Cidadania de segunda mão

Poster-competition-at-Lon-015Por Celso Vicenzi.*

Incorporamos o fracasso. Séculos de maus-tratos à população dão-nos a sensação de que as conquistas no cotidiano de outras populações, sobretudo na Europa, mas também em outros continentes, estão fora do alcance dos brasileiros. Aceitamos uma cidadania capenga, desfigurada, de segunda mão.

Em Florianópolis, uma ilha com três pontes e uma quarta sendo anunciada, com crônicos problemas de mobilidade urbana, soa estranho cada vez que alguns especialistas – brasileiros ou estrangeiros – sugerem soluções combinadas de transporte rodoviário, marítimo e ferroviário – sobretudo este último. Não é diferente em outras médias ou grandes cidades, descontadas as características individuais. Cada vez que se propõe o uso de trens elétricos de superfície ou veículos em trilhos ou monotrilhos, há uma sensação de espanto no ar. “Isso é irreal”, ouve-se, com muita frequência, de uma população acostumada a tantas deficiências. “É muito caro”, logo antecipam autoridades ignorantes ou de má-fé e gestores que nunca souberam ou quiseram fazer direito as contas.

Quanto custa uma cidade e uma população paralisada? Trabalhadores que gastam horas engarrafados no trânsito? Pessoas que desistem, muitas vezes, de se locomover a uma determinada área da cidade porque sabem o quanto de sacrifício isso exige. Sem falar na poluição – atmosférica e sonora. E os acidentes? Os feridos? Os mortos? Quanto custa acostumar uma população a se deslocar em ônibus precários e superlotados, de forma desumana, como se isso não contribuísse, com o passar do tempo, para desumanizar todas as relações na sociedade?

O Brasil copia ou reinventa quase tudo dos países mais ricos – o way of life –, mas não é capaz de incorporar os modelos de mobilidade implantados e que interligam todos os modais de transportes, inclusive as ciclovias. Em vários países é possível alternar diferentes modelos: posso ir de bicicleta até uma estação de trem e continuar a viagem sobre trilhos. Posso intercalar ônibus, trem e metrô. Não é preciso – nem faz sentido – usar sempre o mesmo tipo de transporte do começo ao fim do deslocamento. As soluções precisam ser integradas.

Em vários países compram-se passagens para trens, metrôs e outros modais em praticamente todas as plataformas de embarque e desembarque. Muitas delas automáticas, operadas pelo próprio usuário. Em todas as plataformas – inclusive rodoviárias – não faltam informações sobre os destinos dos ônibus que trafegam por ali.

E tudo é pensado em termos de custo-benefício: quem compra bilhetes para um ou dois dias pagará mais caro do que quem adquire passes para uma semana, mês ou ano, por exemplo. Os custos são progressivos, em círculos, a partir da área central até os pontos mais distantes servidos pelo transporte urbano. No Brasil, todos esses critérios não têm a mesma clareza. Muito menos as facilidades para operar. Faltam transparência e informações para os usuários, que precisam ser tratados como cidadãos, e transportados com conforto, segurança e agilidade.

Para que tirar o carro da garagem – para quem o tem – no deslocamento diário pela cidade ou entre cidades, se é possível fazê-lo de modo muito mais tranquilo, rápido e econômico por transporte coletivo? Ao longo dos anos, o custo-benefício mostra-se amplamente compensador, tanto que é adotado por cidades de médio e grande porte. Os chamados VLT – Veículo Leve sobre Trilhos –, uma entre tantas possibilidades que demoramos tanto a adotar, são uma solução bastante difundida em muitos países que diminuíram substancialmente seus problemas de mobilidade urbana.

No Brasil, um país que está entre as dez maiores economias do planeta, o custo não pode ser a eterna desculpa. A menos que sejam os custos da ignorância, da corrupção e da má gestão.

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*Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

Fonte: Nota de Rodapé

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