China tem muito a ensinar, dizem imigrantes brasileiros sobre luta contra coronavírus

Coletividade do povo chinês e capacidade de comunicação do governo central estão entre os principais méritos

China chegou a zerar a transmissão local por três dias – Hector Retamal/AFP

Por Praveen S.

Tumulto no supermercado, desrespeito à quarentena, divergência entre o presidente e o ministro da Saúde. As dificuldades enfrentadas pelo Brasil nas primeiras semanas de coronavírus seriam impensáveis na China, primeiro país infectado. Essa é a opinião de brasileiros que vivem há anos na Ásia e se tornaram admiradores da sociedade chinesa.

Desde dezembro, o coronavírus provocou quase 3,5 mil mortes na China. Por três dias, entre 19 e 21 de março, não houve nenhum registro de transmissão local. Entre avanços e recuos nos números, o governo afirma que o pico de casos foi superado no dia 12 de março e que as medidas de prevenção serão mantidas até que não haja mais contágio.

Com menos registros diários de pacientes infectados do que Estados Unidos e União Europeia, a China foi considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) um exemplo de esperança para o mundo. Os imigrantes brasileiros concordam que o país asiático tem muito a ensinar aos povos que pretendem lutar contra a pandemia, mas alertam para os erros cometidos pelo governo de Wuhan no início do processo.

Demora em reagir

O advogado José Renato Peneluppi Jr. mora há nove anos e meio em Wuhan, cidade onde foi registrado o primeiro contágio. Quando foi informado sobre o novo coronavírus, ele havia acabado de entrar em férias e estava fora da China.

Depois de consultar colegas de trabalho, o brasileiro decidiu voltar a Wuhan ao final das férias, no dia 15 de janeiro. Até então, a população local não tinha ideia dos riscos.

“Eu estava em Beijing [Pequim, capital da China] voltando para casa, quando um amigo médico que havia acabado de sair de um treinamento da OMS me ligou. Ele disse para eu prestar muita atenção e passou todas as orientações sobre os cuidados que eu deveria tomar”, conta Peneluppi. “Quando eu cheguei em Wuhan, fiquei surpreso. A cada 20 pessoas, em média, só três estavam de máscara”.

Os moradores logo seriam informados do perigo. “Houve uma mudança drástica do dia 20 para o 21. Começaram a noticiar que o vírus já estava em outros países, vindo de Wuhan. Quando apareceu no Japão, deu um estalo em todo mundo de que a coisa estava ganhando outra proporção”, relata o brasileiro.

Conforme chegavam notícias de que outras cidades chinesas começavam a tomar providências, o advogado decidiu deixar Wuhan. “Comprei uma passagem para o Camboja [sudeste asiático], às 3 horas madrugada do dia 22 para o dia 23”, lembra. “Enquanto eu esperava o voo, saiu uma carta anunciando que a partir das 10 horas da manhã já não teria mais como sair da cidade. Foi o último embarque”.


José Renato Peneluppi Jr. saiu de Wuhan horas antes do fechamento do aeroporto da cidade / Arquivo pessoal

Papel do governo central

Em 27 de janeiro, o então prefeito de Wuhan, Zhou Xianwang, admitiu ter escondido informações sobre o vírus e colocou o cargo à disposição. De lá para cá, o governo central passou a conduzir o processo de comunicação, prevenção e controle da doença. Esse passo foi decisivo, na interpretação de Peneluppi.

“A primeira coisa foi substituir a liderança, tanto do partido como da cidade. Daquele momento em diante, começou um processo de controlar, coordenar e comunicar. Tudo isso em ritmo de marcha: informações sobre estabelecimentos fechados, comida, telefones para contato”, lembra o advogado. “Teve uma sequência de nove cartas em 72 horas explicando tudo o que estava acontecendo em poucas linhas, de forma concisa”.

O consultor internacional Rodrigo do Val Ferreira mora em Xangai há 15 anos e também ressalta a importância daquele movimento. “O nível local de controle não funcionou. Foi uma tragédia, e Wuhan paga por isso até hoje. O fato é que o governo central assumiu o controle de tudo e começou a colocar diretrizes de cima para baixo, com as ações rápidas e enérgicas”.

Para o brasileiro, não há como comparar o erro do prefeito de Wuhan com as falhas de comunicação do governo Bolsonaro (sem partido): “Aqui [na China] tudo era novidade. O Brasil já tem a experiência de vários outros países, e não se pode admitir que o governo federal diga que é uma ‘gripezinha’”.

Aqui [na China] tudo era novidade. O Brasil já tem a experiência de vários outros países, e não se pode admitir que o governo federal diga que é uma “gripezinha”.

Xangai tem 26 milhões de pessoas e virou uma cidade fantasma: “Não se via uma alma na rua. Ninguém foi proibido de sair, mas todo mundo ficava em casa. O feriado do Ano Novo Chinês [24 de janeiro de 2020] foi estendido, mas ninguém foi para a praia, para o parque. Parou tudo”.


Um homem atravessa a rua deserta de Hangzhou, a 175 quilômetros de Xangai, no dia 5 de fevereiro, quando a China tinha 24 mil infectados e o governo havia decretado quarentena / Noel Celis/AFP

Guerra popular

José Renato Peneluppi Jr., que acompanhou a maior parte do processo de fora da China, diz que o sucesso no combate ao coronavírus se deve à disciplina e ao senso de coletividade do povo chinês. “Aqui, o direito e o dever caminham juntos”, resume. Para ele, os brasileiros tendem a enxergar o problema sob uma perspectiva individual.

“Quando eu contei para os amigos brasileiros que estava saindo da China, eles ficaram felizes e só queriam saber se eu estava bem. Os meus amigos e colegas chineses, por outro lado, se preocuparam, porque eu poderia estar levando o vírus comigo. Não era uma preocupação só com o indivíduo, era com o todo”, compara. Ele acrescenta que só se tranquilizou quando teve certeza de que não estava infectado.

Quando eu contei para os amigos brasileiros que estava saindo da China, eles ficaram felizes e só queriam saber se eu estava bem. Os meus amigos e colegas chineses, por outro lado, se preocuparam, porque eu poderia estar levando o vírus comigo. Não era uma preocupação só com o indivíduo, era com o todo

Rodrigo do Val Ferreira afirma que as diferenças culturais ficaram evidentes no início da quarentena: “Não houve correria nenhuma nos supermercados para comprar papel higiênico, comida, álcool em gel, diferente do que a gente vê em alguns vídeos no Brasil. Nos Estados Unidos, havia fila para comprar arma quando eles souberam que o vírus chegou. O povo chinês tem um espírito coletivista que não existe no Ocidente”.

O morador de Xangai explica na prática o conceito de centralismo democrático aplicado na China, demonstrando a importância dessa forma de organização para o combate ao coronavírus.

“O lugar onde você mora está sempre coordenado politicamente em um núcleo, que é o comitê da comunidade. Cada condomínio, cada vilazinha têm o seu comitê, e isso vai crescendo. E cada um desses têm jurisdição, com certa discricionariedade, para implementar políticas”, diz o brasileiro. “Todos esses comitês tomaram como tarefa lutar contra o vírus, e inclusive eles se referem a esse processo como ‘guerra popular’”.

Todos contra o vírus

O consultor considera que o acesso à tecnologia contribui para evitar a disseminação do coronavírus. “A China é super digitalizada. Você compra tudo pelo celular, paga pelo celular, e não precisa da interação humana para ter acesso a bens e serviços. Eu não lembro da última vez que eu encostei em uma nota [cédula]”, conta.

A China é super digitalizada. Você compra tudo pelo celular, paga pelo celular, e não precisa da interação humana para ter acesso a bens e serviços. Eu não lembro da última vez que eu encostei em uma nota [cédula]

Além disso, Rodrigo do Val Ferreira enaltece o papel dos voluntários para realização de procedimentos e compartilhamento de informações: “O governo conta com os membros do Partido Comunista Chinês – e estamos falando de 90 milhões de pessoas – como voluntários. Na entrada de cada comunidade ou condomínio, são eles que estão, 24 horas, medindo a temperatura das pessoas”.

Para José Renato Peneluppi Jr., uma das principais vantagens da China é a comunicação. “Parece óbvio, mas a comunicação do governo chinês é direta, objetiva, não deixa lacunas. Isso dá credibilidade e segurança, porque todos sabem o que fazer”, analisa. “Lembro que a segunda carta do governo já falava sobre a questão do acesso a alimentos, e isso acalmou muito a sociedade. As pessoas pararam de se desesperar e nem pensaram em fazer estoque.”


Trabalhador desinfeta um dos quartos do hospital da Cruz Vermelha utilizado no combate ao coronavírus em Wuhan. O local foi fechado no dia 18 de março para uma semana de desinfecção / STR/AFP

A China contabiliza, desde dezembro, 82 mil pessoas infectadas com o coronavírus, dos quais 87% estão curados. Algumas cadeias de fornecimento voltaram a operar no país em meados de março, quando o número de casos começou a cair. O governo considera que a rotina só deve ser restabelecida completamente quando não houver registros de transmissão local durante duas semanas seguidas.

Em paralelo aos esforços para zerar a transmissão local, a China iniciou em março uma campanha de solidariedade aos demais territórios infectados. Aviões chineses já desembarcaram em quatro continentes para levar doações de equipamentos, assistência humanitária ou conhecimentos médicos. A região norte da Itália, que vive a crise mais grave no momento, conta a partir desta semana com a ajuda de profissionais chineses, russos e cubanos.

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