integrante da Rede Amigos de La Tierra, Pablo Galeano, “por trás das novas promessas do mercado da biotecnologia existem apenas interesses comerciais”.
Como os demais países latino-americanos, o Uruguai também enfrenta o avanço voraz das biotecnologias. Entre os que fazem o enfrentamento está um grupo interdisciplinar da Universidade Nacional, que tem promovido uma agenda de luta e que trabalha na construção de um plano nacional de agroecologia.
Argentina
A cada dia, em vários países, novos estudos reforçam os efeitos nocivos desses venenos sobre a saúde e meio ambiente. A exemplo do que acontece no Brasil e em outros vizinhos, os agrotóxicos deixam um rastro de doenças e mortes na Argentina.
Ali, o mapa da incidência de diversos tipos de câncer coincide com o do cultivo da soja, onde o glifosato é pulverizado. Coincidência ou não, medicamentos para tratamento de doenças da tireoide e ansiolíticos, juntamente com anti-hipertensivos, são os mais vendidos nessas mesmas regiões – o que sugere fortes correlações entre o uso de agrotóxico nessas culturas com a alta prevalência de problemas endocrinológicos e depressão, entre outros. Os dados são de uma pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Rosário.
De acordo com o professor Javier Albea, a esses resultados se soma a tendência de sobrepeso (38% das crianças), provavelmente associada ao herbicida triazina. A suspeita, que ainda tem de ser confirmada por meio de novos estudos, são semelhantes aos encontrados por pesquisadores dos Estados Unidos em trabalho semelhante.
O docente chama atenção ainda para a falta de pesquisas sobre impactos de nanopartículas, como aquelas presentes em cosméticos, por exemplo, que podem causar inflamação e alterar o DNA das células – o que está na causa de muitos tipos de câncer.
“Mas se sabe que o fígado, pulmões e rins são possíveis alvos de acumulação, assim como o sistema imunológico. É necessário regulamentar essas partículas, para que sejam liberadas somente após a investigação dos perigos para a saúde. Vivemos hoje uma revolução industrial que funde tecnologias e sua interação com sistemas biológicos. Somos poucos os que fazemos uma ciência contra hegemônica e que estudamos tudo isso. Por isso temos de começar a trabalhar em redes. Unidos somos mais fortes”.
Agrotóxicos
Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e integrante da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, Karen Friedrich desconstroi um dos principais argumentos da indústria dos agroquímicos: o dos limites seguro para a utilização dos venenos. De acordo com ela, que também participou da programação do Agroecologia 2017, “quem define esse aceitável é um grupo muito pequeno de pessoas”. “Não existem limites seguros e não existe risco aceitável para o uso de agrotóxicos”, afirma.
Ela lembra que os agrotóxicos estão presentes no trabalho, na mesa, no ambiente, no campo e na cidade. E causam doenças, mortes e suicídios através da ingestão da água e de alimentos. “Podem ser inalados e absorvidos pela pele, e causam danos mais sérios grupos populacionais mais vulneráveis, como gestantes e crianças. E os agrotóxicos que passam para o leite materno podem contaminar bebes. Como contaminam a água e rios e aquíferos, se espalham por toda parte e contaminam o meio ambiente”.
O mito do uso seguro é confrontado também pelo pesquisador Pedro Abreu, doutorando que atualmente pesquisa o tema em seu doutorado pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Após o mestrado, em que pesquisou os agrotóxicos no contexto da agricultura familiar brasileira, ele produziu o documentário O agricultor familiar e o uso (in)seguro de agrotóxicos.
Segundo ele, “uma ferramenta de uso público e irrestrito para ser utilizada em toda forma de luta, educação/formação e busca por mudanças do contexto injusto, manipulado e falacioso do uso de agrotóxicos pelos verdadeiros responsáveis pela alimentação em nosso país, os pequenos agricultores.”
Ciência cidadã
O exercício da ciência cidadã é um dos principais objetivos da Rede de Avaliação Social de Tecnologias na América Latina (Red Tecla), que aglutina parceiros em torno do estudo de questões relativas aos riscos das novas tecnologias à saúde humana e ambiental. Entre eles, a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Rosário, na qual Javier trabalha. Criada há 10 anos, e com sede no Uruguai, a rede tem entre seus parceiros a Rede por uma América Latina Livre de Transgênicos (Raalt), e outras entidades nacionais, como o Movimento Ciência Cidadã e o Centro Ecológico, do Brasil.
A aliança entre essas e outras entidades foi reforçada entre os dias 12 e 15 de setembro, durante o Congresso Brasileiro de Agroecologia. Agricultores e profissionais das mais diversas áreas com atuação em fóruns, entidades e sindicatos se reuniram para compartilhar cada vez mais informações e ações para agilizar a construção de alternativas para as questões mais urgentes nas lutas sociais que travam nos campos da agricultura, alimentação, habitação, saúde e meio ambiente.
Entre eles, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, Fórum Nacional de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos, Instituto Nacional do Câncer (Inca), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Rede de Médicas e Médicos Populares e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Na pauta inserida na programação da Agroecologia 2017, uma agenda para o setor e também para atualizar iniciativas de resistência e enfrentamento. É o caso dos avanços na construção de um plano estadual de agroecologia na Bahia, já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do legislativo baiano, bem como projetos de lei para acabar com a pulverização aérea e aumentar o controle sobre os agrotóxicos, que têm utilização cada vez maior sobretudo no oeste do estado. “A população brasileira está sendo envenenada e não tem a menor ideia do que isso significa”, disse o agrônomo e deputado estadual Marcelino Galo (PT), que comanda a Frente Parlamentar Ambientalista.
Uma política estadual de agroecologia e produção orgânica é objeto de projeto de lei também em São Paulo. De autoria dos deputados Ana do Carmo (PT) e Aldo Demarchi (DEM), o PL 236/2017 já tramita no legislativo paulista.
A construção coletiva da agenda e os passos para a implementação das ações segue diretrizes estabelecidas na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, realizada em 2012, no Rio de Janeiro. A temática esteve presente também em outros debates do evento que reuniu mais de 4.200 pessoas em Brasília, entre os dias 12 de 15 de setembro.
“A luta contra os agrotóxicos é algo irreversível, pois a população já se deu conta de que está comendo veneno, e não vai aceitar isso”, avalia o coordenador da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, Alan Tygel. “Por todo o Brasil estamos assistindo iniciativas no campo legislativo, como leis para incentivar a agroecologia, reduzir os agrotóxicos ou proibir a pulverização aérea. Há ainda iniciativas de produção de dados, como análise da água, e de contaminação no sangue e urina de populações expostas. E estas evidências são muito importantes para forçar o poder público a tomar iniciativas”.
Para ele, igualmente importantes são as iniciativas no campo da educação. “A população ainda tem muitas dúvidas sobre os agrotóxicos e as formas de produção agroecológica.E se por um lado a bancada ruralista tem muito poder e freia o avanço no nível federal, nos níveis estaduais e municipais as iniciativas são muito numerosas, e as chances de sucesso são maiores”.
Restauração
Historicamente castigado por eventos naturais, como tsunamis, tufões, vulcões, terremotos, e climáticos, como secas e geadas, entre outros – sem contar a monocultura do trigo –, o Chile viu a devastação ambiental tomar conta de várias regiões. Muitas dessas paisagens inóspitas foram recuperadas.
A boa nova foi trazida pelo agrônomo Agustín Infante Lira, presidente regional da Socla no Chile. Com a parceria de pequenas comunidades Mapuche, que resistem a históricas pressões de empresas apoiadas por governos para deixar suas terras, conseguiu muito mais do que modificar a paisagem. Com a adoção de sistemas agroecólogicos, conseguiu fortalecer a produção e a comercialização. “Temos hoje feira de troca de sementes entre um grupo de mulheres chilenas. E a partir dessa organização, todo um agrossistema foi restaurado. A biodiversidade voltou, a produção aumentou e o manejo melhorou.”
Para Agustín, há muitos desafios pela frente. Entre eles, a maior independência financeira para esses empreendimentos. “Mas creio que possamos, sim, começar a mudar o mundo agora”.
Fonte: RBA