Por Henrique Hoffmann e Eduardo Fontes.
Sabe-se que a segurança é direito fundamental de todos os cidadãos (artigo 5º, caput da CF) e que a segurança pública consubstancia a um só tempo dever do Estado e direito e responsabilidade de todos (artigo 144 da CF). Daí ter o constituinte originário outorgado aos órgãos policiais as tarefas de prevenir (polícia administrativa) e reprimir (polícia judiciária) infrações penais.
No desempenho de suas funções, uma das principais atividades das forças de segurança é a abordagem policial, também denominada de busca pessoal.
Consubstancia-se na inspeção do corpo do indivíduo e sua esfera de custódia (vestimenta, pertence ou veículo não utilizado como habitação), com a finalidade de evitar a prática de infrações penais ou encontrar objeto de interesse à investigação[1].
Diferentemente da busca e apreensão domiciliar, a busca pessoal independe de mandado judicial e pode ser realizada a qualquer tempo. Deve ser feita em diferentes níveis conforme o grau de ameaça, seguindo o uso proporcional da força (desincentivando o uso de expressões pejorativas como dura e baculejo)[2].
Em razão da natureza de sua atividade (polícia administrativa) e da disponibilidade numérica (maior efetivo dentre as forças policiais), os policiais militares são os que mais fazem revistas diuturnamente nas vias públicas, na modalidade preventiva.
A abordagem policial é concretizada por um ato administrativo imperativo, autoexecutório e presumidamente legítimo. Traduz materialização do poder de polícia estatal (discricionário, autoexecutório e coercitivo) na limitação da liberdade ou propriedade em nome do interesse público[3]. Acarreta inegavelmente certo grau de constrangimento, que deve ser suportado pelo cidadão em nome da pacífica convivência em sociedade.
Evidentemente isso não significa que o policial possa agir com arbitrariedade. O poder de polícia do Estado é marcado pela proporcionalidade. Nesse contexto, salta aos olhos a importância da fiscalização. O controle é fundamental para dar legitimidade à atuação do poder público (inclusive das polícias), garantindo a adequação das condutas dos agentes públicos à franquia constitucional de liberdades.
Uma das principais formas de fiscalização é o chamado controle externo popular, por meio da qual qualquer pessoa pode, na qualidade de cidadão, questionar a legalidade de determinado ato e pugnar pela sua validade[4]. Assim se evita que o uso do poder se convole em abuso do poder, seja por excesso de poder ou desvio de finalidade (artigo 2º da Lei 4.717/65).
Nesse sentido, a abordagem policial deve seguir o propósito definido em lei (prevenção ou investigação), com uso da força estritamente necessária (artigo 284 do CPP, artigo 2º da Lei 13.060/14 e artigo 3º do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei – Resolução 34/169 da ONU).
Muitas vezes o cidadão (que por vezes é um repórter), ao presenciar uma abordagem policial, resolve registrar a atuação fotografando ou filmando (com câmera profissional ou um simples smartphone), como forma de fiscalizar a ação estatal, especialmente quanto ao uso da força.
Ocorre que em algumas situações[5] o policial militar, sentindo-se incomodado com a fiscalização sobre o seu trabalho, arrecada[6] o aparelho do indivíduo e o conduz para a delegacia de polícia, seja pela alegada prática dos crimes de desobediência e desacato, ou por supostamente ser uma testemunha obrigatória dos fatos. Trata-se de atuação equivocada do miliciano.
O cidadão pode perfeitamente fiscalizar a ação dos agentes públicos sem atrapalhar o desempenho da missão pública e sem alterar a cena do crime. Registrar à distância a busca pessoal em nada prejudica a abordagem policial. Evidentemente deve se identificar quando solicitado (artigo 68 da LCP), e eventual divulgação do material deve ser desacompanhada de ofensas aos envolvidos ou desacato aos policiais.
Quanto ao cidadão em geral, vale lembrar que o princípio da legalidade (artigo 5º da CF) preconiza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e inexiste vedação legal para que uma pessoa registre fatos em vias públicas. Importante destacar que o postulado da legalidade surgiu com o Estado de Direito, opondo-se a toda e qualquer forma de poder autoritário e antidemocrático, sendo previsto na própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[7].
Caso o fiscalizador seja repórter, acrescente-se que a liberdade de imprensa (artigo 220 da CF) é importante direito fundamental que permite à população ter acesso amplo à informação e a melhor controlar os atos do Estado. Cuida-se de patrimônio imaterial, sendo irmã siamesa da democracia, devendo desfrutar de uma liberdade de atuação extremamente ampla[8].
Logo, não pratica qualquer delito aquele que registra fatos acobertados pela publicidade; o miliciano que restringe a liberdade do cidadão indevidamente é que pode incorrer em abuso de autoridade.
Além disso, o indivíduo não necessariamente deve figurar como testemunha pelo simples fato de ter registrado a abordagem policial. Isso só deve acontecer se inexistir outro indivíduo que tenha presenciado os fatos. De toda sorte, a decisão sobre sua oitiva e sobre a utilização do registro será tomada pelo delegado de polícia, e não pelo policial militar, que é um agente da autoridade policial. E mesmo que o cidadão seja chamado a narrar o acontecimento, inexiste motivo para apreensão do equipamento quando cópia do vídeo ou imagem puder ser extraída instantaneamente na delegacia. Essa observação ganha especial relevância quando se tratar de jornalista, que tem na sua câmera um instrumento de trabalho.
Não custa pontuar que a regra de proibição de depor como testemunha (artigo 207 do CPP) não se aplica a jornalista, pois o segredo que deve ser mantido por esse profissional é o da origem da informação (sigilo da fonte, ou seja, identidade do informante), e não da informação em si[9]. Entretanto, repita-se, só deve o repórter atuar como testemunha em casos estritamente necessários e nunca como forma de intimidação ou de cerceamento da profissão.
Portanto, o uso de câmeras não é proibido, pelo contrário, deve ser estimulado tanto pela população, pelos jornalistas e pelos próprios policiais, seguindo tendência mundial. Esse proceder melhora a atuação dos agentes da lei e também dos próprios suspeitos, que se sentem desestimulados a levar adiante reclamações improcedentes, como demonstra estudo[10]. É dizer, a filmagem não serve apenas para incriminar, mas também para demonstrar que a atuação firme da polícia seguiu os parâmetros legais[11].
[1] HOFFMANN, Henrique. Aspectos jurídicos da busca e apreensão. BEZERRA, Clayton da Silva; AGNOLETTO, Giovani Celso (Org). Busca e Apreensão. Rio de Janeiro: Mallet, 2017, p. 21-119.
[2] HOFFMANN, Henrique. “Além de investigativa, busca pessoal pode ser preventiva”. Revista Consultor Jurídico, set. 2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-set-05/academia-policia-alem-investigativa-busca-pessoal-preventiva>. Acesso em: 5.set.2017.
[3] MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 340.
[4] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 376.
[5] A título de exemplo: “Jornalista preso após filmar abordagem da PM em Vitória é liberado”. G1, jul. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/jornalista-preso-apos-filmar-abordagem-da-pm-em-vitoria-e-liberado.ghtml. Acesso em: 10.jul. 2017; “PM inventa lei para repreender homem que filmava ação policial; veja flagrante”. G1, fev. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/pm-repreende-homem-que-filmava-acao-policial-com-telefone-celular.ghtml. Acesso em: 21.fev. 2017.
[6] Tecnicamente a imediata e precária inversão da posse do bem feita pelo agente da autoridade policial (policial militar, guarda municipal ou policial rodoviário federal) consiste em mera arrecadação; o objeto só estará juridicamente apreendido com a decisão do delegado de polícia no sentido de ser lavrado o devido auto de apreensão.
[7] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1078.
[8] STF, ADPF 130, rel. min. Carlos Britto, DJE de 6/11/2009.
[9] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. O sigilo da fonte de informação jornalística como limite à prova no processo penal. Brasília: Gazeta Jurídica, 2015, p. 187.
[10] ARIEL, Barak; SUTHERLAND, Alex; HENSTOCK, Darren, YOUNG, Josh; DROVER, Paul; SYKES, Jayne; MEGICKS, Simon; HENDERSON, Ryan. “Contagious Accountability”: A Global Multisite Randomized Controlled Trial on the Effect of Police Body-Worn Cameras on Citizens Complaints Against the Police. In: Criminal Justice and Behavior, v. 44, p. 293-316.
[11] A título de curiosidade, mencione-se que tampouco existe restrição para a filmagem da fachada do prédio da PM, porquanto a “área de segurança”, cujo arcabouço legislativo se pauta na Resolução Contran 302/2008, restringe tão somente o estacionamento de veículos. Nesse sentido: TJ-SP, RN 1019312-24.2016.8.26.0053, rel. des. Fermino Magnani Filho, DJ 28/8/2017.