Em entrevista para o site Truthout, publicada no Outras Palavras, Noam Chomsky falou da recusa de Donald Trump em se comprometer com uma “transição pacífica do poder” e sua confiança em teorias da conspiração:
O recurso à “lei e à ordem” é normal, quase reflexivo. Já a ameaça de Trump de se recusar a aceitar o resultado da eleição, não. É algo novo em democracias parlamentares estáveis.
O simples fato de essa contingência estar sendo discutida revela a eficácia da bola de demolição de Trump para minar a democracia formal. Podemos nos lembrar que Richard Nixon, não exatamente reconhecido por sua integridade, tinha alguma razão para supor que a vitória na eleição de 1960 havia lhe sido roubada devido a maquinações do Partido Democrata. Ele não questionou os resultados, colocando o bem-estar do país acima da ambição pessoal. Al Gore fez o mesmo em 2000. A ideia de que Trump possa colocar qualquer coisa acima de sua ambição pessoal — até mesmo se preocupar com o bem-estar do país — é ridícula demais para ser discutida. (…)
As ameaças de Trump são levadas muito a sério, não apenas em extensos comentários na mídia e jornais convencionais, mas até mesmo dentro dos círculos militares — que podem ser compelidos a intervir, como ocorre nas pequenas ditaduras, cujo modelo é o mesmo de Trump. Um exemplo marcante é uma carta aberta enviada ao mais alto oficial militar do país, o presidente do Joint Chiefs General, Mark Milley, por dois comandantes militares aposentados, mas muito renomados: os tenentes-coronéis John Nagl e Paul Yingling. Eles advertem Milley: “O presidente dos Estados Unidos está subvertendo nosso sistema eleitoral de forma ativa, e ameaça permanecer no cargo, desafiando a nossa Constituição. Em alguns meses, você terá que escolher entre desafiar um presidente fora da lei ou trair seu juramento constitucional” que exige defender a Constituição contra todos os inimigos, “estrangeiros e domésticos ”.
Hoje, o inimigo é doméstico: um “presidente sem lei”, continuam Nagl e Yingling, que “está montando um exército privado capaz de frustrar não apenas a vontade do eleitorado, mas também as capacidades da aplicação da lei comum. Quando essas forças colidirem em 20 de janeiro de 2021, os militares dos EUA serão a única instituição capaz de defender nossa ordem constitucional”.
Com os republicanos do Senado “reduzidos a suplicantes” e tendo abandonado quaisquer resquícios de integridade, o general Milley deveria estar preparado para enviar uma brigada da 82ª Divisão Aerotransportada para dispersar os “homenzinhos verdes” de Trump, aconselham Nagl e Yingling. “Se você se mantiver em silêncio, será cúmplice de um golpe de Estado.”
É difícil de acreditar, mas o próprio fato de tais pensamentos serem expressos por vozes sóbrias e respeitadas — e ecoados por todo o mainstream — é razão suficiente para se preocupar profundamente com as perspectivas da sociedade estadunidense. Raramente cito o correspondente sênior do New York Times, Thomas Friedman, mas quando ele pergunta se poderia ser esta a nossa última eleição democrática, ele não está se juntando a nós, “homens selvagens a postos” — para citar o termo de McGeorge Bundy aplicado àqueles que não se conformam automaticamente com a doutrina aprovada.
Enquanto isso, não devemos ignorar como os líderes do “exército privado” de Trump demonstram seu fervor, em seu já usual terreno de implantação: o cruel deserto do Arizona — para o qual os EUA, desde Clinton, têm enviado pessoas miseráveis, que fogem da destruição que nós mesmos causamos em seus países. Esquivando-nos, assim, de nossa responsabilidade legal e moral de oferecermos a eles uma oportunidade de asilo.
Quando Trump decidiu aterrorizar Portland, no Oregon, ele não enviou os militares, provavelmente com o receio de que eles se recusassem a seguir suas ordens — como acabara de acontecer em Washington, DC. Enviou paramilitares, os mais ferozes deles: a unidade tática BORTAC, da Patrulha de Fronteira, que goza de liberdade e “rédea solta” para acabar com os “malditos da terra”.
Imediatamente, depois de cumprir as ordens de Trump em Portland, o BORTAC voltou aos seus passatempos regulares, destruindo um frágil centro de assistência médica no deserto, onde voluntários tentam fornecer ajuda médica, ou até mesmo água, a pessoas desesperadas que conseguiram, de alguma maneira, sobreviver. (…)
São essas as forças que poderiam defender a “lei e a ordem”, se, de fato, o comando militar resolver ser “cúmplice de um golpe de Estado”. Parece inimaginável, mas não inconcebível, infelizmente.
Enquanto isso, Trump e seus companheiros republicanos trabalham horas extras para implementar sua estratégia de minar a eleição ou de desacreditá-la, se tudo der errado, preparando o cenário para um possível golpe.
Um “Exército por Trump” está sendo preparado e mobilizado para ir às urnas, intimidar os eleitores contrários. O que algum dia foi o Departamento de Justiça, hoje facilita as restrições de inquérito de fraude eleitoral, caso esse caminho se torne necessário.
De modo geral, na campanha de Trump não serão poupados esforços para desmantelar as estruturas democráticas e, assim, manter o atual presidente no poder
Talvez exista algum consolo no fato de não estarmos sozinhos. Outras grandes democracias também estão ruindo, caindo nas mãos de líderes com traços fascistas, quando não assumidos ideologicamente fascistas mesmo (muitos, incluindo grandes estudiosos do fascismo, consideram esta caracterização de Trump como muito caridosa). (…)
O que acontece hoje nos EUA, Índia e Brasil, não deixa de evocar memórias do início dos anos 1930 — no meu caso, amargas memórias pessoais. Uma característica comum é a adoração fanática do Líder Máximo por seus fiéis seguidores. Mas existe uma diferença curiosa. Mussolini e Hitler tinham algo a oferecer para seus adoradores: reformas sociais, um lugar ao sol. Trump esfaqueia-os pelas costas com praticamente todas as ações legislativas e executivas, e prejudica seriamente os EUA na arena internacional. O mesmo vale para seus camaradas da Índia e do Brasil.
O compromisso de Trump em causar o sofrimento máximo à população americana é impressionante de se ver. Vai muito além de seus crimes mais colossais: correr em direção ao abismo da catástrofe ambiental e aumentar drasticamente a ameaça de guerra nuclear. Em muito menos formas, mais uma vez, nenhum esforço é poupado na hora de causar graves danos ao público. (…)
De maneira mais ampla, o governo Trump vem firmando com força a Internacional Reacionária chefiada por Washington, a única iniciativa geoestratégica que pode ser detectada no caos administrativo. Os principais membros são os parceiros de Trump, Modi e Bolsonaro. No Oriente Médio, eles se juntaram ao general al-Sisi do Egito, o “ditador favorito” de Trump, que levou o Egito a novas profundezas de desespero. E, é claro, as ditaduras do Golfo, chefiadas pelo estimável Mohammed bin Salman, responsável pelo assassinato brutal de Khashoggi como um de seus crimes menores.
Outro membro bem-vindo é Israel, que agora mal esconde sua tendência para a extrema-direita. A recente formalização das relações tácitas entre Israel e as ditaduras do Golfo encontra seu lugar natural neste sistema. Também há outros membros, como a democracia iliberal húngara de Viktor Orbán; e, esperando nos bastidores, figuras interessantes como o italiano Mario Salvini, que celebra o afogamento de milhares de miseráveis no Mediterrâneo, não sem as contribuições da Itália para o registro genocida da Europa.